Chovia copiosamente naquela manhã de sábado em que o Baleia Assassina e o Capitão Fantástico tinham agendado para o Campo da Feira, em Benavente, o primeiro dos seus tão fenomenais como intermináveis combates até à morte. Havia quem, com ponta de malícia, os apelidasse de combates até à morte lenta, mas nós, nesse tempo, ainda não estávamos aptos para perceber as manigâncias enviesadas dos sentidos do humor.
Na véspera, tínhamos ficado à espera numa curva da estrada do Porto Alto que viesse na frente dos saltimbancos uma qualquer espécie de Giuelietta Masina a gritar:
– È arrivato Zampanó!!!,
como a Gelsomina do filme do Fellini, a levar cachações do bruto do Anthony Quinn e a emendar-se à pressa,
– Zampanó è arrivato!!!,
mas bem pudemos esperar, qual Gelsomina qual carapuça!, apenas um velhote marreco numa motoreta desconjuntada com um reboque a saltitar atrás, o cigarro fumado até ao filtro dependurado no canto da boca, quase a cair, um panamá sebento a tapar-lhe as repas mal semeadas do cabelo, tirou as tábuas do reboque e agitou os braços como se fossem pás de moinho:
– Arreda a canalha!,
num tom que não admitia réplicas antes de começar a dar marteladas vigorosas no encaixe das madeiras, nós meio desiludidos com o aspecto pindérico do estrado que lhe nascia das mãos e do martelo, ainda com uma ligeira esperança na chegada tardia da Gelsomina que se foi diluindo à custa da fome, das gotas de chuva, que começaram por ser miudinhas , e do aparecimento inesperado dos espirros.
Sábado, como já disse, chovia que Deus a dava. O marreco montou as colunas do som logo pela manhã, e nós montámos a guarda aos acontecimentos. Já com o reforço numeroso dos Moritís
(que eram para aí uns sete irmãos),
aguentámos com estoicismo os decibéis exagerados das canções distorcidas do Cliff Richard
Congratulations
And celebrations,
avançávamos e recuávamos ao sabor da curiosidade e dos gestos em pás de moinho do marreco aos gritos
– Arreda a canalha!,
volta e meia mais irritado, a ensaiar investidas, arrastando a perna coxa que nos proporcionava contra-ataques devastadores:
– Deixa qu’eu marco!, deixa qu’eu marco!,
até regressar outra vez à regulação das colunas, ora com o Francisco José
Agoraaa-aaa!,
ora com o Gianni Morandi
Non so degno di te
Non ti merito piú,
a encherem o campo de terra batida com trinados românticos, enquanto o Baleia Assassina, de tronco nu e com as enxúndias a tombarem sobre o cós apertado das calças de borracha de caça-submarina com um rabo de peixe cosido nos fundilhos, exercitava os músculos com uns halterezinhos minúsculos e o ar compenetrado de quem está à beira de pôr em jogo a própria vida. Quando o Capitão Fantástico subia por sua vez ao estrado provocava um
AAAHHHHH!
colectivo de admiração sincera, a máscara dourada com óculos verdes e orelhas espetadas de morcego, a capa negra amarrotada e amarrada ao pescoço com um laço grande, o fato justo ao corpo musculoso a dispensar os halterezinhos minúsculos e o ar compenetrado de quem está à beira de pôr em jogo a própria vida, apenas um esgar de superioridade nos lábios ligeiramente visíveis através de um buraco na máscara em forma de boca arrepanhada, as sobrancelhas pintadas a azul a subirem e a descerem na testa de ouro, gestos provocatórios para o pobre do Baleia Assassina que continuava febrilmente a esticar as banhas
– um, dois; um, dois; um, dois,
na inquietação das flexões, dobrando os joelhos num ritmo lento,
– um, dois; um, dois; um, dois,
o rabo de peixe cada vez mais encharcado, a tornar-se pesado com o avolumar das bátegas, as tranças grossas de cabelo louro a escorrerem-lhe pelas costas como cordame de navio, uma teimosia desesperada e insatisfeita de quem se perdeu da vontade, de quem se reduz à repetição mecânica dos números
– um, dois; um, dois; um, dois.
O marreco interrompeu abruptamente o
Sou contrabandista
De amor e saudade
para anunciar o início do combate com um
– Atenção às vozes!
que não parecia vir nada a propósito. O Capitão Fantástico sacudiu a capa com requebros galantes de mosqueteiro e voou positivamente para as costas do Baleia Assassina que nem estremeceu, fincado nas colunas grossas das pernas e do rabo de peixe que parecia agora preso às tábuas do ringue, um relâmpago iluminou o céu e o barulho do trovão acompanhou a queda violenta da massa dourada e das orelhas de morcego de encontro às cordas, a chuva começou a cair com tanta, tanta força que a plateia ficou reduzida a uma dezena de garotos
(já contabilizados os numerosos Moritís)
e obrigou o marreco a esforçar-se na desmontagem rápida das colunas sob o risco de danos irreversíveis, alheio ao esforço das figuras fantasmagóricas que se derrubavam mutuamente em ânsias absurdas de violências imediatas, para trás e para a frente a arrastar a perna e a soltar palavrões com as abas moles do panamá a tapar-lhe a vista enquanto o terrível combate até à morte se desenrolava incansável sem morte à vista.
– Dá-lhe, Baleia!!!,
gritávamos nós por entre a chuva, decididos a não dar mais crédito às extravagâncias presunçosas do Capitão Fantástico que parecia cada vez mais furibundo, os movimentos agressivos prejudicados pela capa molhada que se lhe embaraçava nos braços dourados;
– Dá-lhe, gordo!,
gritávamos nós entusiasmados pela forma como o Baleia Assassina desferia punhadas brutais nas orelhas de morcego,
– Dá-lhe bucha!;
gritávamos nós rindo à gargalhada quando o Baleia Assassina se sentava sobre a cabeça do inimigo, as sobrancelhas azuis franzidas de raiva, o esgar de superioridade absolutamente invisível nos lábios que se sumiam num buraco da máscara em forma de boca arrepanhada, o marreco já com as colunas instaladas sobre o reboque da motoreta a fazer gestos largos com os braços como se fossem pás de moinho,
– Arreda a canalha!,
a desamarrar as cordas do palanque como se desamarrasse um barco cansado de ter cais,
– Vamozimbóra malta!, quisto já não dá nada!,
a ignorar vergonhosamente o nosso entusiasmo fortemente reforçado pela presença numerosa dos Moritís, a provocar o tristonho final do fenomenal e interminável combate até à morte entre o Baleia Assassina e o Capitão Fantástico que desciam lentamente do estrado com os pingos de chuva a misturarem-se com os pingos de suor por entre os aplausos generosos da pequenada divertida.


Uma peta sobre a Ucrânia
Ante Gotovina, ex-legionário francês, regressa à Croácia em 1990. Em 1996 é designado comandante do distrito militar de Split, dois anos depois é promovido a major-general. A 4 de Agosto de 1995 o exército croata captura Krajina e Gotovina instala-se. O Tribunal Penal Internacional publica em Maio de 2001 a