Texto de Gonçalo de Carvalho Amaro, autor convidado.
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Uma Cultura medievalizante?
Em 1922, numa Áustria ainda a recuperar do fim do império, cerca de duas décadas após a obra seminal de Riegl, O Culto Moderno dos Monumentos, Franz Kafka, já debilitado, escrevia O Castelo, um dos melhores retratos sobre a burocracia e como a mesma pode ser, ao mesmo tempo, uma arma contra a Cultura e um instrumento para quem aprecia o controlo férreo e integral das instituições, mas pretende esconder esse controlo no subterfúgio do “serviço público”. Do Castelo (referindo-me ao livro de Kafka) a mensagem não é clara. K. (a personagem principal) “deve continuar a fazer o que faz”, mas os oficiais/funcionários intermédios naquela aldeia perdida numa Áustria, Alemanha ou até Suíça intemporal, fazem-no andar às voltas. Deve esperar, ou não deve esperar? Foi contratado? Afinal não foi contratado, a mensagem superior nunca é clara, permitindo aos funcionários intermédios a liberdade para tomarem as ações necessárias. Se ao menos K. pudesse, talvez, algum dia, chegar a falar com alguém daquele castelo que domina a aldeia. Mas nunca chega ao seu destino, não segue os procedimentos, entre burocratas, um agrimensor argumentativo será sempre um criativo ameaçador.
Nos arrabaldes do castelo, que é como quem diz, na periferia deste centro de decisão, o progressismo não chega, não se vê, apenas é mencionado, mas raramente praticado. A comunidade não fala nem questiona o castelo, as atitudes dos forasteiros por vezes são toleradas, ainda que apenas até certo ponto e em certa medida. Quando K. surge, são-lhe permitidas algumas coisas que não seriam consentidas aos locais, mas a partir do momento em K. se envolve com Freida (uma local), passa a ter de se reger pelas mesmas regras, perde alguma da sua liberdade de pensamento, isto se pretender integrar-se no castelo.
O progressismo para triunfar, enquanto fundamento da Cultura, jamais pode estar assente numa divisão entre aqueles que aceitam o castelo e os seus dogmas, e outros que ambicionam pensar diferente. A História transmite-nos que as novas criações surgiram sempre quando se pensou diferente, nas ciências, nas artes e no conhecimento em geral. Uma Cultura que gravita em torno de um castelo estagna, torna-se medieval: não é por acaso que para caracterizar a máquina burocrática, Kafka escolhe um castelo, esse símbolo do medievo, de um território dividido em feudos, dominados por uma visão única, por um senhor. A Idade Média não pode estar associada ao progressismo, tenho até o entendimento de que são precisamente opostos, mas posso estar equivocado. Enganado não estaria certamente Alfred Gell, em Art and Agency, quando nos lembrava como a criação/conceção de objetos ou coisas (arte ou artefato) era um meio de influenciar os pensamentos e as ações dos outros.
A imprevisibilidade das coisas…
Mas, será mesmo possível enquadrar, num mesmo plano (sem hierarquizar) pensamentos e ações? Em finais do século XIX, a Cultura e o conhecimento da mesma, até a sua articulação com as ciências sociais e as humanidades, ocorria sobretudo através da experiência, do contacto com a tangibilidade do objeto: “não há prática sem teoria, nem teoria sem prática”, abusando da simplificação da filosofia de Martin Heidegger. Hoje, apesar de se falar muito do envolvimento dos académicos com a comunidade, parece-me que estamos mais afastados do que nunca dessa premissa.
Abuso, uma vez mais, da ambiguidade fulgurante de Kafka para explicar as tensões entre o humano e a máquina, entre a mente e a matéria e, na súmula, entre o pulsar criativo e o controlo da vontade. Em Die Sorge des Hausvaters (que se poderá traduzir como As Preocupações de um Pai de Família), de 1919, Kafka apresenta a figura de Odradek. Mas o que é Odradek? À primeira vista seria uma espécie de autómato, mas sem pretender replicar a figura humana (assim, muito diferente dos tocadores de flauta barrocos de Jacques de Vaucanson), Odradek é descrito como uma espécie de máquina, um homúnculo, uma personificação das máquinas, “composto por bobinas, fios de várias cores, de forma angulosa, conjugando uma estrela com um esquadro”, mas com uma capacidade humana de se “expressar por via de palavras e, inclusivamente, de rir”. Seria mesmo capaz de rir e de se expressar por palavras, ou estaria aqui Kafka “impregnado” por uma espécie de pareidolia[1] narrativa? Talvez Odradek tenha sido inspirado em Freud e na impressão deste último sobre as ruínas de Roma: Saxa Loquuntur (as pedras falam). Na verdade, Odradek, para um interessado nos estudos de cultura material, encarna as preocupações centrais deste campo. Tal como todos os outros objetos, Odradek tanto é material como simbólico, é uma coisa física com uma forma específica, mas é também investido de significado pelas pessoas que o observam. Kafka, através do seu narrador (o pai de família) é incapaz de descrever a natureza desta criatura que desafia qualquer classificação.
Esta ambiguidade e imprevisibilidade são típicas de muitos objetos, que podem ser interpretados de múltiplas formas, dependendo do contexto em que são encontrados. Além disso, Odradek é um objeto móvel e flexível que parece resistir às tentativas para controlar ou fixar o seu significado. Os seus movimentos são imprevisíveis e, definitivamente, indiferentes às pessoas que o encontram. Este sentido de autonomia e independência é, na verdade, característico de muitos objetos, que podem ter uma vida própria para além das intenções e desejos dos seus criadores e utilizadores.
Se até os objetos são imprevisíveis, o que dizer das pessoas? Poderemos algum dia controlar a sua criatividade e imprevisibilidade? Existem certamente estratégias de controlo: o filistinismo que se faz passar por erudição é certamente uma delas.
Falsas elites ou elites falsas?
Em Portugal, a Cultura sempre fugiu do escrutínio, abrigando-se debaixo de uma intransponível dose de erudição: a Cultura pertence aos sábios, mas na realidade deveria servir a todos, até aos sábios. Assim, aqueles que não eram sábios, quando chegavam (e frequentemente chegam) à Cultura, fingiam que o eram, inventavam sinfonias inexistentes, citavam poetas equivocadamente, acenavam com a cabeça ao ver um quadro que não compreendiam – muito bom, diziam em voz alta –, não era a sua essência serem eruditos, nem precisavam de o ser, mas, para triunfar na Cultura, tinham de pretender e demonstrar que o eram, pois é assim que, supostamente, se “faz” Cultura. Poderiam agir com naturalidade. Seria certamente mais fácil perguntar, querer saber o porquê: se é que o há. Foi sempre esse o nosso erro enquanto país, nunca levar a Cultura a sério, considerando-a um anexo, um posto que existe na máquina administrativa, que dá pouco trabalho e não necessita de grande formação: ler uns livros, ver uns museus, aparecer na primeira fila de uma peça de teatro e citar uns nomes e obras do passado com veemência. Basta ter uma certa pose, ou pior, basta aparentar pose.
Estamos, provavelmente, a ser injustos com os pensadores das políticas culturais, tendo em conta as origens da sua base de recrutamento. Não serão também responsáveis os próprios protagonistas (os artistas, os professores universitários, os trabalhadores culturais)? Entendendo que desde finais do século XIX, como nos indica Nathalie Heinich, com a sua postura antiburguesa, os responsáveis culturais se tornaram uma espécie de aristocratas, promotores de um discurso e conteúdo hermético pensado para um grupo ou minoria, acima de tudo, avessos à prática, ao “trabalho manual”. Poderíamos, contudo, também questionar esta afirmação de Heinich. Se seguirmos José Ortega y Gasset, um defensor do conceito de elite no “governo” das sociedades democráticas, a Cultura tende a ser produzida por minorias, o progressismo e a inovação surgem a partir do indivíduo ou de um pequeno grupo, de uma elite. O filósofo espanhol usa mesmo em La Rebelión de las Masas (1929) a oposição da elite face à massa, indicando que “numa massificação da sociedade, os melhores são absorvidos pela massa”. Convém, contudo, referir que para Gasset a massa não surge com um sentido de classe, representada pelo povo ou a classe operária, representa sim o ser-humano comum. Em síntese, defende o governo de uma minoria que surja (independentemente da sua classe social) pelas suas capacidades (trabalho, mérito, ética) e num quadro democrático, evitando assim a hiperdemocratização e a consequente aceitação e institucionalização da mediocridade que, segundo o seu modo de ver, apenas abre caminho para a criação (a breve prazo) de um Estado autoritário (daria mesmo como exemplo a Itália dos anos 20).
Muitas perguntas, maiores dúvidas…
Em tempos de guerra, o castelo e os seus objetos (armas, heráldica, bandeiras) têm o seu sentido, servem para proteger (e motivar) as populações no contexto da guerra; em tempos de paz, servem apenas para acentuar e promover as castas. O castelo não é um lugar de promoção da criação ou do indivíduo, não é um espaço de saber. Insistindo nesta estratégia de centralizar toda a Cultura no castelo, os decisores políticos da Cultura terão a colaboração de muitos candidatos a sábios, mas não propriamente a sabedoria.
Urge “desconfinar” o castelo, torná-lo um monumento aberto ao público, visto, não apenas exteriormente, mas também no seu interior, que possa ser tocado, gerando um diálogo com o seu conteúdo. Espaço no qual as pessoas se possam inspirar através da observação e experimentação e assim criar novas obras, um ambiente onde a criatividade individual e coletiva possa ter liberdade para fruir. Se na ciência se aceita sem discussão a ideia de que a mesma deve ser feita por uma elite que “sabe fazer”, por que motivo na Cultura não existe essa exigência? Mas o que é o saber fazer na Cultura, como quantificar? Será porventura a burocracia uma forma de tentar cientificizar as ciências sociais? Ou serão as competências humanas mais relevantes, neste caso, que o trabalho prático? Não lidamos todos, ciências, ciências sociais, artes e humanidades, com pessoas, com objetos, com tecnologia, com criatividade, como nos mostra a Teoria Ator-Rede de Bruno Latour?
Provavelmente, tal como em O Castelo de Kafka, onde nunca chegamos a perceber ao certo se K. se conseguiu integrar ou não no castelo, também subsistem dúvidas sobre o desfecho da Cultura. Será que alguma vez vamos ter uma Cultura progressista, que privilegie as capacidades individuais e não esconda as suas inseguranças num ambiente burocrático e falsamente erudito? Talvez a melhor forma de “desconfinar” o castelo seja sobrecarregando-o, atribuindo-lhe mais responsabilidades e esgotando a máquina burocrática, tornando-a improdutiva. Como escreveu Kafka, no seu conto Decisões: “Erguermo-nos dum estado miserável é algo que, mesmo com força de vontade, tem de ser fácil”.
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Sobre o autor:
Nasceu em Lisboa mas foi criado na Raia, num território incerto entre Marvão e La Fontañera. Licenciou-se em Lisboa (história), doutorou-se em Madrid (arqueologia) e andou por várias universidades em Santiago do Chile, onde deu aulas sobre cultura material, regressou a Portugal.
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[1] A pareidolia é um fenómeno psicológico em que um estímulo vago e aleatório (geralmente uma imagem) é percebido como uma forma reconhecível (geralmente humanizada), devido a um viés perceptivo.
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Imagem: Odradek, de Max Ernst