A geologia já é uma ciência

Num estudo de opinião realizado entre amigos, chegámos à conclusão de que, durante os anos compreendidos entre 2007 e 2019, o físico teórico com maior reconhecimento internacional fora do meio académico terá sido Sheldon Cooper. Quem é o Dr. Cooper? O leitor mais atento, e com melhor memória, talvez consiga recordar este nome como um dos principais personagens da série televisiva The Big Bang Theory. Ao longo de 279 episódios, a série desenvolve-se através de um conjunto de clichés sobre a vida de quatro geeks, que são também cientistas numa das mais conhecidas universidades norte-americanas. É uma série de consumo fácil e que, num pensamento terrivelmente otimista, talvez tenha conseguido aproximar o público mais jovem do mundo das ciências, engenharia e tecnologia. Para quem nunca viu, e dispõe de tempo livre, a série tem repetido de tempos a tempos num dos canais do cabo associados à FOX Portugal. 

Em períodos específicos da minha vida, que são na sua maioria coincidentes com temporadas passadas fora de Portugal, terei gastado demasiado tempo a ver episódios desta série. Ainda assim, dos poucos momentos que recordo frequentemente, e com alguma clareza, é um diálogo de Dr. Cooper em que afirma que a geologia não é uma verdadeira ciência. Surpresa minha, não terei sido o único a reparar e uma pesquisa rápida sobre esta frase é garantia de diversão por algumas horas.  

Regressei a esta fala a propósito da divulgação dos resultados oficiais do concurso nacional de acesso ao ensino superior de 2023. Há uma certa continuidade temporal na divulgação destes resultados que atravessa anos: a clássica reportagem sobre a aluna ou o aluno com a média de candidatura mais elevada, sobre o curso com a nota do último colocado mais alta e a dificuldade em preencher vagas com médias altas para as licenciaturas relacionadas com as ciências da terra (a geologia e a engenharia geológica e de minas e afins). 

A origem destes resultados estará relacionada com a forma como estas áreas científicas são conceptualizadas e introduzidas aos estudantes do ensino básico e secundário. Por um lado, o geocientista é ainda e apenas idealizado como o indivíduo que passa dias a atravessar território de mapa e bússola na mão, equipado, claro está, com um chapéu do tipo panamá, enquanto faz desenhos num caderno. Por outro, a importância de percebermos o modo como os processos que existem no subsolo evoluem, e como estes afetam o nosso quotidiano não é suficientemente realçada. Os processos geológicos são, por exemplo, responsáveis pela definição de zonas de risco mais elevado para as populações, e se as há no nosso país. Estes processos são também responsáveis pela acumulação, em zonas específicas do globo, de minerais essenciais à transição digital e energética verde. Estes são os minerais críticos e os elementos das terras raras. 

Se o trabalho de campo é essencial na vida de um geocientista, a realidade atual de quem trabalha diariamente em áreas relacionadas com as ciências da terra é bem diferente. Muitos dos desafios atuais relacionados com estas áreas científicas passam pela criação de representações computacionais dos processos geológicos, e da sua evolução ao longo do tempo, a diferentes escalas espaciais (gémeos digitais do nosso planeta). Estes modelos, ou representações numéricas do subsolo, permitem a caracterização dos processos geológicos relevantes que afetam o nosso planeta e são essenciais como ferramentas para a tomada de decisão informada. Um exemplo prático, modelos computacionais de um determinado aquífero (acumulação de água subterrânea que pode ser usada para consumo) permitem avaliar de forma expedita e eficaz o impacto de diferentes tipos de exploração e gestão deste recurso natural dependendo do cenário de alterações climáticas considerado.

Ao contrário da dúvida levantada pela personagem principal desta história, a geologia é hoje uma ciência multidisciplinar que engloba a internet das coisas, a digitalização e a monitorização em tempo real de sistemas complexos (o planeta Terra). O geocientista (de dados), que continuará confortavelmente a utilizar o seu panamá, passa hoje grande parte do seu tempo sentado à secretária enquanto analisa e modela grandes quantidades de dados. Este esforço permite-nos perceber a origem do nosso planeta e, se tudo correr pelo melhor, apontar direções para os próximos séculos.

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