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A Era dos Podcasts

Vivemos hoje a era dos podcasts. É nesta rádio digital que encontramos algumas das vozes mais lúcidas e muitas das conversas mais desafiantes do espaço público. E isso, na opinião deste que vos escreve, não acontece por acaso. Os podcasts, enquanto meio, possuem um conjunto de atributos que os libertam quer das limitações criativas da rádio tradicional, quer da polarização de outros espaços do mundo digital, contribuindo, assim, para gerar discussões mais abertas, profundas e criativas.

Um podcast é, em certo sentido, uma rádio democratizada. Tal como esta, atrai-nos pelo lado prático de poder ser ouvido enquanto se faz uma tarefa rotineira e pelo intimismo que a ausência de imagem traz às conversas. E junta-lhe o baixo custo e simplicidade de produção: basta adquirirmos um microfone e um gravador, e dispormos de umas horas e paciência para pesquisar tutoriais na Internet.

A facilidade com que qualquer um pode, hoje, começar o seu próprio programa é uma diferença crucial face ao que acontecia até aqui, pois traz consigo uma enorme liberdade criativa. Desde logo, abre espaço para a criação de programas com novos conceitos e estilos, desde os mais originais aos mais ousados. Além disso, o baixo custo de produção diminui a necessidade de posicionar o programa de modo a atrair um público alargado, dando liberdade aos criadores para abordarem temas novos e diversos — ainda que interessem só a um nicho ou que sejam pouco consensuais.

Mas a consequência mais importante desta independência é talvez a mais subtil. É que,  ao contrário do que normalmente acontece na rádio, os podcasts não estão sujeitos a uma duração predefinida. E isso torna possível um tipo de conversa radicalmente distinto. Como salienta Sam Harris, neurocientista, filósofo e autor do reconhecido podcast Making Sense, «a distinção entre um programa de rádio com uma duração predefinida de uma hora e um episódio de podcast que, por acaso, calha estender-se para lá dos cinquenta e nove minutos pode ser difícil de avaliar vista de fora, mas é sentida pelos intervenientes a cada momento da gravação. A pressão do tempo muda tudo (um facto que qualquer pessoa percebe, por exemplo, ao assistir a um debate político na televisão). Aquilo que distingue os podcasts de outros meios — a disponibilidade para explorar tópicos adjacentes, para voltar atrás, para contemplar ideias diferentes, apenas para as descartar minutos depois, para convidar a crítica sem conseguir antecipar como lhe vamos responder e, quando as discordâncias surgem, para dar ao interlocutor a liberdade de apresentar a melhor versão dos seus pontos de vista —, este espírito de diálogo que vemos nos podcasts, só pode surgir quando não há um cronómetro por perto»[1]. Um efeito curioso desta liberdade de tempo é o facto de alguns dos podcasts mais ouvidos no mundo terem uma duração bastante longa — não raro, ultrapassando as duas horas —, uma tendência que contraria frontalmente as previsões catastrofistas que anteviam, a todo o momento, a convergência da capacidade de concentração da humanidade para zero, viciada que estava em tweets de cento e quarenta caracteres e em vídeos de dois minutos.

Este clima de discussão aberta que a ausência de restrições de tempo possibilita oferece também um bálsamo perante o ambiente de tribalização e radicalização que é hoje comum nas redes sociais. E não é a única característica dos podcasts que contribui para baixar a temperatura da discussão. Desde logo, em contraste com a rádio, que convida ao zapping pelo vasto número de estações disponíveis, escutar um podcast implica no ouvinte uma procura prévia e deliberada por aquele conteúdo. E isso influencia o que acontece do outro lado. Quem faz um podcast  e os seus convidados  têm a segurança de saber que quem os ouve está familiarizado com o conceito e com o estilo do programa (ou, no mínimo, foi encaminhado por alguém que o aprecia). Por outro lado, o próprio facto de os podcasts não terem imagem, nem texto (e, como vimos, terem frequentemente longa duração) tornam-nos menos propícios às descontextualizações que alimentam grande parte das polémicas nas redes sociais (o reverso da medalha desta característica — e de outras que já vimos — é que dificilmente um podcast se torna tão viral como um vídeo ou mesmo uma publicação online).

E há ainda uma última característica que contrasta em muito com aquilo que acontece noutros meios digitais: o facto de ser uma conversa de viva-voz e entre pessoas que estão, frequentemente, no mesmo espaço físico. Este ambiente está em claro contraste com a artificialidade do diálogo nas redes sociais, onde, não raras vezes, conhecemos do nosso interlocutor apenas a sua persona online. Nos podcasts, ao ouvirmos pessoas reais, cuja entoação e linguagem corporal conseguimos discernir, aproximamo-nos da experiência de uma conversa real, contribuindo, assim, para nos activar sentimentos de empatia e a abertura de espírito que ajudam a gerar discussões mais calmas e matizadas.

Em suma, pela liberdade que concedem a quem os cria, pela ausência de restrições de tempo para quem neles participa e por aquilo que os distingue do resto do ecossistema digital, os podcasts são hoje, na minha opinião, um dos meios de comunicação com maior vitalidade. Concordam?

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[1] Sam Harris, Making Sense: Conversations on Consciousness, Morality, and the Future of Humanity,

Nova Iorque, Ecco/Harper Collins, 2020, prefácio [e -book]. Tradução do autor..

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