Commedia a La Carte

A Comédia de Improviso
(ou o estranho caso dos Commedia a La Carte)

O que é a comédia de improviso?

Muitas coisas. Frequentemente é um exercício de trapézio sem rede, em que nos maravilhamos com a destreza, harmonia e coordenação de todos, e em que o artista se salva, quanto mais in extremis melhor, de falhar o contacto com o seu trapézio ou parceiro. Não é raro que o artista se esbardalhe no chão, em frente a muitas ou poucas pessoas, algumas delas felizes por verem o desastre em directo e ao vivo. 

Nisso, o público dos espectáculos de improv, mesmo inconscientemente, deixa-se tentar pelo lado negro da Força: tal como nos ditos números de trapézio ou corda bamba, em touradas, desportos de combate, descidas vertiginosas na volta à França e corridas de automóveis dos dias de hoje, como antes terá sido a ver gladiadores e corridas no Coliseu, há sempre um por vezes mal escondido gozo de ver tudo a desmoronar-se. Por outro lado, o alívio e a admiração pela fuga ao desastre e triunfo dos heróis fazem com que as pessoas se sintam muito mais envolvidas no desfecho e seus protagonistas.

Voltar a sujeitar-se a ambos os desfechos não é para qualquer um e as características de um bom improvisador, como veremos adiante, são bastante específicas. 

Outras vezes, a comédia de improviso é o pesadelo de um escritor de comédia como eu, que se vê com ainda menos trabalho, ou a lidar com performers que tendem a partir à desfilada para outro lugar que o teu guião ou a peça de teatro não tinham imaginado, às vezes de forma irritantemente mais divertida.

Mais prosaicamente, a comédia de improviso costuma ser designada como uma forma de teatro de comédia em que todos os aspectos da actuação que estás a ver naquele momento estão a ser criados naquele preciso instante.

Existem várias formas de comédia de improviso. 

Simplificando, temos dois grandes subgéneros: o short form e o long form, que podíamos traduzir como o “abreviado” e o “por extenso”, mas que ficam com muito mais pinta em inglês.

O short form é o mais comum, até porque menos complexo, e é aquele em que um ou vários comediantes levam a cabo “jogos” com condições predefinidas e para as quais normalmente é pedida a ajuda do público para tornar os mesmos ainda mais aleatórios. Por exemplo, pedir uma profissão, uma situação, uma frase que seja escrita num papel e inserida a qualquer momento no diálogo, sem que o actor saiba previamente o que lá está escrito, tendo depois de a integrar na situação que está a representar. 

Um dos exemplos mais famosos é “o tirar cenas do chapéu”, popularizado televisivamente nos EUA, através do “Whose line it is anyway?”,  um dos mais longevos programas de comédia de improviso na tv americana e um excelente exemplo daquilo que é a versão short form da mesma.

Normalmente são coisas simples que se pedem, por exemplo, coisas que podes dizer à tua namorada ou a um inspector das finanças. O grau de hilaridade resulta tanto da premissa como da qualidade e rapidez dos intervenientes. 

Já o long form não se baseia em jogos, mas sim numa “cena” (no sentido de tema), por exemplo a história de amor de um casal que tenha ido assistir ao espectáculo, o mote para o número musical com que os Commedia a La Carte (Commedia) costumam terminar os seus espectáculos, e pode durar entre 20 minutos e uma hora, fazendo cada actor uma ou mais personagens. 

Para levar a cabo esse mote, os performers acordam em estruturas narrativas básicas, uma espécie de coluna dorsal que permita contar uma história, ou várias. Por exemplo, numa dessas estruturas, mais conhecida por “Harold”, cada mini-plot da história improvisada em palco é visitada três vezes ao longo da “cena”. Idealmente, no final, as três pontas unem-se, como se fossem paralelas que paradoxalmente convergem para um fim satisfatório.

Este tipo de abordagem é muito utilizado também na escrita de guiões. Existem plots A, B, C que depois convergem, espera-se que harmoniosamente, no final.

A isso não será estranho, como veremos, que ser-se um improvisador não impede em nada, antes pelo contrário, que um autor consiga também ser um bom guionista ou dramaturgo. E muitos dos que fizeram essa transição levaram consigo tradições, hábitos e métodos do improv para a sua escrita. Por exemplo, a autora de Fleabag, Phoebe Waller Bridge, prefere ter primeiro as piadas, ou cenas, e preocupa-se depois com a estrutura e a história propriamente dita. Tina Fey, em 30 Rock, é mestra em criar plot lines que terminam confluindo num determinado ponto. Larry David aplicava em Seinfeld a estrutura Harold e levou a comédia de improviso ainda mais longe na sua série: Curb Your Enthusiasm, os actores, muitas vezes representando personas deles mesmos, têm descrições de cenas e intenções, mas os diálogos são todos improvisados. 

Aliás, quando o long form é bem-sucedido, estamos a falar de uma forma de comédia quase indistinguível de uma comédia escrita, apesar do caos que a multiplicação de personagens, a criação de figurinos e adereços no próprio instante tendem a causar. Quando é mal sucedido, também é difícil de distinguir de uma comédia mal escrita, mas com a agravante de ser mais difícil adivinhar-lhe um fim à vista.

Curiosamente, os Commedia, de quem falaremos mais à frente, acabam por unir nos seus espectáculos ambas as formas, combinando vários jogos, com o musical que resulta da história contada por um casal escolhido aleatoriamente por Carlos M. Cunha, e entrevistado por César Mourão e Gustavo Miranda. Tal como num musical, quando começam a contar a história que acabaram de ouvir, os actores irrompem numa canção de letra improvisada para contarem os sentimentos das personagens, canção essa escolhida pela banda que acompanha o espectáculo, que começa a tocar quando bem lhe apetecer.

Tudo para correr bem. E normalmente corre.

Mas voltemos à comédia de improviso por mais uns instantes, antes de nos debruçarmos sobre o caso português de maior sucesso.

Se é certo que ela tem origens na commedia dell’arte do séc. XVI, não é menos verdade que o essencial daquilo que entendemos ser essa comédia de improviso nos dias de hoje tem raízes nos EUA, em meados do século passado, quando começaram a ser criados os primeiros grupos de improviso em três pólos fundamentais: Nova Iorque, Chicago e Los Angeles.

Algumas dessas companhias seminais, das quais a Second City de Chicago será possivelmente o melhor exemplo, acompanhado pelos Groundlings de Los Angeles, iO de Chicago, UCB e The PIT em Nova Iorque, mantêm-se a funcionar hoje em dia, tendo passado por elas gerações de comediantes, alguns deles nomes maiores da comédia americana e canadiana do século passado e deste.

É aliás notável como esses lugares se tornaram viveiros de talento, onde a comédia, sobretudo a de sketches, vai buscar as suas maiores vedetas. Isso resulta não só do trabalho delas enquanto companhias, mas também dos cursos de improviso que vão dando, extremamente bem-sucedidos e com rigorosos processos de audições. 

Os mais talentosos alunos desses cursos acabam por ser integrados nas companhias, sendo a grande fonte da renovação das mesmas.

A razão pela qual tanta gente começa e é descoberta através da comédia de improviso é relativamente simples. Tal como o stand up, a comédia de improviso tende a ter custos baixos de produção. Se é verdade que podes pagar muito dinheiro por bilhetes, isso tem em absoluto mais a ver com o estatuto dos performers. Há excepções, como veremos, mas no início das carreiras, que é quando os comediantes de stand up, ou de improviso acabam por ser recrutados para a televisão ou para o cinema, , os seus espectáculos são relativamente fáceis e baratos de montar. E é por isso que lhes são acessíveis. 

Mais espantoso é que, talvez contra-intuitivamente, alguns dos grandes improvisadores sejam também dos melhores escritores de comédia. Sem querer ser fastidioso, Bill Murray, Dan Arkroyd, John Belushi, Tina Fey, Julia Louis Dreyfus, Will Ferrell, Stephen Colbert, Steve Carrell, Lin Manuel Miranda, Seth Meyers, são bons exemplos, como o também são aqueles que, na minha opinião, são provavelmente os dois maiores improvisadores em comédia de sempre: Jonathan Winters e Robin Williams,  aqui juntos, com Johnny Carson.

A influência da comédia de improviso americana é, como se vê, enorme e não se limitou obviamente às suas fronteiras. Países como o Brasil tornaram-se viveiros de companhias de improviso de enorme qualidade como os Barbixas, que desde 2004, quando foram criados, se tornaram um fenómeno de popularidade, graças não só aos seus espectáculos, mas sobretudo devido ao impacto da sua presença no YouTube onde os vídeos no seu canal literalmente granjearam milhões de visualizações e conquistaram os fãs, com jogos como o Quadrado Humano ou aqui, com César Mourão, num jogo que em Portugal se intitula as três profissões.

A Comédia de improviso é várias coisas. Não é anárquica, embora às vezes pareça, ou queira parecer. Há regras, a primeira e fundamental, ao ponto de ser ensinada como filosofia de vida, ou ensinada em formações de empresas, é o famoso mantra do “SIM, E…”.

Ou seja, no improviso, o primeiro passo é aceitar a informação que acabas de receber do teu parceiro. Por exemplo, se ele disser que é de noite, é de noite, se ele te disser que estão num talho, estão no talho. Essa aceitação permite que a narração flua e a bola não caia no chão. Naturalmente que, para que isso não aconteça, é necessário pôr em prática a segunda parte da regra, o “E”. Para que a improvisação resulte é necessário que aceites a premissa anterior e acrescentes informação nova que faça progredir a história ou a piada. Esse processo de aceitação e acrescento é a base de toda a comédia de improviso e provavelmente da maior parte das relações saudáveis.

Existem ainda na comédia de improviso três regras fundamentais para que as coisas funcionem.

Em primeiro lugar, há escolhas que têm de ser feitas antes de se começar o improviso. Normalmente é muitas vezes aí que entra a colaboração do público. E por escolhas entende-se isso mesmo, decisões básicas que balizam as premissas do improviso que se lhes seguirá, normalmente sobre personagens, o lugar onde elas agem e, naturalmente, sobre a razão do seu “conflito”.

Em segundo lugar, e absolutamente vital, é que cada performer “ouça” realmente o seu parceiro. Se o trabalho de actor é muitas vezes o de reagir, na comédia de improviso é ainda mais essencial ouvir activamente o outro, perceber ou intuir por que caminhos vai e consequentemente como dirigir o rumo da cena. Ter este cuidado ou não é muitas vezes a diferença entre uma noite hilariante e outra completamente ao lado.

Finalmente, a comédia de improviso é por excelência um lugar em que a comédia física assume uma enorme preponderância. É muitas vezes através do gesto que se percebem personagens, que se descobrem adereços, que se definem espaços, que se molda o ritmo da acção e se superam ou criam barreiras de linguagem hilariantes. Mostrar é, quase sempre, mais eficaz do que dizer, e Gustavo Miranda, o colombiano dos Commedia e de alguns dos maiores grupos de improviso brasileiros como os Barbixas, ou Portátil (o braço de comédia de improviso do Porta dos Fundos) é disso um dos melhores exemplos, como veremos mais à frente. Usar o corpo e a fisicalidade é assim a terceira regra cardinal da comédia de improviso.

O caso português.

Se é verdade que outros grupos, com destaque para os Improváveis, se dedicaram à comédia de improviso em Portugal, não o é menos que nenhum outro tem a longevidade e, sobretudo, o reconhecimento crescente e contínuo pelo público dos Commedia.

Eles são não só o mais antigo grupo em actividade, como o de maior sucesso, tendo já esgotado, por exemplo, a Altice Arena, na comemoração dos 20 anos de carreira, esgotando salas por todo o país com destaque para longas temporadas em salas de teatro como o Villaret e mais recentemente o Tivoli, passagens pelo Casino de Lisboa e Coliseus de Lisboa e Porto, onde costumam fazer longas temporadas no Sá da Bandeira.

Baptizados Commedia a la Carte, pelo actor e agora apresentador José Pedro Vasconcelos, que, como eles, tinha feito parte da sua formação na Escola de Circo do Chapitô, o trio, composto por Carlos M. Cunha, Ricardo Peres e César Mourão, começou as suas apresentações no Bar do Chapitô e, pouco depois, no Bar da Ponte, nas Docas de Lisboa. 

Por personalidade e características, os membros do grupo assumiram determinadas personas e papéis na mecânica do grupo, quase desde o princípio. César Mourão assumia o papel de MC. Era ele que normalmente introduzia os jogos e, sobretudo, falava com a audiência, Carlos M. Cunha, o mais velho e alto, ar particularmente austero, fazia o duplo papel de enforcer do grupo e de recrutador de membros da audiência para que eles participassem nos jogos.

A persona de Carlos trazia algo que ainda hoje é, na minha opinião, um dos factores de atracção do público: a sensação de perigo. Carlos comporta-se como um loose cannon, disposto a tudo. Isso faz com que a audiência se mantenha em estado de alerta, entre o gozo em relação às piadas e acções infligidas sobre os outros membros da plateia, mas ao mesmo tempo receando que a atenção de Carlos se vire para eles.

Em palco, nas introduções e entre jogos, os membros do grupo funcionam como arquétipos: César é a ordem. Carlos e Ricardo representam o caos, uma dualidade tão primordial como a do palhaço rico e do palhaço pobre.

Ricardo Peres fazia o papel de observador, encaixando pequenos apartes, perguntas desconcertantes, farpas mortais, ajudando a pautar o ritmo desviando o curso da acção. As suas qualidades de actor ganhavam vida nos jogos, em que ele se submergia nas personagens com um absoluto desapego em relação à própria imagem. Ele era o character actor, por excelência, do grupo.

Passados mais de vinte anos muita coisa mudou nos Commedia, até pela saída de Ricardo, mas na essência Carlos e César continuam a manter as mesmas funções, reforçadas pelos anos de tarimba (não há provação maior para um comediante que tentar domesticar uma plateia de bar, onde toda a gente já bebeu, alguns acima da conta, e se acha duma graça infinda e com uma vontade de participar incontrolável) e pelas suas características próprias: Carlos com a sua persona do “Velho”, com muito pouca paciência para as perdas de tempo, concentração e atenção do público e do grupo, ocasionalmente mencionando que tem de ir para casa cedo, e César com a popularidade acumulada de anos a fazer comédia na televisão.

No princípio, a estrutura e logística dos espectáculos era também relativamente simples. Os Commedia trabalhavam sobretudo a versão short form da comédia de improviso, com a excepção de um número intitulado “Jogos olímpicos”, o único que não era improvisado e com o qual geralmente terminavam o espectáculo. 

Curiosamente, este Verão, houve uma actuação de stand up de Karl Porter, que se tornou viral – a celebração de um golo

Nada que, como vimos, os Commedia não tivessem experimentado há mais de vinte anos, a versão deles com uma atenção aos detalhes que tem sido uma das razões do seu êxito. Atentem no momento em que eles submergem, durante a natação. A música torna-se inaudível, como aconteceria se estivessem de facto a nadar.

Os Commedia apresentavam alguns jogos, entre originais e adaptados e os seus membros usavam um figurino comum que se tornou uma das suas imagens de marca, com calções, ténis, camisa e blazer, que se tem mantido até aos dias de hoje, com variações apenas de corte e cor. Para os efeitos sonoros, contavam com um sonoplasta, Serginho, que sublinhava, com admirável precisão, determinados momentos acentuando a sua comicidade.

O que se passou a seguir foi, ao mesmo tempo, excepcional e comum. Excepcional porque foram o único grupo de improviso em Portugal a conseguir seguir este percurso, e comum porque é assim que é suposto as coisas correrem. 

O passa-palavra levou a que pessoas ligadas à empresa Comunicasom, que na altura era responsável por praticamente toda a programação de entretenimento do daytime SIC, fossem assistir ao espectáculo do Bar da Ponte. O convite foi imediato.

Após reflectirem sobre as diversas dúvidas existenciais levantadas por passarem a fazer também televisão e naquele tipo de programas e no que isso resultaria quanto à sua integridade artística, os Commedia acabaram por aceitar. Se, por um lado, estar em directo na tv ia ao encontro da comédia de improviso e tinha vantagens promocionais óbvias, por outro lado, não deixava de ser um desafio, pois era arriscado definir o tempo necessário para cada jogo, além de que a presunção do improviso (expressão que acabei de inventar agora, as minhas desculpas) é mais difícil de manter com um público cada vez mais cínico e ciente dos truques da tv. Ou seja, convencerem-se de que tudo aquilo não era previamente combinado e ensaiado. Daí que muitas vezes os Commedia aparecessem como personagens, as mais conhecidas, as Alziras, que o grupo tinha desenvolvido para fazer um spot publicitário, empregadas domésticas lideradas por César Mourão, a Alzira, autêntica Némesis da Fátima Lopes.

Cedo a Comunicasom e a SIC propuseram ao grupo novo negócio faustiano, deixar César Mourão seguir a solo e manter Ricardo Peres e Carlos M. Cunha como dupla. O acordo foi aceite e, a partir daí, só teríamos os Commedia juntos em televisão ocasionalmente, a maior parte das vezes para promover o arranque de uma nova temporada de espectáculos. 

O grupo continuava a crescer, no entanto, em duas outras vias, os espectáculos corporativos e, sobretudo, no seu meio natural, as salas de espectáculos e as digressões.

Sendo César Mourão o MC das performances dos Commedia, assumindo por isso o público que era a figura central dos mesmos, é natural que o aumento da sua relevância e popularidade em meios de comunicação de massas como a televisão, nas redes sociais, onde a sua conta de Instagram tem mais 850 mil seguidores, e mesmo a rádio, tenha tido efeito na expansão da marca do Grupo. 

Na rádio, César Mourão criou, nas manhãs da Comercial, líder do prime time radiofónico, um segmento de improviso chamado Rebenta a Bolha, tão bem-sucedido que acabou por ser transformado num jogo de tabuleiro e em espectáculos a solo.  

Na televisão, a seguir a um hiato no final da sua participação nas manhãs da SIC e de ter entrado no último programa de Herman José para a mesma estação, voltou à antena, agora em prime time, num programa chamado Gosto Disto!, que co-apresentava com Andreia Rodrigues e em que era protagonista de sketches criados por ele e por um guionista que por acaso era eu. O programa era para durar entre o Natal e o Ano Novo de 2012, mas acabou por estar em antena até Maio de 2014, consolidando-o como uma figura central do humor na SIC e, por arrasto, no país. Seguiram-se séries de televisão, como Sal, Esperança e Volto Já, e a apresentação de programas dos quais o Terra Nossa tenha sido a prova dos nove da sua popularidade transversal tanto entre classes etárias como sociais. 

Se é verdade que é impossível não ligar este aumento, primeiro progressivo e depois exponencial, da popularidade de César Mourão ao crescimento dos Commedia, não o é menos que seria injusto e incorrecto limitar esse crescimento a esse factor.

Como é que tudo muda para que os Commediapermaneçam?

Os Commedia perduram precisamente devido a serem um colectivo permanentemente insatisfeito, que com o passar do tempo se foi reinventando a todos os níveis, começando pela escala e ambição, terminando nas alterações de estrutura e elenco, tendo pelo meio obviamente mudanças do conteúdo, que resultam precisamente dos aportes que os novos membros do elenco e produção permitem.

Falando da escala e ambição, é óbviamente diferente fazer um espectáculo no Bar da Ponte ou no Altice Arena e esse salto não se dá do dia para a noite.

A opção e o investimento de passar a actuar em salas de espectáculo de média e grande dimensão levou a mudanças drásticas: cada temporada de Commedia corresponde a um tema, que em 2023-24 será a Divina Commedia, e a cada ano isso implica uma mudança de figurinos e, sobretudo, de cenografia e iluminação, que é uma das razões pelas quais o público repetente sente estar perante algo novo, de cada vez que regressa.

Além disso, se é verdade que os dois membros remanescentes do grupo inicial, Carlos M. Cunha e César Mourão, mantêm, grosso modo, os seus papéis iniciais no grupo, a verdade é que a entrada de novos elementos, bem como de novos jogos, influi profundamente na performance do mesmo, o que só evidencia que eles, os Commedia, são, apesar das individualidades, uma entidade colectiva.

A entrada, por exemplo, de Marco Gonçalves, para o lugar de Ricardo Peres, levou o grupo a integrar números de improviso que utilizassem o talento musical de Marco, aliado ao de César, o que obrigou, com resultados hilariantes, Carlos M. Cunha a sair da sua zona de conforto, ou melhor, a expandi-la para o canto, ou algo de remotamente parecido com isso. 

Essa apetência do grupo pela comédia musical de improviso foi naturalmente potenciada por uma banda residente de músicos, também eles talentosos improvisadores, que substituiu os tapetes sonoros que a sonoplastia que Serginho proporcionava. Se melhor ou pior, será sempre debatível (na minha opinião e apesar de coisas incríveis que ouvi o Serginho fazer, esta versão é mais rica e com indubitável maior potencial), mas é incontestável que é diferente.

Mais, o potencial da presença da banda e o seu progressivo entrosamento com os actores levou a que fosse possível aos Commedia sedimentarem algo que se tornou a segunda parte ou acto final do seu espectáculo, um momento de improviso em long form capaz de durar até uma hora, dependendo da história por recriar (os Commedia são um bocadinho como o Bruce Springsteen, é raro os espectáculos durarem menos de duas horas, o que é inusual em comédia, onde existe uma regra não escrita segundo a qual o público não é capaz de rir ad aeternum, o que contrastaria com a atenção interminável que pode dedicar ao drama. Daí os especiais de stand up raramente durarem mais de uma hora e as peças de teatro e filmes, mais de 90 minutos. Os espectáculos dos Commedia na verdade só se sabe a que horas começam, não quando acabam, tudo depende da atmosfera da sala e do feeling dos actores sobre a energia do público e deles próprios).

A entrada, mais recente, de Gustavo Miranda, para o lugar de Marco Gonçalves, é outro bom exemplo da evolução do grupo. 

As características dos espectáculos dos Commedia mudaram, não só com a criação de novos jogos, mas sobretudo porque a sua presença potencia outro tipo de ferramentas da comédia, “obrigando” os outros dois membros e a banda a saírem da zona de conforto e a explorar novas avenidas.

Colombiano, embora residente e actuando no Brasil há vários anos, Gustavo é justamente considerado um dos melhores improvisadores da América Latina e trouxe de imediato a comicidade que resulta de genuínos momentos de lost in translation, entre ele, os colegas, o público e o mundo em geral, bem como abriu o mundo do espectáculo a mais duas realidades, Brasil e Colômbia, transmitindo ao público toda uma outra experiência de vida e de humor. 

Dessa troca, no palco, resultam benefícios para todos, a começar pelo público, que se surpreende e ri com coisas novas. Outro tanto resulta também de uma das grandes especialidades de Gustavo ser o humor físico, um dos três pilares da comédia de improviso, como vimos atrás.

O humor físico tem a vantagem de ser universal e derrubar as barreiras de linguagem e culturas com maior facilidade que qualquer outra modalidade do humor. 

E é, quase literalmente, um músculo que se exercita e desenvolve, e foi isso que a presença de Gustavo trouxe aos outros dois, levando-os a explorar ainda mais a dimensão física dos seus estilos de humor. 

Outra lição a retirar da experiência dos Commedia é a importância do público. Mais do que na maior parte dos géneros, o público é chamado a participar. As suas escolhas influenciam o rumo dos jogos, as suas histórias e presença no palco influenciam narrativas e performances do grupo. O seu riso e a sua capacidade de encantamento, tal como a capacidade de perceberem que a persona de César ali não é a mesma da televisão e que estão a ver outra coisa, pode ser a diferença entre uma actuação mediana (só muito dificilmente os Commedia não atingem o patamar que o público espera deles) e as performances excepcionais em que tudo como que miraculosamente se encaixa.

Finalmente, nada terá contribuído mais para o crescimento do grupo que o profundo sentido de autocrítica que nele existe. O Post mortem de cada espectáculo pode ser duríssimo e ser ele um espectáculo em si mesmo, enquanto os fãs e amigos se acumulam na saída dos actores, provavelmente convencidos de que tudo correu às mil maravilhas.

Essa implacabilidade é um dos principais obstáculos à estagnação e auto-indulgência do grupo. O facto de ser na sua esmagadora maioria construtiva permitiu que continuassem um colectivo todos estes anos.

Os Commedia sobreviveram e superaram mudanças, algumas delas dolorosas, de elenco, estrutura e produção, e, contra todas as probabilidades, continuam em permanente evolução, como as grandes companhias que emularam e de onde obtiveram a inspiração.

Os seus membros, com a excepção de César, dão cursos e formações de improviso e o grupo criou uma extensão da marca – os Commedia a La carte Kids –, que além de juntar mais um idioma ao nome do grupo, e ser direccionada para um público infantil, é composta por três talentosas actrizes, Filipa Duarte, Rita Cruz e Joana Castro, encenadas pelo Gustavo Miranda.

Continuam, os Commedia, por tudo isto, bem vivos.

Só isso explica o regresso do público aos espectáculos, uma combinação rara entre a surpresa absoluta e o conforto da familiaridade do lema do hino do grupo “aqui é o lugar onde eu quero estar”.   

 

__

PS: Declaração de interesses: o autor, como se depreende do texto, é amigo dos membros do grupo e tem colaborado quer com eles quer com a produtora original do grupo, a H2N, e com a actual, Aquele Abraço, em várias ocasiões e em diferentes projectos. Infelizmente, nem houve transacções financeiras para a escrita deste já demasiado longo artigo nem há grandes hipóteses de poder vir a colaborar com os Commedia. Eles recusam guionistas e dramaturgos. Mas ninguém é perfeito.

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