Em Terra Queimada, KonMari

É bonito, o armário que vejo na sala de estar. Domina o espaço, centrado na parede, ladeado por portas que me levarão até à sala de jantar, quando me decidir a dar um passo em frente. Não sei descrever o armário, mas mais tarde tentarei que o Google o faça por mim, atirando-lhe palavras soltas que talvez, em conjunto, o ajudem a ver aquilo que eu vejo. Deve ser do século XIX. É feito de madeira enegrecida e decorado, na

Em Terra Queimada, KonMari

Em Terra Queimada, KonMari

É bonito, o armário que vejo na sala de estar. Domina o espaço, centrado na parede, ladeado por portas que me levarão até à sala

Destaques

Rinocerontes e chalés suíços

Rinocerontes e chalés suíços

Texto de José Pedro Almeida, autor convidado. _ «O escritor cronista: perora sobre tudo, numa

Todos os artigos

Uma peta sobre a Ucrânia

Uma peta sobre a Ucrânia

Ante Gotovina, ex-legionário francês, regressa à Croácia em 1990. Em 1996 é designado comandante do distrito militar de Split, dois anos depois é promovido a major-general. A 4 de Agosto de 1995 o exército croata captura Krajina e Gotovina instala-se. O Tribunal Penal Internacional publica em Maio de 2001 a acusação (caso IT-01-45-1), pela caneta de Carla del Ponte. Gotovina é acusado, entre vários crimes (deportação, destruição de habitações etc.), da execução de pelo menos

O conflito israelo-palestiniano e os moderados

O conflito israelo-palestiniano e os moderados

No dia 8 de Outubro de 2023, na ressaca do massacre hediondo dos terroristas do Hamas a sobretudo civis israelitas, Israel atingiu um pico de legitimidade moral a que provavelmente já não chegava há décadas, mas que perderia em poucos dias, tal a dimensão da sua “poderosa vingança” (a expressão de Netanyahu) sobre alguns terroristas e muitos civis da faixa de Gaza. A 30 de Outubro de 2023, às vítimas israelitas (1300 mortos, incluindo cerca

Aprenda esta receita rápida e impressione os seus convidados

Aprenda esta receita rápida e impressione os seus convidados

1. Num primeiro momento, enquanto o lava muito bem para lhe retirar o amido extra, assista a “Spam”, aquele consagrado sketch dos Monty Python. Incontestavelmente, é um vídeo que não só tem muita graça, reforçada pela mise-en-scène repleta de vikings cantantes que auxiliam os protagonistas, como é também um retrato fiel da nossa sociedade. Primeiro, porque eles têm razão: a ilusão de escolha é a punchline a que somos levados pela contradição entre um extenso

Teatro Cósmico #9

Teatro Cósmico #9

Teatro, romance e quotidiano   Em 1937, Somerset Maugham publicou um romance chamado Teatro, que conta a história de um casal (ele empresário e ex-ator e ela atriz e vedeta) centrada na figura feminina, Julia Lambert, que se envolve num caso extraconjugal com um jovem contabilista. O que mais me diverte no romance é o modo como Maugham se apoia nos lugares-comuns associados à figura do ator em geral e da atriz em particular. A

Bretanha – Portugal ao virar da esquina

Bretanha – Portugal ao virar da esquina

Fotografia de Helena Araújo Galgenhumor é uma palavra alemã para designar o humor que alguém faz a propósito da situação desesperada em que se encontra. Um dos exemplos mais famosos é o do criminoso que, ao saber que vai ser executado numa segunda-feira, revira os olhos e comenta: “A semana já me começa bem…”. Ou o réu, a quem o tribunal anuncia uma tripla pena de morte, que protesta: “A primeira pena de morte ainda

Isto anda tudo ligado #7

Isto anda tudo ligado #7

 A democracia está em crise, viva a democracia   Vivemos em democracia. Podemos escrever esta frase sem hesitar. Dizemo-la sem reflectir sobre ela. A ideia de que as democracias liberais de tipo ocidental são uma espécie de zénite da política instalou-se nos últimos cinquenta anos. Usamo-la ainda para justificar invasões, golpes e guerras, mas são já demasiado visíveis as brechas que apresenta. É cedo para saber se estamos perante as ruínas de um sistema que

O banal global – o <i>normcore</i> na fotografia de Thomas Struth

O banal global – o normcore na fotografia de Thomas Struth

Thomas StruthAudience 7, Florence 2004Chromogenic print, 179,5 x 288,3 cm© Thomas Struth À excepção de um grupo essencialmente composto por chatos, sabichões e pedantes, ir a museus chegou a ser popularmente considerado o pai de todos os fretes. Entre crianças delirantes de tédio e adultos puídos arrastando os pés de artefacto em artefacto, a experiência era vivida por todos sob uma convenção tácita de reverência para com os preciosos objectos de significado insondável. Hoje, os

O romance do amante

O romance do amante

L’amant, l’amant, toujours recommencé!   O amante da China do Norte se abre com um prólogo em que Marguerite Duras explica logo no primeiro parágrafo a escolha do título: “O livro poderia ter se chamado O amor na rua ou O romance do amante ou O amante recomeçado. Finalmente escolhemos entre dois títulos mais vastos, mais verdadeiros: O amante da China do Norte ou A China do Norte”. Este prólogo, escrito em primeira pessoa, traz

Nada, nicles, pevide.

Nada, nicles, pevide.

https://youtu.be/11tEDxlv36Q Apathy of apathies, all is apathy “Nada melhor do que não fazer nada”, murmurava a Rita Lee, defendendo fazer amor por telepatia. Mas se há coisa que ela não era era apática. Na chamada era da mediania, em que o normcore é a estética, a distinção é subversiva.    Dizia Vivienne Westwood, citada nesse primeiro artigo, que “toda a gente parece igual e as únicas pessoas que chamam a atenção são da minha idade.

Magníficos dias atlânticos

Magníficos dias atlânticos

Viver numa ilha não é para todos. Muito menos para quem não nasceu lá ou noutra ilha. Gosto de visitar ilhas. As com pessoas e as sem pessoas. Frequentemente, as ilhas com pessoas têm histórias mais interessantes, ou pelo menos que interessam a mais gente, que não é o mesmo. Um grande amigo estabeleceu-se numa ilha dos Açores há mais de trinta anos. Adaptou-se bastante bem. É mais açoriano do que muitos de berço que

A Comédia de Improviso<br>(ou o estranho caso dos Commedia a La Carte)

A Comédia de Improviso
(ou o estranho caso dos Commedia a La Carte)

O que é a comédia de improviso? Muitas coisas. Frequentemente é um exercício de trapézio sem rede, em que nos maravilhamos com a destreza, harmonia e coordenação de todos, e em que o artista se salva, quanto mais in extremis melhor, de falhar o contacto com o seu trapézio ou parceiro. Não é raro que o artista se esbardalhe no chão, em frente a muitas ou poucas pessoas, algumas delas felizes por verem o desastre

Da série personagens do meu país (5): Rui Amália

Da série personagens do meu país (5): Rui Amália

Poeta desconhecido e deslumbrado, nasceu em Verride, perto da Figueira da Foz, em 1950. Publicou dois livros de poemas: o primeiro em Setembro de 1974 e o segundo em Junho de 1975. Numa entrevista feita por ele a ele (“uma recriação do espaço transbordante da recusa mercantil do mediatismo“) e publicado  sob  a forma de anúncio pago no Diário de Lisboa, em 1977, explicou as suas raízes literárias:    ” Vivi muito tempo na ilusão

A geologia já é uma ciência

A geologia já é uma ciência

Num estudo de opinião realizado entre amigos, chegámos à conclusão de que, durante os anos compreendidos entre 2007 e 2019, o físico teórico com maior reconhecimento internacional fora do meio académico terá sido Sheldon Cooper. Quem é o Dr. Cooper? O leitor mais atento, e com melhor memória, talvez consiga recordar este nome como um dos principais personagens da série televisiva The Big Bang Theory. Ao longo de 279 episódios, a série desenvolve-se através de

A vida suada do Baleia Assassina e do Capitão Fantástico

A vida suada do Baleia Assassina e do Capitão Fantástico

Chovia copiosamente naquela manhã de sábado em que o Baleia Assassina e o Capitão Fantástico tinham agendado para o Campo da Feira, em Benavente, o primeiro dos seus tão fenomenais como intermináveis combates até à morte. Havia quem, com ponta de malícia, os apelidasse de combates até à morte lenta, mas nós, nesse tempo, ainda não estávamos aptos para perceber as manigâncias enviesadas dos sentidos do humor.Na véspera, tínhamos ficado à espera numa curva da

Simpatia Inacabada #9

Simpatia Inacabada #9

NOTAS DE VERÃO E OUTONO: RECOMPOSIÇÃO   Neste Verão, quando Maya Dunietz começou a tocar Emahoy Tségué-Guébrou no jardim de uma galeria de arte em Lisboa, ouviu-se o vento nas árvores e um bando de andorinhas traçou espirais no céu. Pensei que as andorinhas iam acompanhar o concerto chilreando, gorjeando e trinfando, mas não. O próprio melro que entretanto apareceu acabou por voar para uma árvore. Protestou um pouco, mas depois calou-se. Até os pássaros

A mais trágica e bela estação

A mais trágica e bela estação

1. Fim de junho, a camioneta dá entrada na gare de Campanhã, os motores desligam enquanto atendo o telemóvel. É o número da minha mãe, mas surpreende a voz do senhor Manel. “A mãe caiu no corredor do prédio”, ouço os uivos de dor por detrás da voz sóbria do porteiro. Uns dias antes, a voz era a da própria a contar, orgulhosa, das caminhadas com amigas pelas belezas frondosas das ilhas Flores e Corvo,

Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada

Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada

The most beautiful location in the world doesn’t mean shit next to Steve McQueen’s face. William Friedkin   Caro leitor anónimo Descia as ruas do Porto na zona oriental da cidade e deparei-me com duas máscaras pousadas (uma veneziana, uma dos Anonymous), esquecidas, dentro de um carro. Duas máscaras: que estórias escondem estes adereços?  Que viram? Uma noite diferente, fantasias? Um assalto?  Uma surpresa a um amigo desaparecido?   Trazer o mesmo rosto todos os

Farol

Farol

Fotografia de Álvaro Domingues Estamos fartas de enviar postais às nossas amigas explicando que nada temos a ver com aquele gigantesco lampadário que está ali atrás no meio das oliveiras. É tão alto que seria preciso empilhar oitenta vacas adultas e escorreitas para que os chifres da última tocassem o topo daquela lanterna que se vê mais ao longe do que um farol na costa. Apesar das limitações de raciocínio que dizem que temos, do

Capa do n.º 9 da Almanaque

Capa do n.º 9 da Almanaque

Capa “A” do Nº 9 da Almanaque, Outubro de 2023; ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido. Sobre as capas do Nº9 da Almanaque. Capa alternativa do Nº 9 da Almanaque, Outubro de 2023; ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido. Capa Alternativa do Nº 9 da Almanaque, Outubro de 2023; ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido. Capa Alternativa do Nº 9 da Almanaque, Outubro de 2023; ilustração

A Vida de Brian e a JMJ

A Vida de Brian e a JMJ

Este Agosto, enquanto os leitores da Almanaque se deliciam com um novo número, enquanto saboreiam sofisticados cocktails nos mais recônditos e exclusivos lugares paradisíacos do nosso planeta, Lisboa será invadida por uma multidão de jovens e para-jovens, paramentados ou nem por isso, em busca de ver ao vivo, e num palco francamente polémico, o Papa Francisco. É possível que o número supere o milhão e meio de participantes vindos de todo o mundo, espalhados numa

Quem?

Quem?

Não é que esteja a esquivar-me ao assunto. Ou a tentar formar frases para que se ajustem a um tema. A verdade é que, as mais das vezes, não me recordo do que eu própria escrevi, quanto mais do que li – quanto mais, então, do que pensei escrever ou estive à beira de escrever. Patrick Süskind ganhou fama com O Perfume, o seu terceiro livro (entre nós, há uma edição da Editorial Presença, traduzida

Isto anda tudo ligado #6

Isto anda tudo ligado #6

Nós somos o inferno do outro   A política é uma ferramenta para organizar comunidades. Mas a própria ideia de comunidade é uma construção política de um “nós” que, muitas vezes, só conseguimos perceber em função de um “eles” que nos seja estranho. É nos contornos da diferença que nos separa que desenhamos o que somos. E é por isso que o “outro” é um elemento essencial em tantas narrativas políticas. O que é o

Carta aberta ao pobre candidato a estudante de História a caminho da Universidade

Carta aberta ao pobre candidato a estudante de História a caminho da Universidade

Depois de semanas de angústia, se o teu nome constar das listas de admitidos, espera-te a Universidade, templo de sabedoria, ringue de treino cognitivo, incubadora para os teus sonhos. Mas na primeira manhã de glória, no dia da matrícula, talvez te suceda seres vítima de um veterano trajado com gravatinha de luto e casaca de seminarista, armado de espuma de barbear. Com mal disfarçado desejo, obrigará alguns a andar de gatas e a outros gritará

A Inteligência Artificial e o Ecossistema Informativo

A Inteligência Artificial e o Ecossistema Informativo

No passado dia 5 de junho, Vera Jourova, vice-presidente da Comissão Europeia para os valores e transparência, dizia, após reunião com os signatários do Código de boas práticas para a Desinformação, que a liberdade de expressão pertence aos Humanos, e não às máquinas.   O desenvolvimento da Inteligência Artificial (IA) terá impacto em diversos setores, e o ecossistema informativo não é exceção. Ferramentas como o ChatGPT podem ser um fator de crescimento mas, simultaneamente, de

Não consigo dormir com o barulho dos indianos a reencarnar

Não consigo dormir com o barulho dos indianos a reencarnar

Na Índia há milhões e milhões de pessoas. Certas enciclopédias dizem que são 900 milhões de pessoas. Alguns atlas referem mil e trezentos milhões. Vê-se bem que nem as enciclopédias nem os atlas foram alguma vez à Índia. Na Índia há milhões e milhões e milhões e milhões e milhões de milhões de pessoas. Sei muito bem do que estou a falar: já fui muitas e muitas vezes à Índia. Talvez não um milhão de

Viva eu

Viva eu

         Quem é eu quando se diz eu na literatura e na arte? Arthur Rimbaud, em carta para seu professor Georges Izambard em 13 de maio de 1871, ofereceu uma resposta célebre ao afirmar: “Eu é um outro” (“Je est un autre”). Nessa frase curta e precisa – de uma precisão que só os poetas são capazes de produzir –, está contida toda uma teoria da literatura. Ao conjugar o verbo em terceira pessoa, Rimbaud

Da série personagens do meu país (4): Hércules Dias

Da série personagens do meu país (4): Hércules Dias

Deixou uma marca indelével na política e no jornalismo português. Amigo do seu amigo, defensor das populações com dificuldades, suportou, no entanto, uma campanha de ódio e maledicência como poucos. Multifacetado, foi autarca, deputado, jornalista e escritor. Na sua morte, em 2004, dele disse Almeida Santos: Não morreu um homem, nasceu uma herança de probidade, cultura e dedicação. Hércules Dias nasceu na Guarda, em 1930, num ambiente politizado e intelectual. O pai, licenciado em Química, foi

Teatro cósmico #8

Teatro cósmico #8

Achas que? Para quem não viu o espetáculo Ão de André e. Teodósio, Ana Rita Teodoro e João Neves, apresentado em maio de 2023 no Teatro do Bairro Alto em Lisboa, importa talvez contar a história. Era uma vez alguém que pisou um som e o som, que dói, magoou. O som é ~ e a pessoa que o pisou e se magoou deverá aprender a viver ou morrer com ele. O som vai-se repetindo

<i>Unexplainable</i>

Unexplainable

Uma orca faz o luto? Um animal — não humano — pode sofrer de dor emocional pela morte de um dos seus? As perguntas podem parecer descabidas, mas nos finais de julho e inícios de agosto de 2018 esta questão foi mesmo colocada com todas as letras. O assunto foi notícia quando junto à costa sudoeste do Canadá uma orca fêmea adulta — conhecida pelos biólogos marinhos como J-35 — foi avistada a transportar o

Tarot Almanaque – Agosto 2023

Tarot Almanaque – Agosto 2023

Carta XXIII – A Bruxa (Ao que parece,) aspectos positivos: Insegurança, frivolidade, falta de amor-próprio, corporativismo, capitalismo, domesticidade, saltos altos sempre!, expectativas irrealistas de beleza estereotipada (Pelos vistos,) do lado negativo: Confiança (feminina), poder (feminino), assertividade (feminina), tranquilidade (feminina), realização profissional (feminina), laivos de feminismo, emancipação (feminina), questionamento (feminino), “feitiçaria”, sedução. Ou vice-versa, dependendo do “Gaze” _____ A quantos graus Fahrenheit arde uma Barbie? Estamos no ano de MMXXIII, 128 anos depois da invenção do

O futuro aparente

O futuro aparente

Uma discussão interessante é feita por Cícero no Tratado do Destino (IX,17). Convida Diodoro, Epicuro e Crísipo: Tudo o que acontece teve de acontecer. As proposições sobre o futuro são tão verdadeiras como as sobre o passado ainda que nestas a impossibilidade de as modificar seja aparente. Já sobre o futuro essa aparência não é tão evidente. Isto é um dos eixos do estoicismo. Tudo o que aconteceu teve de acontecer representa o aceitar da vida no que ela configura de luto pela nossa omnipotência.  A nota

Um unicórnio em cada onda

Um unicórnio em cada onda

Após uma longa viagem pelos meus arquivos virtuais, lá consegui encontrar a primeira vez em que pisei um navio científico: foi em junho de 2008. Tinha 21 anos. Nesse primeiro cruzeiro científico, foram quase trinta dias sem pôr pés em terra: de Cádis, no Sul de Espanha, a Lisboa. Quase um mês a bordo de um navio russo, o simultaneamente admirável e decrépito Professor Logachev, com o alto patrocínio do programa Training-Through-Research (TTR) – Floating

Rebentou o pneu e a guerra

Rebentou o pneu e a guerra

1. Manhã de fevereiro de 2022. Dou um beijo à filha ao pousar a mochila da Dora aventureira à porta da escola: «Hoje é o pai que te vem buscar. Boa semana. Adeus querida.» Ontem observei-a a desenhar rodeada de crianças. Viu-me e mostrou-me o desenho, uma montanha ou um vulcão, pareceu-me. Mas era «uma menina com vestido gigante.» A colega insistia: «queres vir brincar a minha casa?» – é uma coisa que elas dizem

Retrato do Humorista quando Sóbrio

Retrato do Humorista quando Sóbrio

Em Hubris, o espectáculo a solo de Daniel Sloss que passou pelo Teatro Tivoli em setembro de 2021, o humorista escocês chibava-se dos pares e da sua normalização como consumidores de drogas. “O vosso preferido que acham que nunca seria capaz de se drogar? Lamento dizer-vos, mas é o pior deles todos”. Metade queixume e metade sátira clandestina, a traição de classe por parte de Sloss abria-lhe a premissa para a sua própria história, reflectindo

Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada

Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada

 I´m out with lanterns, looking for myself. Emily Dickinson   Tic-tac. Tic -tac. Ou É tarde!  É tarde! Como diria o coelho de Alice, de relógio na mão, com o medo de perder a cabeça. Falhar deadlines: a última invenção para conseguirmos responder a prazos. Ficar tão prenhe de uma ideia, de um mundo que não há mais palavras: chegar ao fim de um ensaio com a boca muda, porque engravidamos de palavras de outros.

Há mar e mar, há veenho e voltar

Há mar e mar, há veenho e voltar

No dia 30 de junho, os Veenho, uma banda lisboeta composta por Martim Brito, António Eça, Xixo e Gonçalo Formiga, lançou o seu terceiro disco, Lofizera. O álbum foi produzido pela própria banda e é editado pela Xita Records. Este disco é a concretização de uma promessa iniciada no segundo álbum (sem título, tal como o primeiro, e tal como o primeiro, editado em 2017) da banda. O primeiro álbum dos Veenho é um exercício

O pedro-nunismo

O pedro-nunismo

Já houve o soarismo, o cavaquismo, o guterrismo, o barrosismo, o socratismo, o passos-coelhismo e vivemos o costismo, mas há pelo menos 5 anos que se anuncia outra coisa. Como os outros termos, designa menos uma mundividência política do que uma falange de apoio e um modus operandi de conquista do poder, porém é o único que inclui um nome próprio no termo. Tomemos por hipótese que o intrusivo “pedro” de pedro-nunismo é mais uma 

Da série personagens do meu país (4): Conceição Carvalho do Ó.

Da série personagens do meu país (4): Conceição Carvalho do Ó.

Advogada lançada nas tarefas ministeriais, benfeitora, mulher de armas, de origem humilde, mas com transcurso brilhante. Ganhou o respeito dos seus concidadãos pela forma abnegada como se empenhou na vida pública e pelo modo recatado como dela se soube retirar. Nasceu em 1950, na Boavista, um pequeno lugar do distrito de Leiria, e cresceu com broa e carapaus secos da Nazaré, que dividia com as quatro irmãs. Diz por isso que aprecia hoje mais os

Simpatia Inacabada #8

Simpatia Inacabada #8

FUGIR AO ASSUNTO Quantos textos haverá no mundo com personagens que têm caderninhos pretos? Num destes dias, ouvindo por acaso uma canção de Nick Cave sobre uma rapariga chamada Bee, lembrei-me de um exercício que entreguei no primeiro ano da faculdade, quando a professora de Inglês pediu aos alunos um texto inspirado por um adágio popular. Entre a lista de adágios propostos, escolhi o pouco empolgante “Variety is the spice of life” (“a diversidade é

Novas do paraíso

Novas do paraíso

Besta de carga é o que mais ouço. Nota-se nesta curvatura do corpo, agora que me vejo caminhando descompassado e um tanto incerto. Já quase me esquecera do tempo ruim que trago inscrito em quase tudo que ainda penso; por isso estas costelas salientes, o pêlo que perdeu o brilho e a cabeça quase sempre baixa. Enfim. De pouco valem lamentações que ninguém ouve e o mundo muda mais rapidamente que o rodopio diário do

Capa do n.º 8 da Almanaque

Capa do n.º 8 da Almanaque

Capa do Nº 8 da Almanaque, Agosto de 2023; ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido.

O que é uma mulher?

O que é uma mulher?

O recém-falecido Martin Amis dizia que a literatura é uma guerra contra os clichés (da linguagem), uma citação tão repetida que se tornou – por definição – muito pouco literária. A grande ciência é uma guerra parecida, mas contra o senso comum. O Sol não gira à volta da Terra, a Terra não é plana, os corpos atraem-se em função da sua massa e da distância que os separa, a luz pode ser uma onda

O Marxismo, tendência Groucho

O Marxismo, tendência Groucho

Groucho Marx, nascido Julius Henry Marx, em Nova Iorque, em 1890, disse um dia que “queria viver para sempre ou morrer a tentar”. Talvez não surpreendentemente, morreu a tentar, em Agosto de 1977. Entre um momento e outro, o tal tracinho que separa as datas de nascimento e morte nos obituários, ficou uma das mais longas, extraordinárias e influentes carreiras na história do humor americano e mundial, já para não falar de ele ser provavelmente

Weimar # 10

Weimar # 10

RITUAL – ESFERA – RABOS – UM POR CENTO – BOA NOVA   RITUAL A verdade, em democracia, incluirá um ritual, um reality show, dos verdadeiros, claro. Governante que tenha o azar de ser criticado duas semanas seguidas irá à televisão vestido de roupa importada, mas sustentável. No primeiro dia, jurará que nada sabia. No segundo, dirá que não se lembrava de que sabia, e no terceiro dia será demitido e pedirá desculpa na televisão,

As quotas de emprego para pessoas com deficiência são como aparelhos nos dentes

As quotas de emprego para pessoas com deficiência são como aparelhos nos dentes

Muitas vezes perguntam-me sobre se não há capacitismo subtil ou discriminação positiva na atribuição de quotas de emprego para a comunidade de pessoas com deficiência. É claro que preferiríamos um Mundo onde a promoção da diversidade fosse real e a inclusão emergisse de forma espontânea, mas se cá nevasse fazia-se cá ski. Não aconteceu desde a Revolução Industrial e – lamento dizê-lo – não aconteceu nunca de forma espontânea nas últimas décadas. Os argumentos repetem-se,

Na Era do Zettabyte pt. 2: Como ler o jornal

Na Era do Zettabyte pt. 2: Como ler o jornal

Em 1831, o erudito e estadista francês Alphonse de Lamartine antevia mudanças dramáticas na comunicação entre os homens: “Antes que este século termine, o jornalismo será tudo o que se imprime, será todo o pensamento humano. Através do prodigioso poder multiplicativo que o engenho concedeu à palavra – e que ainda virá a ser multiplicado por mil –, a humanidade escreverá o seu livro dia a dia, hora a hora, página a página. O pensamento

<i>Descrição do mundo</i>

Descrição do mundo

Procuramos o infinito de maneira obsessional, enquanto que somos nós o infinito. Giordano Bruno   No capítulo XIII do Gênesis, Iahweh diz a um já velho Abraão: «Tornarei a tua posteridade como poeira da terra: quem puder contar os grãos de poeira da terra poderá contar teus descendentes!».[1] Esta frase foi tomada de empréstimo por Roman Opalka para o título de uma de suas águas-fortes, realizada em 1970 – ano em que fez suas últimas gravuras

Desejos compulsivos: os recursos minerais e a transição energética

Desejos compulsivos: os recursos minerais e a transição energética

Demorei alguns anos para conseguir ter uma resposta eficaz, engatilhada, à simples, mas frequente questão: ‘O que é que tu fazes?’. Em resposta, facilmente me perdia nos detalhes e deixava de parte o essencial. As expressões de confusão, e repetidamente de aborrecimento, encontradas no outro interlocutor deixavam-me frequentemente frustrado e com o sentimento de que tinha falhado naquilo que deveria ser a minha missão mais simples, comunicar o que é o meu trabalho de forma

Simpatia Inacabada #7

Simpatia Inacabada #7

Patricia Highsmith Na secção literária do The New York Times, procuro sempre a rubrica “By the Book”, um inquérito sobre leituras de escritores ou pessoas ligadas aos livros. Leio em busca de histórias engraçadas ou referências a autores interessantes que ainda não conheça, mas, entre as perguntas recorrentes, há uma que me dá sempre que pensar: “Um grande livro pode estar mal escrito? Que outros critérios são mais importantes?” Proust escreve bem? Se calhar, a

A Maravilhosa Aritmética da Igualdade (de A a Z) #4

A Maravilhosa Aritmética da Igualdade (de A a Z) #4

Nota Introdutória.   A (cont.)   Androcentrismo    “Todos os psicólogos que estudaram a inteligência das mulheres reconhecem que elas representam as formas mais inferiores da evolução humana e estão mais próximas das crianças e dos selvagens do que do homem civilizado. Elas têm a inconstância, a falta de reflexão, a incapacidade para raciocinar. Nas raças mais inteligentes, como os parisienses, existe uma proporção notável da população feminina cujos crânios se aproximam mais pelo seu

Em frente ao vulcão, baleias vivas e mortas

Em frente ao vulcão, baleias vivas e mortas

1. Em 1988, a família rumava ao Faial. O pai contratado para construir a Assembleia Regional, a mãe colocada numa escola secundária ao lado da minha preparatória, o irmão na primária. A casa arrendada ficava no topo da cidade da Horta. Aliás, era uma quintinha: portão, carro sob parreiras, jardins descuidados, ou principescos, depende do grau de fantasia, de onde surgiam fontes de pedra e uma moradia elegantemente decadente. Havia vacas, gatos e cães açorianos.

Teatro cósmico #7

Teatro cósmico #7

O segredo do Bichinho do Teatro   “Bichinho do teatro” é uma expressão usada por pessoas que se sentem próximas do teatro e que gostam de fazer ou de ver teatro. Usa-se para nomear o inefável ou explicar o inexplicável, bem como o que carrega alguma estranheza ou especificidade não familiar e que por isso não tem outra palavra para o descrever. Nesse sentido, aproxima-se da ideia de fantasma ou de ser invisível que contém

<i>Happiness is a warm gun</i>

Happiness is a warm gun

She’s not a girl who misses muchDo do do do do do, oh yeah John Lennon   O poder da arte e da arquitectura na transformação do homem é fonte de suspeita. Já Platão considerava o actor um pernicioso ilusionista da realidade, máscara da verdade. A desconfiança não é nova, portanto. Dado o carácter público da arquitectura é necessário encontrarmos um território comum que nos permita conviver quotidianamente com o mau gosto do vizinho da

Uma beleza mitológica: sobre um concerto dos <i>Big Thief</i> em abril

Uma beleza mitológica: sobre um concerto dos Big Thief em abril

Passei muito tempo fixado na figura de James Krivchenia, colocado numa das pontas do palco, com uma camisa clara e calções, óculos quadrados e barba, careca, e com algum cabelo comprido. Lembra-me a figura de David Berman, vocalista dos Silver Jews, numa fotografia em que este está sentado num sofá, de casaco azul semiaberto, calças bege, e sandálias. Creio que vi a imagem quando li a notícia da sua morte, há uns anos. No entanto,

Isto anda tudo ligado # 5

Isto anda tudo ligado # 5

IA, Inevitabilidade Artificial A política é inseparável da acção. Quando intervimos no mundo, agimos politicamente. As nossas escolhas, mesmo que condicionadas por circunstâncias que não controlamos, produzem efeitos políticos. Isso acontece porque somos animais com capacidade de consciência e porque encontrámos formas de organização comum que se baseiam em entendimentos, tensões e relações de força. A forma como se hierarquizam valores ou se privilegiam determinados tipos de organização em relação a outros é a essência

Tem actualizações pendentes

Tem actualizações pendentes

Gosto de democracia e dedico uma parte substancial do meu tempo a essa causa. Mas, regra geral, aborreço-me ao ler textos sobre ela. Tal como a maior parte das abstracções que reúnem simpatia generalizada entre o público, o tema é um “clássico” para a escrita de textos quando a inspiração escasseia. No artigo deste mês para a Almanaque, vou viver perigosamente. 1. Entre o tanto que se escreve sobre a democracia, raras são as ocasiões

Foreindring

Foreindring

Cícero (De Oratore II, 351) conta que Temistócles disse um dia a um homem que queria aprender a arte de recordar: farias melhor em aprender a arte de esquecer. Sim, mas por acaso está ligada a outra bela arte: a de re-recordar ou, se preferirem, a dupla recordação. A memória é uma construção neuronal e hoje em dia aceitamos três tipos: a sensorial, a de curta duração e a de longa duração. Alguns avanços e

Pequenas doses de literatura

Pequenas doses de literatura

Dificilmente se sente mais a falta de tempo para ler do que em Maio, quando começa a Feira do Livro de Lisboa (e me lembro que na altura em que frequentava a Feira do Livro do Porto, a dificuldade era conseguir fazer as compras durarem mais de um mês…). Mas, na verdade, não é necessariamente uma questão de falta de tempo –- é mais uma questão de falta de tempo garantido, ou seja, de tempo

Bretanha – Guerra e Paz

Bretanha – Guerra e Paz

“Fantástico! Finalmente é segunda-feira, posso voltar ao trabalho!” Imagino que tenha sido este o sentimento de muitos franceses na véspera daquele dia 11 de Maio de 2020, a data marcada para aliviar bastante o pesado confinamento de quase dois meses (*) imposto à população francesa. Nós, não. Foi dia de gazeta ao trabalho, porque valores mais altos se alevantavam: tínhamos de ir fazer uma incursão na paisagem. Escolhemos a península de Crozon, que fica na

Do fim do mundo às portas do Éden: a ascensão de Gabriel Boric

Do fim do mundo às portas do Éden: a ascensão de Gabriel Boric

Texto de Gonçalo de Carvalho Amaro, autor convidado. _   Não foram 30 pesos, foram 30 anos Por volta das onze da noite de 17 de dezembro de 2017, perante um Sebastián Piñera sorridente, um grupo de chilenos entoava o hino do Chile: “Puro, Chile, es tu cielo azulado; puras brisas te cruzan también; y tu campo de flores bordado; es la copia feliz del Edén…”. Seria agora que o Chile se tornaria no paraíso,

Últimas Edições