A queda do Governo e o Império Romano

1. Quando o Criador, na sua infinita sabedoria, inspirou ao apóstolo a visão tenebrosa do Apocalipse, nunca imaginou vir a ser superado pelos comentadores políticos portugueses na noite do dia 8 de novembro de 2023. Com efeito, os quatro cavaleiros saídos da abertura do primeiro selo do rolo manuscrito na mão de Deus não souberam interpretar devidamente a ira divina, pelo menos quando comparados com a fúria vingadora das redações jornalísticas ultrajadas. Nessa tenebrosa noite, na quadrangulação simétrica do ecrã,

A queda do Governo e o Império Romano

A queda do Governo e o Império Romano

1. Quando o Criador, na sua infinita sabedoria, inspirou ao apóstolo a visão tenebrosa do Apocalipse, nunca imaginou vir a ser superado pelos comentadores políticos

Destaques

Alemanha e Israel

Na entrada principal do Reichstag, o edifício do Parlamento Federal alemão, o público é recebido por duas obras monumentais de

Alemanha e Israel

Alemanha e Israel

Na entrada principal do Reichstag, o edifício do Parlamento Federal alemão, o público é recebido

Ceroulas <i>par avion</i>

Ceroulas par avion

“Que nunca nos falte o supérfluo!”, atira a exuberante Val Marchiori, estrela do reality show

Todos os artigos

Simpatia Inacabada #10

Simpatia Inacabada #10

APANHAR AMORAS #2   Tudo existe para se transformar em palavras? Nós próprios podemos ser só respiração que deseja transformar-se noutra coisa. Em vez de falarmos em voz alta, murmuramos, como a água a correr, os ramos das árvores ao vento, as abelhas e outros insectos. Música do sentido? No tempo em que as pessoas escreviam cartas, era preciso ter muito cuidado com as palavras. Nas narrativas epistolares, há sempre alguém que decide trair e

Dicas de beleza para futuros falecidos

Dicas de beleza para futuros falecidos

Há duas fases da vida em que se torna absolutamente essencial ter uma rotina de cuidados de pele: a vida propriamente dita, e depois a morte. Felizmente, a indústria da beleza fatura cerca de 98 mil milhões de dólares por ano nos EUA, a indústria funerária 23 mil milhões, e ambas vendem potes e poções que ajudam humanos biodegradáveis e compostáveis a ter um aspeto ligeiramente mais inerte. Aleluia. Não há memento mori que nos

George Carlin e a Verdade na Comédia

George Carlin e a Verdade na Comédia

“Dentro de cada cínico, existe um idealista desiludido” Quando comecei a escrever na Almanaque, o Vasco M. Barreto pediu-me que não escrevesse sobre o estafado tema dos limites do humor. Aceitei, mesmo tendo em conta que isso era um limite ao humor, pelo menos o meu, e que alguns números mais tarde haveria uma excelente entrevista sobre o assunto na revista. Calhou bem, a dita entrevista tornaria pueril tudo o que eu escrevesse sobre a

Movimento em busca de si

Movimento em busca de si

É uma voz, ao princípio – a voz de Melanie Pereira, na primeira pessoa. Agarra-nos com a variação de uma lenda, depois actualizada e desfiada em cinco histórias de jovens mulheres que reflectem sobre a sua circunstância. Está marcada por terem nascido num país que, se aceita registá-las como suas, as marginaliza. Nele são sempre Melusinas, tomadas como corpos estranhos. As suas experiências são de não pertença, com a ansiedade resultante de estar sempre sob

Como novembro nos faz tremer

Como novembro nos faz tremer

Tinha-me prometido dar folga, e deixar de aborrecer, os leitores da Almanaque com mais textos sobre os processos geológicos que afetam e modificam diariamente o volume de terra que se encontra debaixo dos nossos pés. Mas é novembro, a vida acontece, tem estado particularmente quente, as ideias transformam-se, e aqui estou eu a olhar novamente para baixo.  A verdade é que o nosso querido planeta pode ser tão dinâmico debaixo da pequena casca que pisamos

Os crimes da imaginação

Os crimes da imaginação

Em Crime e Castigo, Dostoiévski dedica pouco menos de um sexto do romance à premeditação de Raskólnikov que o conduzirá ao assassínio da sua senhoria: um primeiro sobressalto, o desconforto que a ideia lhe provoca, dois monólogos para frisar a pobreza como catalisador da miséria moral (um na viva voz de um bêbado e o outro, epistolar, da mãe de Raskólnikov), a racionalização de alguém que coloca o valor da vida da senhoria abaixo da

Por palmas, quem é que daqui vive num mundo pós-fictício?

Por palmas, quem é que daqui vive num mundo pós-fictício?

Entre os pensamentos lançados pelo humorista Jack Handey em Deep Thoughts, a sua obra popularizada nos intervalos dos sketches do Saturday Night Live, destaca-se o seguinte clássico:   “Qualquer homem, na situação certa, é capaz de matar. Mas nem todo o homem é capaz de ser um bom campista. Portanto, matar e acampar não são coisas tão semelhantes como se possa imaginar.”   Não sei ao certo quantos quartos de hora tenho passado a pensar

Tarot Almanaque - Fevereiro 2024

Tarot Almanaque – Fevereiro 2024

Carta XX – O Tabu Aspectos positivos: Aposta na cordialidade; protecção de visados; preservação da harmonia. Aspectos negativos: Manutenção do statu quo; ocultação; pode provocar ressentimento; dissimulação; peca por omissão. _____ Quais os tabus que persistem, agora que já vimos tudo, em todo o lado, ao mesmo tempo?Ainda há sete palavras que não podem ser ditas na TV americana? Eu só me lembro de uma.As mulheres já podem envelhecer? E a Barbie?Podemos revelar pensamentos inconfessáveis?

Inteligência Artificial: Passado e Presente

Inteligência Artificial: Passado e Presente

O que é inteligência artificial (IA)? De facto, nem mesmo o termo “inteligência” tem uma definição consensual entre filósofos, neurocientistas, ou outros pensadores sobre o assunto. Para evitar mergulhar na proverbial “toca de coelho” filosófica, usemos a sigla IA simplesmente para referir sistemas artificiais capazes de exibir comportamentos que um ser humano informado interpretaria como inteligentes. As primeiras estratégias para construir sistemas de IA consistiam em tentar replicar em computadores os processos de raciocínio e

Pode o Museu (ainda) ensinar alguma coisa?

Pode o Museu (ainda) ensinar alguma coisa?

Os museus estão na moda, ou para sermos mais corretos, está na moda falar-se sobre museus. Mas fala-se sobretudo porque, ultimamente, estes têm levantado questões que mexem com questões de identidade, com as tradições ou o património histórico de uma determinada nação, mas também porque podem gerar excedente, num contexto nacional específico muito dependente do turismo. Evidentemente que algumas questões levantadas são válidas, outras (infelizmente a maioria) pouco criteriosas e com falta de sentido crítico,

2023: dez canções para um ano de transição

O que vai mudar nas minhas redes sociais? Mudanças do novo regulamento de serviços digitais.

Começa finalmente a entrar em vigor o Digital Services Act (DSA). Esta nova legislação, que surgiu em Dezembro de 2020 e ganhou luz verde em Julho de 2022, promete transformar a forma como as grandes plataformas digitais, como TikTok, Meta (anteriormente Facebook e Instagram) e X (o novo Twitter), operam no velho continente. Para nós, utilizadores, é uma mudança significativa. Desde a introdução do RGDP (Regulamentação Geral de Proteção de Dados), que não se assistia

2023: dez canções para um ano de transição

2023: dez canções para um ano de transição

2023. Que ano, 2023. Aconteceu muita coisa, não foi? A guerra no continente europeu continuou, sem grande resolução à vista. A situação no Médio Oriente voltou a piorar, e os preços das coisas em geral subiram um pouco por todo o lado, tanto quanto o número (e volume) de sotaques de inglês ouvido nos cafés de Lisboa, desde a Baixa até Benfica. Manifestámo-nos pela paz, pela resolução do problema na habitação, e pela liberdade. Só

 Meia-de-Leite Escura Em Chávena Escaldada

 Meia-de-Leite Escura Em Chávena Escaldada

Um ninho de mafagafos Tinha sete mafagafinhos Quem desmafagafar o ninho de mafagafos Bom desmafagafador será   Brown noise, white noise. Estudar categorias, doenças, falhas. Ler o mundo como quem lê um furúnculo. Gostar do gesto da escrita e querer apagar tudo que se escreve. Medir os dias como quem mede linhas como quem costura botões. Suspeitar da pontuação. Escrever à mão, escrever no pc.  Perder cadernos ilegíveis, perder contos sobre a amante de Van

Teatro Cósmico #10

Teatro Cósmico #10

Artista da vida   No espetáculo Abstract, de Cão Solteiro e Vasco Araújo, um grupo de cerca de seis jovens que entra palco adentro, pelo fundo, vestido com hoodies pretos e segurando sacos de plástico brancos nas mãos, distribui um texto ao público: “Vida de artista” de Alexandre Melo. O texto apresenta-se como escrito propositadamente para o espetáculo e nele o teórico e crítico de arte pensa sobre a vida de artista. Antes de uma

Radio Diaries / The Unmarked Graveyard

Radio Diaries / The Unmarked Graveyard

«Só damos valor às coisas quando as perdemos.» É o que se costuma dizer. Concordo com a ideia da frase, mas também discordo. Ou, melhor dizendo, considero que não é só quando perdemos alguma coisa que lhe devemos dar valor, mas sim também quando a recebemos. «When the body is gone, all that is left is the stories.» É a esta frase, proferida por Joe Richman no final do derradeiro episódio da minissérie “The Unmarked

Continuo sem notícias do Pico Ramelau

Continuo sem notícias do Pico Ramelau

De cada vez que o Telejornal fala de Timor, seja lá pelo que for, fico à espera que me falem também sobre o Pico Ramelau, há que tempos que não tenho notícias do Pico Ramelau, às tantas já toda a gente se esqueceu da importância que tinha o Pico Ramelau,   (o ponto mais alto de Portugal com dois mil novecentos e cinquenta metros de altitude),   como toda a gente parece ter esquecido os

However

However

Maria Martins esculpiu pelo menos três versões de However, que apareceram publicamente, pela primeira vez, na exposição individual realizada na Julien Levy Gallery, em Nova York, entre 25 de novembro de 1947 e 2 de janeiro de 1948. As três peças apresentam uma mulher nua, de pé, com as pernas juntas e os braços esticados ao longo do corpo, em torno do qual se enroscam uma ou duas serpentes. As configurações formais e figurais desses

Meditação sobre animais fantásticos, biologias sintéticas e poses fotográficas para futuro relacionamento

Meditação sobre animais fantásticos, biologias sintéticas e poses fotográficas para futuro relacionamento

No Livro das Maravilhas, que Marco Polo escreveu ou mandou escrever por volta do ano de 1298, afirma-se que o unicórnio é: (…) mais pequeno do que um elefante, com o pelo parecido com o do búfalo, as patas como as de um elefante e tem a cabeça como a de um javali, sempre inclinada para o chão. Tem um grande corno negro no focinho, mas não faz com ele qualquer dano nem aos homens

Um Outro Dicionário <br> </br>Ideias Feitas em Literatura #1

Um Outro Dicionário

Ideias Feitas em Literatura #1

Paixão Virginia Woolf As ideias mais importantes saem de lábios inteligentes. Há pessoas que fecham os olhos, outros abrem a boca e imitam mudos. Às vezes, gritam. E o que fazem assim, de boca aberta? Há quem se apaixone, claro, esses são os melhores, aprendem a pensar com a língua sobre os pormenores em volta. Outros constroem pontes apaixonantes, a altitudes perigosas, e as suas obras de engenharia abrem as notícias da noite, filmadas de

Insónia, a casa de sempre

Insónia, a casa de sempre

Eu vi-me exausta e exangue, põe-te em guarda. Sérgio Godinho, Balada da Rita     1. Tomo o comprimido. Bocejo, os olhos pesam na mais excitante cena do filme. A elucubração do podcast passa a ser um zum zum. Fecho o computador, troco os fones por tampões, venda nos olhos. Viro-me, afundada nas penas do edredão, almofada ergonómica em forma de coração entre as pernas. Quente, escuro, expressão infantil de quem se abandona ao sono.

Capa do n.º 10 da Almanaque

Capa do n.º 10 da Almanaque

Capa “A” do Nº 10 da Almanaque, Fevereiro de 2024; ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido.

Uma peta sobre a Ucrânia

Uma peta sobre a Ucrânia

Ante Gotovina, ex-legionário francês, regressa à Croácia em 1990. Em 1996 é designado comandante do distrito militar de Split, dois anos depois é promovido a major-general. A 4 de Agosto de 1995 o exército croata captura Krajina e Gotovina instala-se. O Tribunal Penal Internacional publica em Maio de 2001 a acusação (caso IT-01-45-1), pela caneta de Carla del Ponte. Gotovina é acusado, entre vários crimes (deportação, destruição de habitações etc.), da execução de pelo menos

O conflito israelo-palestiniano e os moderados

O conflito israelo-palestiniano e os moderados

No dia 8 de Outubro de 2023, na ressaca do massacre hediondo dos terroristas do Hamas a sobretudo civis israelitas, Israel atingiu um pico de legitimidade moral a que provavelmente já não chegava há décadas, mas que perderia em poucos dias, tal a dimensão da sua “poderosa vingança” (a expressão de Netanyahu) sobre alguns terroristas e muitos civis da faixa de Gaza. A 30 de Outubro de 2023, às vítimas israelitas (1300 mortos, incluindo cerca

Aprenda esta receita rápida e impressione os seus convidados

Aprenda esta receita rápida e impressione os seus convidados

1. Num primeiro momento, enquanto o lava muito bem para lhe retirar o amido extra, assista a “Spam”, aquele consagrado sketch dos Monty Python. Incontestavelmente, é um vídeo que não só tem muita graça, reforçada pela mise-en-scène repleta de vikings cantantes que auxiliam os protagonistas, como é também um retrato fiel da nossa sociedade. Primeiro, porque eles têm razão: a ilusão de escolha é a punchline a que somos levados pela contradição entre um extenso

Teatro Cósmico #9

Teatro Cósmico #9

Teatro, romance e quotidiano   Em 1937, Somerset Maugham publicou um romance chamado Teatro, que conta a história de um casal (ele empresário e ex-ator e ela atriz e vedeta) centrada na figura feminina, Julia Lambert, que se envolve num caso extraconjugal com um jovem contabilista. O que mais me diverte no romance é o modo como Maugham se apoia nos lugares-comuns associados à figura do ator em geral e da atriz em particular. A

Bretanha – Portugal ao virar da esquina

Bretanha – Portugal ao virar da esquina

Fotografia de Helena Araújo Galgenhumor é uma palavra alemã para designar o humor que alguém faz a propósito da situação desesperada em que se encontra. Um dos exemplos mais famosos é o do criminoso que, ao saber que vai ser executado numa segunda-feira, revira os olhos e comenta: “A semana já me começa bem…”. Ou o réu, a quem o tribunal anuncia uma tripla pena de morte, que protesta: “A primeira pena de morte ainda

Isto anda tudo ligado #7

Isto anda tudo ligado #7

 A democracia está em crise, viva a democracia   Vivemos em democracia. Podemos escrever esta frase sem hesitar. Dizemo-la sem reflectir sobre ela. A ideia de que as democracias liberais de tipo ocidental são uma espécie de zénite da política instalou-se nos últimos cinquenta anos. Usamo-la ainda para justificar invasões, golpes e guerras, mas são já demasiado visíveis as brechas que apresenta. É cedo para saber se estamos perante as ruínas de um sistema que

O banal global – o <i>normcore</i> na fotografia de Thomas Struth

O banal global – o normcore na fotografia de Thomas Struth

Thomas StruthAudience 7, Florence 2004Chromogenic print, 179,5 x 288,3 cm© Thomas Struth À excepção de um grupo essencialmente composto por chatos, sabichões e pedantes, ir a museus chegou a ser popularmente considerado o pai de todos os fretes. Entre crianças delirantes de tédio e adultos puídos arrastando os pés de artefacto em artefacto, a experiência era vivida por todos sob uma convenção tácita de reverência para com os preciosos objectos de significado insondável. Hoje, os

O romance do amante

O romance do amante

L’amant, l’amant, toujours recommencé!   O amante da China do Norte se abre com um prólogo em que Marguerite Duras explica logo no primeiro parágrafo a escolha do título: “O livro poderia ter se chamado O amor na rua ou O romance do amante ou O amante recomeçado. Finalmente escolhemos entre dois títulos mais vastos, mais verdadeiros: O amante da China do Norte ou A China do Norte”. Este prólogo, escrito em primeira pessoa, traz

Em Terra Queimada, KonMari

Em Terra Queimada, KonMari

É bonito, o armário que vejo na sala de estar. Domina o espaço, centrado na parede, ladeado por portas que me levarão até à sala de jantar, quando me decidir a dar um passo em frente. Não sei descrever o armário, mas mais tarde tentarei que o Google o faça por mim, atirando-lhe palavras soltas que talvez, em conjunto, o ajudem a ver aquilo que eu vejo. Deve ser do século XIX. É feito de

Rinocerontes e chalés suíços

Rinocerontes e chalés suíços

Texto de José Pedro Almeida, autor convidado. _ «O escritor cronista: perora sobre tudo, numa olímpica omnisciência. Está convencido de que tem muita graça e de que influi profundamente nos destinos do país. Imagina os governantes a lê-lo e a dizerem às mulheres (ou aos maridos): “Tem graça! Olha que este rapaz tem carradas de razão, vou passar a fazer como ele diz.” Às vezes é feroz, faz ameaças: “Ah, sim? Então eu desanco-o na

Nada, nicles, pevide.

Nada, nicles, pevide.

https://youtu.be/11tEDxlv36Q Apathy of apathies, all is apathy “Nada melhor do que não fazer nada”, murmurava a Rita Lee, defendendo fazer amor por telepatia. Mas se há coisa que ela não era era apática. Na chamada era da mediania, em que o normcore é a estética, a distinção é subversiva.    Dizia Vivienne Westwood, citada nesse primeiro artigo, que “toda a gente parece igual e as únicas pessoas que chamam a atenção são da minha idade.

Magníficos dias atlânticos

Magníficos dias atlânticos

Viver numa ilha não é para todos. Muito menos para quem não nasceu lá ou noutra ilha. Gosto de visitar ilhas. As com pessoas e as sem pessoas. Frequentemente, as ilhas com pessoas têm histórias mais interessantes, ou pelo menos que interessam a mais gente, que não é o mesmo. Um grande amigo estabeleceu-se numa ilha dos Açores há mais de trinta anos. Adaptou-se bastante bem. É mais açoriano do que muitos de berço que

A Comédia de Improviso<br>(ou o estranho caso dos Commedia a La Carte)

A Comédia de Improviso
(ou o estranho caso dos Commedia a La Carte)

O que é a comédia de improviso? Muitas coisas. Frequentemente é um exercício de trapézio sem rede, em que nos maravilhamos com a destreza, harmonia e coordenação de todos, e em que o artista se salva, quanto mais in extremis melhor, de falhar o contacto com o seu trapézio ou parceiro. Não é raro que o artista se esbardalhe no chão, em frente a muitas ou poucas pessoas, algumas delas felizes por verem o desastre

Da série personagens do meu país (5): Rui Amália

Da série personagens do meu país (5): Rui Amália

Poeta desconhecido e deslumbrado, nasceu em Verride, perto da Figueira da Foz, em 1950. Publicou dois livros de poemas: o primeiro em Setembro de 1974 e o segundo em Junho de 1975. Numa entrevista feita por ele a ele (“uma recriação do espaço transbordante da recusa mercantil do mediatismo“) e publicado  sob  a forma de anúncio pago no Diário de Lisboa, em 1977, explicou as suas raízes literárias:    ” Vivi muito tempo na ilusão

A honra perdida de José Maria Seleiro: memória do Big Brother 1

A honra perdida de José Maria Seleiro: memória do Big Brother 1

Teolinda Gersão, que eu saiba, nunca esteve na “Casa Mais Famosa de Portugal”, e é pena. Em todo o caso, escreveu um conto intitulado “Big Brother isn’t watching you”, no qual umas meninas adolescentes da classe média-baixa, todas com os nomes da praxe (Elizabeth, Carina, Vanessa, Andreia, Débora), negligenciadas pelas famílias e seduzidas pelas vidas glamorosas das revistas cor-de-rosa e dos reality shows, decidem assassinar uma colega, a Tânia, somente na mira da fama.   Saído

A geologia já é uma ciência

A geologia já é uma ciência

Num estudo de opinião realizado entre amigos, chegámos à conclusão de que, durante os anos compreendidos entre 2007 e 2019, o físico teórico com maior reconhecimento internacional fora do meio académico terá sido Sheldon Cooper. Quem é o Dr. Cooper? O leitor mais atento, e com melhor memória, talvez consiga recordar este nome como um dos principais personagens da série televisiva The Big Bang Theory. Ao longo de 279 episódios, a série desenvolve-se através de

A vida suada do Baleia Assassina e do Capitão Fantástico

A vida suada do Baleia Assassina e do Capitão Fantástico

Chovia copiosamente naquela manhã de sábado em que o Baleia Assassina e o Capitão Fantástico tinham agendado para o Campo da Feira, em Benavente, o primeiro dos seus tão fenomenais como intermináveis combates até à morte. Havia quem, com ponta de malícia, os apelidasse de combates até à morte lenta, mas nós, nesse tempo, ainda não estávamos aptos para perceber as manigâncias enviesadas dos sentidos do humor.Na véspera, tínhamos ficado à espera numa curva da

Simpatia Inacabada #9

Simpatia Inacabada #9

NOTAS DE VERÃO E OUTONO: RECOMPOSIÇÃO   Neste Verão, quando Maya Dunietz começou a tocar Emahoy Tségué-Guébrou no jardim de uma galeria de arte em Lisboa, ouviu-se o vento nas árvores e um bando de andorinhas traçou espirais no céu. Pensei que as andorinhas iam acompanhar o concerto chilreando, gorjeando e trinfando, mas não. O próprio melro que entretanto apareceu acabou por voar para uma árvore. Protestou um pouco, mas depois calou-se. Até os pássaros

A mais trágica e bela estação

A mais trágica e bela estação

1. Fim de junho, a camioneta dá entrada na gare de Campanhã, os motores desligam enquanto atendo o telemóvel. É o número da minha mãe, mas surpreende a voz do senhor Manel. “A mãe caiu no corredor do prédio”, ouço os uivos de dor por detrás da voz sóbria do porteiro. Uns dias antes, a voz era a da própria a contar, orgulhosa, das caminhadas com amigas pelas belezas frondosas das ilhas Flores e Corvo,

Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada

Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada

The most beautiful location in the world doesn’t mean shit next to Steve McQueen’s face. William Friedkin   Caro leitor anónimo Descia as ruas do Porto na zona oriental da cidade e deparei-me com duas máscaras pousadas (uma veneziana, uma dos Anonymous), esquecidas, dentro de um carro. Duas máscaras: que estórias escondem estes adereços?  Que viram? Uma noite diferente, fantasias? Um assalto?  Uma surpresa a um amigo desaparecido?   Trazer o mesmo rosto todos os

Farol

Farol

Fotografia de Álvaro Domingues Estamos fartas de enviar postais às nossas amigas explicando que nada temos a ver com aquele gigantesco lampadário que está ali atrás no meio das oliveiras. É tão alto que seria preciso empilhar oitenta vacas adultas e escorreitas para que os chifres da última tocassem o topo daquela lanterna que se vê mais ao longe do que um farol na costa. Apesar das limitações de raciocínio que dizem que temos, do

Capa do n.º 9 da Almanaque

Capa do n.º 9 da Almanaque

Capa “A” do Nº 9 da Almanaque, Outubro de 2023; ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido. Sobre as capas do Nº9 da Almanaque. Capa alternativa do Nº 9 da Almanaque, Outubro de 2023; ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido. Capa Alternativa do Nº 9 da Almanaque, Outubro de 2023; ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido. Capa Alternativa do Nº 9 da Almanaque, Outubro de 2023; ilustração

A Vida de Brian e a JMJ

A Vida de Brian e a JMJ

Este Agosto, enquanto os leitores da Almanaque se deliciam com um novo número, enquanto saboreiam sofisticados cocktails nos mais recônditos e exclusivos lugares paradisíacos do nosso planeta, Lisboa será invadida por uma multidão de jovens e para-jovens, paramentados ou nem por isso, em busca de ver ao vivo, e num palco francamente polémico, o Papa Francisco. É possível que o número supere o milhão e meio de participantes vindos de todo o mundo, espalhados numa

Quem?

Quem?

Não é que esteja a esquivar-me ao assunto. Ou a tentar formar frases para que se ajustem a um tema. A verdade é que, as mais das vezes, não me recordo do que eu própria escrevi, quanto mais do que li – quanto mais, então, do que pensei escrever ou estive à beira de escrever. Patrick Süskind ganhou fama com O Perfume, o seu terceiro livro (entre nós, há uma edição da Editorial Presença, traduzida

Isto anda tudo ligado #6

Isto anda tudo ligado #6

Nós somos o inferno do outro   A política é uma ferramenta para organizar comunidades. Mas a própria ideia de comunidade é uma construção política de um “nós” que, muitas vezes, só conseguimos perceber em função de um “eles” que nos seja estranho. É nos contornos da diferença que nos separa que desenhamos o que somos. E é por isso que o “outro” é um elemento essencial em tantas narrativas políticas. O que é o

Carta aberta ao pobre candidato a estudante de História a caminho da Universidade

Carta aberta ao pobre candidato a estudante de História a caminho da Universidade

Depois de semanas de angústia, se o teu nome constar das listas de admitidos, espera-te a Universidade, templo de sabedoria, ringue de treino cognitivo, incubadora para os teus sonhos. Mas na primeira manhã de glória, no dia da matrícula, talvez te suceda seres vítima de um veterano trajado com gravatinha de luto e casaca de seminarista, armado de espuma de barbear. Com mal disfarçado desejo, obrigará alguns a andar de gatas e a outros gritará

A Inteligência Artificial e o Ecossistema Informativo

A Inteligência Artificial e o Ecossistema Informativo

No passado dia 5 de junho, Vera Jourova, vice-presidente da Comissão Europeia para os valores e transparência, dizia, após reunião com os signatários do Código de boas práticas para a Desinformação, que a liberdade de expressão pertence aos Humanos, e não às máquinas.   O desenvolvimento da Inteligência Artificial (IA) terá impacto em diversos setores, e o ecossistema informativo não é exceção. Ferramentas como o ChatGPT podem ser um fator de crescimento mas, simultaneamente, de

Não consigo dormir com o barulho dos indianos a reencarnar

Não consigo dormir com o barulho dos indianos a reencarnar

Na Índia há milhões e milhões de pessoas. Certas enciclopédias dizem que são 900 milhões de pessoas. Alguns atlas referem mil e trezentos milhões. Vê-se bem que nem as enciclopédias nem os atlas foram alguma vez à Índia. Na Índia há milhões e milhões e milhões e milhões e milhões de milhões de pessoas. Sei muito bem do que estou a falar: já fui muitas e muitas vezes à Índia. Talvez não um milhão de

Viva eu

Viva eu

         Quem é eu quando se diz eu na literatura e na arte? Arthur Rimbaud, em carta para seu professor Georges Izambard em 13 de maio de 1871, ofereceu uma resposta célebre ao afirmar: “Eu é um outro” (“Je est un autre”). Nessa frase curta e precisa – de uma precisão que só os poetas são capazes de produzir –, está contida toda uma teoria da literatura. Ao conjugar o verbo em terceira pessoa, Rimbaud

Da série personagens do meu país (4): Hércules Dias

Da série personagens do meu país (4): Hércules Dias

Deixou uma marca indelével na política e no jornalismo português. Amigo do seu amigo, defensor das populações com dificuldades, suportou, no entanto, uma campanha de ódio e maledicência como poucos. Multifacetado, foi autarca, deputado, jornalista e escritor. Na sua morte, em 2004, dele disse Almeida Santos: Não morreu um homem, nasceu uma herança de probidade, cultura e dedicação. Hércules Dias nasceu na Guarda, em 1930, num ambiente politizado e intelectual. O pai, licenciado em Química, foi

Teatro cósmico #8

Teatro cósmico #8

Achas que? Para quem não viu o espetáculo Ão de André e. Teodósio, Ana Rita Teodoro e João Neves, apresentado em maio de 2023 no Teatro do Bairro Alto em Lisboa, importa talvez contar a história. Era uma vez alguém que pisou um som e o som, que dói, magoou. O som é ~ e a pessoa que o pisou e se magoou deverá aprender a viver ou morrer com ele. O som vai-se repetindo

<i>Unexplainable</i>

Unexplainable

Uma orca faz o luto? Um animal — não humano — pode sofrer de dor emocional pela morte de um dos seus? As perguntas podem parecer descabidas, mas nos finais de julho e inícios de agosto de 2018 esta questão foi mesmo colocada com todas as letras. O assunto foi notícia quando junto à costa sudoeste do Canadá uma orca fêmea adulta — conhecida pelos biólogos marinhos como J-35 — foi avistada a transportar o

Tarot Almanaque – Agosto 2023

Tarot Almanaque – Agosto 2023

Carta XXIII – A Bruxa (Ao que parece,) aspectos positivos: Insegurança, frivolidade, falta de amor-próprio, corporativismo, capitalismo, domesticidade, saltos altos sempre!, expectativas irrealistas de beleza estereotipada (Pelos vistos,) do lado negativo: Confiança (feminina), poder (feminino), assertividade (feminina), tranquilidade (feminina), realização profissional (feminina), laivos de feminismo, emancipação (feminina), questionamento (feminino), “feitiçaria”, sedução. Ou vice-versa, dependendo do “Gaze” _____ A quantos graus Fahrenheit arde uma Barbie? Estamos no ano de MMXXIII, 128 anos depois da invenção do

O futuro aparente

O futuro aparente

Uma discussão interessante é feita por Cícero no Tratado do Destino (IX,17). Convida Diodoro, Epicuro e Crísipo: Tudo o que acontece teve de acontecer. As proposições sobre o futuro são tão verdadeiras como as sobre o passado ainda que nestas a impossibilidade de as modificar seja aparente. Já sobre o futuro essa aparência não é tão evidente. Isto é um dos eixos do estoicismo. Tudo o que aconteceu teve de acontecer representa o aceitar da vida no que ela configura de luto pela nossa omnipotência.  A nota

Um unicórnio em cada onda

Um unicórnio em cada onda

Após uma longa viagem pelos meus arquivos virtuais, lá consegui encontrar a primeira vez em que pisei um navio científico: foi em junho de 2008. Tinha 21 anos. Nesse primeiro cruzeiro científico, foram quase trinta dias sem pôr pés em terra: de Cádis, no Sul de Espanha, a Lisboa. Quase um mês a bordo de um navio russo, o simultaneamente admirável e decrépito Professor Logachev, com o alto patrocínio do programa Training-Through-Research (TTR) – Floating

Rebentou o pneu e a guerra

Rebentou o pneu e a guerra

1. Manhã de fevereiro de 2022. Dou um beijo à filha ao pousar a mochila da Dora aventureira à porta da escola: «Hoje é o pai que te vem buscar. Boa semana. Adeus querida.» Ontem observei-a a desenhar rodeada de crianças. Viu-me e mostrou-me o desenho, uma montanha ou um vulcão, pareceu-me. Mas era «uma menina com vestido gigante.» A colega insistia: «queres vir brincar a minha casa?» – é uma coisa que elas dizem

Retrato do Humorista quando Sóbrio

Retrato do Humorista quando Sóbrio

Em Hubris, o espectáculo a solo de Daniel Sloss que passou pelo Teatro Tivoli em setembro de 2021, o humorista escocês chibava-se dos pares e da sua normalização como consumidores de drogas. “O vosso preferido que acham que nunca seria capaz de se drogar? Lamento dizer-vos, mas é o pior deles todos”. Metade queixume e metade sátira clandestina, a traição de classe por parte de Sloss abria-lhe a premissa para a sua própria história, reflectindo

Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada

Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada

 I´m out with lanterns, looking for myself. Emily Dickinson   Tic-tac. Tic -tac. Ou É tarde!  É tarde! Como diria o coelho de Alice, de relógio na mão, com o medo de perder a cabeça. Falhar deadlines: a última invenção para conseguirmos responder a prazos. Ficar tão prenhe de uma ideia, de um mundo que não há mais palavras: chegar ao fim de um ensaio com a boca muda, porque engravidamos de palavras de outros.

Há mar e mar, há veenho e voltar

Há mar e mar, há veenho e voltar

No dia 30 de junho, os Veenho, uma banda lisboeta composta por Martim Brito, António Eça, Xixo e Gonçalo Formiga, lançou o seu terceiro disco, Lofizera. O álbum foi produzido pela própria banda e é editado pela Xita Records. Este disco é a concretização de uma promessa iniciada no segundo álbum (sem título, tal como o primeiro, e tal como o primeiro, editado em 2017) da banda. O primeiro álbum dos Veenho é um exercício

Últimas Edições