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A honra perdida de José Maria Seleiro: memória do Big Brother 1

Teolinda Gersão, que eu saiba, nunca esteve na “Casa Mais Famosa de Portugal”, e é pena. Em todo o caso, escreveu um conto intitulado “Big Brother isn’t watching you”, no qual umas meninas adolescentes da classe média-baixa, todas com os nomes da praxe (Elizabeth, Carina, Vanessa, Andreia, Débora), negligenciadas pelas famílias e seduzidas pelas vidas glamorosas das revistas cor-de-rosa e dos reality shows, decidem assassinar uma colega, a Tânia, somente na mira da fama.  

Saído em 2002 no livro Histórias de Ver e Andar, o conto de Teolinda é contemporâneo da primeira temporada do Big Brother, emitida entre Setembro e Dezembro de 2000, com o título Big Brother 1 ou, para quem não soubesse inglês, Big BrotherO Grande Irmão. Tratou-se, ficai sabendo, do programa da televisão portuguesa com maior audiência de sempre. A final ultrapassou os 70% de share televisivo, quebrando o duopólio RTP-SIC e posicionando a TVI como um canal popular, coisa que a “televisão da Igreja” jamais conseguira fazer, por constrangimentos óbvios do foro doutrinal e moral, os quais, naquela altura do campeonato, alvores de um novo milénio, já pouco importavam a uma parcela cada vez maior da população, sobretudo a mais jovem e, logo, a mais atrevida. 

Em 1997, ocorreu aquele que foi, indubitavelmente, o momento mais simbólico do processo de secularização e de perda de influência da Igreja na sociedade portuguesa. Nesse ano, o oitavo conde de Anadia, engenheiro Miguel Maria de Sá Pais do Amaral, depois de ter comprado a Luís Nobre Guedes a maioria do capital social da SOCI, proprietária de O Independente, e depois de a ter transformado na empresa Media Capital, adquiriu 30 por cento do capital do grupo TVI, assumindo a presidência do seu conselho de administração. Para trás ficaram os tempos em que, a pretexto de garantir a presença da fé católica no espectro hertziano, houve peditórios nas missas, contribuições generosas de fiéis, mobilização das instituições da Igreja, como a Rádio Renascença, a Universidade Católica, o Santuário de Fátima, o Seminário do Cristo-Rei, a Confederação Nacional dos Institutos Religiosos, a União das Misericórdias Portuguesas. Tudo em vão. 

O insucesso da “televisão da Igreja” coincidiu, não por acaso, com o ascenso de novos cultos religiosos, com destaque para a IURD, instalada em Portugal em 1989, e com a reconfiguração e a explosão dos hábitos de consumo dos portugueses: em Dezembro de 1985, na Senhora da Boa Hora, em Matosinhos (curiosamente, em antigos terrenos da Igreja…), abrira o primeiro Continente, uma loucura com 15 mil visitas diárias, cada qual gastando, em média, 10 contos (o que hoje corresponderia a 218 euros); por dia, vendiam-se 300 aparelhos de vídeo, 500 bicicletas, e, aos fins-de-semana, 2000 caixas de Martini; no primeiro dia, a loja fechou com as prateleiras quase vazias e, nas semanas seguintes, a afluência era tanta que, para controlar a entrada da manada consumista, os seguranças tinham de usar apitos, como na tropa. 

Além da secularização da sociedade, o fracasso da “Quatro” ficou a dever-se também, como é óbvio, ao “demasiado amadorismo” que marcou a sua génese, palavras do então director-adjunto de informação, Luís Marinho, que confessa que, na altura, ele próprio não sabia sequer o que era fazer televisão. Outro dos responsáveis, Magalhães Crespo, recorda que a ideia era fundar uma televisão de cariz “familiar”, beneficiando de uma sinergia com a Renascença, que nunca chegou a ocorrer, enquanto Vítor Melícias qualifica o projecto de “utópico”, desde logo porque sofreu “a pressão das audiências” e “os vícios dos profissionais”. A Igreja, como tantas vezes sucede, governara-se com a prata da casa, optara pelo paroquial e caseiro, gente de fé, nomes seguros, soprados na sacristia. Quando sabemos que entre os administradores da estação avultaram Roberto Carneiro e Ribeiro e Castro, pessoas estimáveis, decerto, mas sem as mínimas capacidades de gestão, compreendemos melhor por que falhou a “televisão de inspiração cristã”, com a sua grelha de programas patuscos, como “A Amiga Olga”, “Farmácia de Serviço” ou “O Jogo do Ganso”. Por sorte ou bênção divina, a TVI escapou por um triz de fazer uma parceria com o banqueiro espanhol Mario Conde, imagine-se, aliança só fracassada porque, entretanto, estoirou o escândalo do Banesto, que iria participar num muito desejado aumento de capital (Público, de 20/2/2003). 

Com a entrada de Pais do Amaral e, depois, da Sonae, a TVI rendeu-se ao capitalismo televisivo puro e duro, só norteado pelo lucro e pelas audiências. Largava-se o edifício Altejo e o Cinema Berna, concentrava-se tudo em Queluz de Baixo e, em 1998, José Eduardo Moniz assumiu a direcção-geral da estação, doravante apostada em bater-se de igual para igual com a RTP e com a SIC, sobretudo esta.

No início de 1999, Piet-Hein Bakker, da Endemol, apresentou o “Big Brother” a Emídio Rangel, director-geral da SIC, que durante um ano não se decidiu a comprá-lo, talvez porque o formato original fosse demasiado pesado e agreste, com a duração de 365 dias e os concorrentes obrigados, entre outras coisas, a fazerem comida com os produtos da horta da “Casa”. Piet-Hein reformulou-o, aligeirou-o, mas nem assim Rangel quis comprá-lo. Moniz chamou-lhe um figo: Piet-Hein fez a proposta numa manhã, mostrou um resumo do “Big Brother” holandês, o único que então existia, e à tarde já tinha a luz verde de Queluz de Baixo, pese o preço astronómico do investimento, cerca de um milhão de contos (cf. Diário de Notícias, de 1/9/2010).   

Para apresentadora, após terem pensado noutros nomes, gente do jornalismo, escolheu-se Teresa Guilherme. Ao receber o convite de Piet-Hein, e mesmo sabendo que era um programa muito “polémico”, Teresa nem hesitou, pois, confessou anos mais tarde, quando estava no cabeleireiro uma voz interior dissera-lhe que estava para breve a sua grande oportunidade mediática (cf. Teresa Guilherme, Cheguei onde me esperavam, Manuscrito, 2017, p. 148). 

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A 2 de Setembro de 2000, num enorme secretismo, começaram as gravações, só emitidas no dia 4, em jeito de “falso directo”. Não se tratou, longe disso, do único simulacro do programa, o qual, e desde logo, fazia crer que se fazia uma transmissão do quotidiano de uma “casa” (na realidade, um estúdio, com 60 microfones e 26 câmaras, algumas das quais dissimuladas atrás de espelhos), com pessoas normais e vulgares, escolhidas na rua (na verdade, alvo de um rigoroso processo de selecção, por etapas sucessivas, partindo de 2500 candidaturas, depois 1500, a seguir 200, 80, 25, até chegar aos 12 apurados), e em todos os momentos do seu dia-a-dia (quando, de facto, os telespectadores só viam, no máximo, 0,08 por cento do que se passava no interior da “Casa”, com emissões diárias de 30 minutos feitas a partir dos 37 440 minutos, ou 624 horas, diariamente gravados pelas quase trinta câmaras). 

Porventura, o simulacro maior foi fazer-se crer que aquilo era uma amostra do quotidiano de doze jovens à solta, quando, de facto, e para evitar a monotonia, a deles e a dos espectadores, os participantes tinham de obedecer a um conjunto de regras draconianas, implacáveis, e executar diária ou semanalmente diversas “tarefas” ou “jogos” predeterminados, sem os quais não receberiam uma alimentação decente. A produção fornecia o básico – carne, peixe, sal –, mas, para terem legumes e fruta, leite ou iogurtes, os residentes da “Casa” deveriam dar o litro, desmultiplicando-se num sem-fim de actividades tontas, algumas das quais fisicamente puxadas. No decurso do programa, um dos concorrentes, o lendário Marco, queixou-se da exiguidade da comida, apenas uma costeleta, e do facto de os outros não se esforçarem tanto como ele; e, num livrinho que publicou após sair da “Casa”, Mário confessou a fome que lá passara, lembrando ainda outro detalhe muito interessante: a produção ia aumentando ou diminuindo o preço dos alimentos para condicionar o que os concorrentes comiam (cf. Mário Ribeiro, “Tás a Ver?”: Big Brother, antes, durante e depois, Asa, 2001, p. 46, que acrescenta, noutro passo: “sei que ambos [os pais] sofreram bastante com isto do Big Brother”).   

É certo que a irrealidade – neste caso, a irrealidade quotidiana, como diria Eco – é inerente a toda a actividade televisiva, ao cinema, ao teatro, etc. Aqui, no entanto, ela assumia contornos mais fundos e mais específicos, pois era uma irrealidade sui generis, um original theatrum mundi, que pretendia fazer-se passar por real – daí o nome, reality shows –, como se aquilo que víamos no écran fosse de facto o vivido e o acontecido, a “telerrealidade” ou “a vida em directo”, para usar as palavras de Pedro Miguel Ramos, uns dos apresentadores do “Big Brother”, tiradas do subtítulo do filme The Truman Show. Puro engano, atroz ilusão. Apresentando-se como o mais realista dos programas, o “Big Brother” era, por isso mesmo, o mais inautêntico de todos, inautenticidade que se estendia aos seus espectadores, chamados a pronunciar-se num plebiscito por telefone, como se as votações sobre os que deveriam sair da “Casa” não fossem também, elas próprias, encenadas e manipuladas, desde logo porque não escrutinadas por qualquer entidade externa e independente. Na época, muitos saudaram o carácter “democrático” de tudo aquilo, falou-se em “teledemocracia”, como se os candidatos não tivessem sido escolhidos por procedimentos e critérios jamais revelados, ou como se fosse “democrática” uma eleição sem requisitos mínimos de transparência e controlo, sem boletins e mesas de voto, sem fiscalizações imparciais. No fundo, seria o mesmo que, na eleição dos nossos deputados, dos autarcas, do Presidente da República, existisse um governo oculto e sem rosto a proclamar quem tinha ganho ou perdido, sem mais, e todos aceitassem o resultado como genuíno e democrático. É certo que, no caso do “Big Brother”, o facto de se tratar de um mero programa de televisão poderia levar-nos a desconsiderar a gravidade dos seus procedimentos de selecção e de escolha dos vencedores; mas também é certo que o facto de tais procedimentos se arvorarem em “democráticos”, “transparentes” e “limpos” constituía um claro indício, mais um, da falsidade de tudo aquilo. Mentir, em si mesmo, pode não ser grave; grave é quando a mentira pretende passar por verdade ou, melhor dito, “a” verdade (sobre esta obsessão dos reality shows com a “verdade” e o total “realismo”, cf. Vanda Sousa, O homem como o tecnológico de si mesmo: uma viagem ao Big Brother, policop., Universidade Católica Portuguesa, 2005, pp. 296ss). 

Outra ilusão: no final do concurso, anunciou-se urbi et orbi que tinha ganho José Maria Seleiro, “Zé Maria”, o desconcertante concorrente de Barrancos, declarado vencedor por decisão soberana do público. Ora, nem os espectadores nem os concorrentes votavam naqueles que queriam que permanecessem na “Casa” e que, no final, vencessem. Ao invés, votava-se pela negativa, escolhendo os que deveriam ser “expulsos” da “Casa” (e a expressão “expulsão” tem, obviamente, uma carga semântica vexatória e aviltante, intencionalmente usada). Ainda que, segundo os entendidos, o modo de sufrágio nos reality shows se aproxime mais do “método de Coombs”, o certo é que ele configurava uma forma muito particular, e peculiar, de “voto por desaprovação” (disapproval voting), mais perto de um “voto de desconfiança” ou de uma “moção de censura” do que dos métodos de escolha política usados classicamente na esmagadora maioria das democracias. Dizer que Zé Maria venceu o concurso porque fora eleito pelos espectadores era uma pura ilusão e mentira; Zé Maria ganhou porque todos os outros perderam, foram “expulsos”, o que é bem diferente – e, é óbvio, emocionalmente muito mais violento para todos, quer para os concorrentes preteridos, quer para o ganhador, quer, enfim, para os espectadores que votavam a partir de casa, aos quais se pedia que mobilizassem não sentimentos positivos de apreço e aplauso, mas emoções negativas de rejeição e raiva, quando não de puro ódio.  

Na aparência, milhões viram um grupo de jovens a partilhar uma casa com uma piscina, cantando e rindo, zangando-se às vezes, fazendo sexo de quando em quando, ou perto disso. Na realidade, porém, tudo não passava de um teatro, de um espectáculo milimetricamente encenado, que não tinha um script predefinido justamente porque ele não era necessário, já que os participantes agiam e comportavam-se como actores de si mesmos, fazendo precisamente o que se esperava deles e do seu “perfil”, num role-playing que envolvia as suas próprias personalidades e, como diria Goffman, os seus modos de “apresentação na vida de todos os dias”. Naturalmente, tratava-se de um exercício performativo especialmente gravoso para quem o praticava, pois, ao contrário de um actor, que ao fim do dia despe a persona de palco, regressa a casa e readquire o seu “eu”, a um participante do “Big Brother, ou doutro que o valha, exige-se que seja ele próprio 24 horas por dia, mas diante de milhões de observadores, que ademais nem sequer vê, só pressente. A personalidade de cada qual é assim desdobrada – e estilhaçada – num duplo, triplo, centésimo ou milionésimo “eu”, com Zé Maria a fazer de Zé Maria a fazer de Zé Maria e assim sucessivamente, numa espiral esquizofrénica, infindável, não podendo ele, em momento algum, ser apenas Zé Maria, pois, ao estar postado à frente das câmaras, nunca é Zé Maria apenas, mas sim, e sempre, Zé Maria a fazer de Zé Maria – mesmo que disso nem se aperceba, ou quando dorme e ressona. “Todo o mundo é um palco”, certíssimo, já o dizia Shakespeare, mas, a tal grau e com tal intensidade, era coisa nunca vista.    

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Procurou também figurar-se o “Big Brother” como um “25 de Abril televisivo”, que, após décadas de opressão pelas elites, finalmente franqueava às camadas populares o acesso aos ecrãs da televisão. Até então, pensava-se, o “povo” era um mero espectador passivo, narcotizado, alienado, ou, quando muito, chamado de quando em vez a desempenhar o papel de outras classes (no caso dos actores oriundos das camadas baixas) ou caricaturado nos seus tiques e idiossincrasias (no caso dos sketches humorísticos, com Herman José à cabeça). Com o “Big Brother”, pelo contrário, o “povo” tornava-se protagonista de primeiro plano, e, mais ainda, actor de si e para si, pois o que se lhe pedia era que se comportasse tal qual era, justamente como povo livre, largado à solta. Na “Casa Mais Famosa de Portugal”, fosse à mesa das refeições, na sala dos sofás vermelhos ou no quarto dos edredões, o que se esperava e exigia ao Marco, à Sónia, à Célia ou à Carla, é que fossem exactamente como eram, rudes nos modos, por vezes, mas sumamente autênticos, até quando diziam “póssamos”, “órgias” ou “cidadões” ou quando proferiam frases legadas à posteridade, como a célebre “Há aí palhaços que falam, falam, falam e eu não os vejo a fazer nada”, de Marco Borges, afirmação que, anos volvidos, faria as delícias de um célebre sketch dos Gato Fedorento. É claro que, às vezes, quando os concorrentes se esticavam e comportavam demasiado como povo, as elites da produção prontamente intervinham para repor a ordem e o decoro burgueses, como sucedeu quando o Marco deu um pontapé na barriga da Sónia (esclareça-se: depois de esta o ter mandado “para a puta que te pariu”) e foi sumariamente expulso, ou quando, anos mais tarde, o Hélder fez um comentário homofóbico sobre o Edmar, merecedor de reprimenda de Cláudio Ramos, num inusitado “directo” para o interior da “Casa”, ou quando o psicólogo e comentador Quintino chamou ao Bruno “bicha desocupada”, sendo logo exonerado por má-criação, ou quando o citado Hélder decidiu fazer uma saudação nazi numa festa, ou ainda quando o Ricardo confessou ter feito sexo com Joana sem o consentimento desta, para não falar do surto psicótico de André, que vandalizou a “Casa”, da violenta revolta da Vânia contra a expulsão da mãe, da queixa ao Ministério Público pelos comportamentos abusivos do Bruno (de Carvalho) sobre a Liliana (Almeida) ou da alegada rede de tráfico de droga criada pelo marido da concorrente Sónia, em cumplicidade com o pai do concorrente Edmar. 

Mas, sobre o “povo” do “Big Brother”, a ideia de que o programa era a quintessência da democracia, fosse da parte de quem o via, fosse à conta das “votações” semanais, fosse por causa do perfil social dos concorrentes, importa dizer que, uma vez mais, tudo não passou de uma farsa. Se olharmos para a composição da primeira “Casa”, a do Zé Maria, do Marco e da Marta, não encontramos, de modo algum, um retrato fidedigno ou representativo da população portuguesa, antes e tão-somente um conjunto de jovens escolhidos a dedo, desde logo pela (boa) aparência física, com idades muito próximas (os mais novos com 19 anos, o mais velho com 31, média etária de 24,5 anos), e um perfil muito semelhante: nove já trabalhavam, Susana estava desempregada, dois ainda eram estudantes. Duas das concorrentes eram casadas, a maioria vivia ainda com os pais, gente de classe média, sendo curioso, e muito revelador, que não existissem representantes das classes baixas e das classes média-alta ou alta. Os populares à séria, os pobres mesmo, ou remediados, eram inservíveis para um programa de horário nobre; e os mais ricos, de seu lado, os “filhos-família” que só concorreriam por divertimento ou graça, poucos incentivos tinham para se sujeitarem àquela provação de quatro meses. Ao invés, para miúdos da classe média urbana, em princípio de vida, como a Marta ou o Marco, a Sónia ou o Telmo, a quantia do prémio – 20 mil contos – fazia toda a diferença, tanto mais quanto surgia associada à promessa da fama e, com ela, de portas abertas para novos horizontes. Ou seja, aquele grupo de jovens, nenhum dos quais oriundos de gente com posses, foi milimetricamente escolhido para cumprir desígnios muito precisos, mas jamais publicitados. Boa aparência física, corpos musculados e atraentes, mentes abertas à possibilidade de sexo ou de romance, origens sociais e ambições de vida que, como cobaias, os colocavam à mercê da produção e dos seus diktats, dispostos a competirem entre si, ferozmente, na mira do dinheiro e da fama. Até hoje, dos 85 anónimos e 48 “famosos” que participaram no “Big Brother”, só houve seis concorrentes vindos das Ilhas, existindo uma representação esmagadora e desproporcional dos distritos de Lisboa, Porto, Setúbal e Leiria. Dizer que ali existia um “espelho da nação” (Mirabeau) ou que aqueles jovens eram membros e representantes do “povo” foi só mais uma, entre muitas, das falsidades do “Grande Irmão”.  

Na verdade, quem se der ao trabalho de ler as regras do “Big Brother”, de saber que objectos e pertences os concorrentes podiam ou não levar para a “Casa” (só um livro e uma revista, medicamentos vistoriados e autorizados pela produção), perceberá facilmente que aquilo não era, nem é, um concurso televisivo igual aos outros, como o “Preço Certo” ou a “Roda da Sorte”, antes uma experiência laboratorial televisionada, com ratinhos em forma de gente, e emocionalmente muito violenta para os que nela participavam, voluntariamente é certo, mas dando um salto no desconhecido, entrando numa realidade que, naquela altura, ninguém sabia como seria, quer durante a permanência na “Casa”, quer sobretudo depois, no day after da glória. 

Importa notar que a “Casa”, desde logo, não o era, pois em qualquer casa digna desse nome, mesmo num apartamento apinhado de gente, há sempre espaços de privacidade (as casas de banho, no mínimo) e, mais do que isso, há sempre privacidade em relação ao exterior (mesmo numa barraca ou numa tenda), o que ali não só não existia como era expressamente proscrito. Hoje, à distância de 20 anos, é arrepiante ver aqueles miúdos escondendo-se debaixo dos edredões, como crianças com medo do lobo mau, pois apenas ali tinham um módico da intimidade por que tanto ansiavam. Como é arrepiante saber que a intrusão não era apenas visual, feita por 26 câmaras e microfones, mas também, ou sobretudo, auditiva: além dos constantes gritos de uma equipa de produção de 150 pessoas, que, segundo se diz, frequentemente entrava na “Casa”, coisa que nunca se esclareceu, quem passou por aquele estúdio da Venda do Pinheiro recordou “um buzz eléctrico constante, omnipresente, dos motores que alimentam o abre-e-fecha dos diafragmas, o zoom in, o zoom out, das lentes”, para não falar dos “cabos dependurados do tecto a cada dois palmos” e, o pior de tudo, o quarto de dormir – “as câmaras são mais dolorosas aqui: o equipamento de infravermelhos, capaz de filmar no mais escuro dos breus, é mais difícil passar despercebido…”. Os concorrentes, de seu lado, eram obrigados a utilizar sempre um microfone à lapela, excepto na piscina e no banho, sendo terminantemente proibido tapá-lo para abafar as vozes. Uma descrição que, note-se, não foi feita por um fugitivo da “Casa”, ou por um arrependido do “Big Brother”, mas por dois repórteres da TVI de Moniz e divulgada no site próprio do programa. Em nome da “liberdade de programação” e da “auto-regulação”, a Alta Autoridade para a Comunicação Social eximiu-se a indagar que sequelas ou efeitos psicológicos tudo isto teria, ou poderia ter, nos jovens participantes do concurso. A TVI também não fez esse estudo prévio, até com base no que já ia ocorrendo lá fora com experiências similares (v.g., Holanda, EUA), limitando-se a ter uma equipa de profissionais, liderada pela psicóloga Isabel Leal, hoje reitora do ISPA, para a selecção dos candidatos e, crê-se, para apoio pontual aos concorrentes. Também a classe política, temendo acusações de “censura”, não cuidou de analisar o “Big Brother”, nomeadamente quanto ao bem-estar e efeitos nos seus participantes, dos quais um, curiosamente, seria candidato do PS por Leiria nas legislativas de 2011 (sócio-gerente de uma serralharia e antigo pára-quedista, Telmo Ferreira foi colocado em 14.º lugar, não elegível, havendo notícias dele em 2017, a apagar fogos como bombeiro, para preocupação da esposa Célia, que conheceu na “Casa”). À semelhança dos políticos, também os intelectuais, quando escrutinaram o programa, discutiram coisas fantásticas, como veremos, mas raramente falaram da saúde física e mental dos moradores na “Casa”.  

Quanto às regras do concurso, algumas são compreensíveis para a dinâmica do jogo, como o facto de os concorrentes não poderem conhecer-se antes do início do programa (Regra Um), ou de o grupo estar isolado do exterior (Regra Dois). Já menos se entende que fossem proibidos os relógios e os despertadores, quaisquer instrumentos de medição do tempo, a ponto de o próprio relógio do fogão da cozinha ter sido desactivado. Retirar a percepção do tempo constitui um expediente clássico de dominação dos que habitam em universos concentracionários e, com o mesmo objectivo, estavam proibidos os diários, os calendários, as agendas, tudo que permitisse aos participantes escapar à claustrofobia da “Casa”, um open space onde, deliberadamente, os concorrentes tropeçavam uns nos outros, para potenciar as tensões e os conflitos. Nos grupos que convivem algum tempo, como nas férias ou nas excursões, é frequente eclodirem quezílias e gritaria, zangas monumentais. No “Big Brother”, o conflito era subtil mas deliberadamente promovido, até ao limite da disputa territorial e do confronto físico, quer na arquitectura dos espaços (v.g., no quarto dos rapazes, não havia camas para todos; existia uma só cadeira de baloiço, lugar de prestígio, alvo de cobiça), quer no perfil “macho” de vários residentes masculinos (um era fervoroso praticante de body-building e taekwondo, outro antigo pára-quedista, outro antigo fuzileiro), quer, enfim, em regras que impunham, num ambiente de escassez de meios e de comida, a tirania do colectivo, com tarefas partilhadas e anulação da individualidade e privacidade de cada qual (um só livro ou uma revista para 120 dias, proibição de canetas e papel, até de lápis de maquilhagem, de walkmans ou discmans, de computadores e agendas electrónicas). Quem saísse da “Casa”, mesmo que fosse para receber assistência hospitalar, jamais poderia regressar, com uma excepção importante, curiosíssima: os que tinham saído por votação do público, não por vontade própria, estavam obrigados a regressar à casa-prisão da Venda do Pinheiro, mesmo que, entretanto, tivessem mudado de planos. De resto, sempre que alguém saía da “Casa” não podia voltar logo a casa e à família: a primeira noite era passada num lugar incerto, na companhia de um membro da produção. Para quê e porquê? – pergunta-se.      

Aqui bate o ponto. Para o compreender, lembremos a conhecida frase de H. L. Mencken, ou a ele atribuída, segundo a qual “nunca ninguém perdeu dinheiro por subestimar a inteligência do povo americano”. E a História também ajuda, como sempre: em 1992, a MTV lançou um programa chamado “Real World”, em tudo idêntico ao nosso “Big Brother”, mostrando o quotidiano de um grupo de jovens num espaço fechado. Ao princípio, o público até achou graça, mas, ao fim de uns tempos, já estava farto de contemplar o dia-a-dia sempre igual dos miúdos. A dada altura, porém, entrou na “casa” uma concorrente nova, muito arrojada, que gostava de se despir em público, que tinha um apetite voraz por sexo e era alcoólica. As audiências subiram em flecha, com os produtores da MTV a perceberem a mensagem: um programa com aquelas características, com uma trupe de miúdos a viverem juntos, só desperta o interesse – sobretudo, só mantém o interesse – se nele ocorrer algo de anormal e estranho. É que, convenhamos, estar a olhar para o que fazem uns adolescentes trancados numa casa, a que horas acordam e o que comem ao almoço, não é propriamente coisa aliciante. Concluiu-se, sem grande esforço, que só dois e apenas dois ingredientes podem salvar a coisa: brigas e sexo. 

Daí que os reality shows desta natureza, daqueles que só mostram gente a viver numa casa (não dos que metem montanhas ou selvas, como o “Survivor”), sejam orientados, do princípio ao fim, para que os participantes se embrulhem uns nos outros, aos beijos ou à porrada. Na primeira temporada do “Big Brother”, o cidadão Marco Borges vingou nos dois campos: pontapé em Sónia Veiga, aquariana de Mirandela, onde estudava Novas Tecnologias de Comunicação; sexo com Marta Cardoso, a qual, disse então uma ardente defensora do programa, iria ficar “na história da sexualidade portuguesa como a primeira mulher a fazer sexo online” (cf. Ana Paula Lemos, Big Bother: o Fenómeno, Bertrand, 2001, p. 38). O facto de o jovem kickboxer do Carregado, onde era vendedor e formador de uma empresa de produtos químicos e industriais, ter acabado expulso da “Casa Mais Famosa de Portugal” em nada lhe retira o mérito, pois, na perspectiva da Endemol e da TVI, Marco foi uma aposta ganha, como o demonstra o facto de, 20 anos volvidos, serem os seus momentos que recordamos da primeira série da saga. Ilustrativo: a cena do pontapé foi transmitida no mesmo dia – 19 de Outubro de 2000 – em que Jorge Sampaio anunciou a sua recandidatura à Presidência da República, acontecimento ofuscado, esmagado e quase esquecido pelo marcante gesto de Marco. No alinhamento do telejornal, a TVI apresentaria o pontapé como grande notícia do dia, antes da candidatura de Sampaio, Manuela Moura Guedes entrevistou o agressor em directo, falou-se do tema em 16 peças, dedicando-lhe 37% do noticiário, muito mais do que à política (23%). João Gabriel, o assessor de imprensa de Sampaio registou o facto com escândalo e estupefacção e, depois de classificar o “Big Brother” como “um extenuante jogo de grupo que incentivava o voyeurismo”, concluiu que o anúncio da candidatura presidencial não foi “um momento feliz”, pois, devido ao pontapé de Marco, “a projecção mediática do anúncio esfumou-se, ficando reduzido a poucos minutos de televisão” (cf. João Gabriel, Confidencial. A década de Sampaio em Belém, Prime Books, 2007, p. 137).     

Com o seu gesto, Marco dava um pontapé na barriga de Sónia, é certo, mas também nas audiências da TVI, as quais, como refere Felisbela Lopes, até então estavam ainda abaixo das da SIC e só a partir daí ganharam a dianteira (cf. “Novos rumos do audiovisual português: o reflexo do Big Brother na informação televisiva”, 2007). Há, aliás, um episódio decisivo, eloquentíssimo: quando Piet-Hein ligou a Teresa Guilherme, dizendo-lhe que Marco agredira Sónia, a apresentadora disse-lhe “A festa acabou”. Sapiente, o holandês respondeu apenas: “Agora é que a festa vai começar”. Teresa desligou o telefone e desabou em lágrimas, talvez percebendo então, finalmente, a natureza do programa a que dava a cara. Pior ainda, nem a avisaram que, pouco depois, Marco iria ser entrevistado em grande destaque no Jornal das 8, como se fosse o herói do dia: “a TVI aproveitou, pôs os pergaminhos jornalísticos para trás das costas, e deu primazia às audiências, não só entrevistando como suavizando aquela reacção impensável de um homem que bate numa mulher porque ela o enfrenta” (cf. Teresa Guilherme, O Avesso do Direto. Segredos dos bastidores de trinta anos de televisão, Contraponto, 2020, p. 56).  

À luz daquela premissa – sexo e conflitos –, compreende-se a selecção feita: jovens em idade fértil, com as hormonas aos saltos, debaixo do mesmo tecto, partilhando uma piscina aquecida, concursos de body painting e de striptease e, sobretudo, a consciência de que tudo quanto fizessem para apimentar a sua estadia na “Casa” dar-lhes-ia pontos, dentro e fora dela, aumentando as hipóteses de vitória, saldada em 20 mil contos. Houve também romantismo autêntico, é claro, a Célia casou com o Telmo, a Marta casou com o Marco (“eu sou homem, tenho sangue na guelra e gosto do sexo feminino”, disse este a Teresa Guilherme). Porém, não deixa de ser sintomático que as duas mulheres casadas da “Casa”, a Riquita e a Carla, tenham sido as primeiras a sair, ao fim de três e de nove dias, respectivamente. 

Além do sexo, os conflitos. Nesse campo, a competição era agudizada pelas idas semanais ao “confessionário”, sem que os concorrentes soubessem o que os outros diziam lá dentro, e, claro está, pelas votações, também semanais, para expulsar participantes, feitas, como se disse, não de um modo premial, pela positiva, mas vindicativo, pela negativa. 

Não admira, assim, que, nas suas memórias do “Big Brother”, Mário Ribeiro fale num “ambiente tenso”, num “ambiente pesado”, num “ambiente quase insuportável”, que refira que logo na primeira noite sentiu saudades de casa, que aluda ao “constrangimento” que persistia entre os concorrentes ao saberem-se filmados no duche e na retrete, e que diga, enfim, que só ao fim de duas semanas é que, pela primeira vez, sentiram “um ambiente solto e sem competição”. Mário refere um outro dado importante, revelador: quando Marco pontapeou Sónia, a produção disse-lhes que, se ambos quisessem ficar, não transmitiria a cena da agressão aos telespectadores, a qual só acabou sendo emitida após Marco ter decidido abandonar o concurso. Ou seja, a TVI optou por emitir aquela cena, mostrando-se inicialmente disposta a ocultá-la dos olhares do público se acaso os dois contendores quisessem manter-se na “Casa”, o que, muito provavelmente, iria prolongar o conflito, a benefício das audiências. A transmissão da cena de sexo entre Marta e Marco, ou doutra, com Sónia a tomar banho nua, foram também, obviamente, opções da produção, não escolhas dos participantes, aos quais não era concedido qualquer direito de visionamento prévio das imagens que seriam editadas e, depois, transmitidas (para quem quisesse ver mesmo o programa 24 sobre 24 horas, havia um canal específico com transmissões ininterruptas, mas, obviamente, editadas).  

Mário refere também que, a dado passo, foi lançado um very light para o jardim da “Casa” e, noutra ocasião, uma bola com uns papéis dentro, que diziam que ele e o temperamental Marco não passavam de uns “otários”, assim acicatando os ânimos na Venda do Pinheiro. “Big Mário” recorda ainda que, na fase da candidatura, foi a uma entrevista ao antigo Hotel Sheraton, na Boavista, Porto, e que a primeira pergunta que lhe fizeram, de chofre, foi: “você costuma masturbar-se?”. Um teste psicológico, prova de resistência, mas com o seu quê de inaudito. Depois, ao entrar na “Casa”, juntamente com os outros, ainda ouviu os seus amigos lá fora, a gritarem em coro, no advento do bródio: “Come a loira! Come a loira!”. Dos tempos passados na “Casa”, outra das suas lembranças era a das claques que se aglomeravam à porta, sempre que um deles era expulso. Um dia, ficou espantado de ver tantos apoiantes do elo mais fraco do grupo, Zé Maria. Não sabia Mário Ribeiro, nem os espectadores do programa, que as claques eram compostas por figurantes, pagos pela Endemol (ou pela TVI), que se manifestavam a favor de um ou doutro dos participantes consoante as necessidades e os interesses da produção. 

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Às 00h36 do dia 1 de Janeiro de 2001, era sagrado o gladiador vencedor da primeira edição do “Big Brother”. Em cada 100 espectadores que viam televisão a essa hora, 90 estavam colados aos ecrãs da TVI. Seis milhões de portugueses assistiram ao programa e, ao longo de 120 dias, um milhão de pessoas visitava diariamente a sua página na Internet. Com isso, a televisão de Moniz esmagava a concorrência, adquirindo uma primazia que, com altos e baixos, tem mantido. Só no funeral de Diana se vira coisa parecida, mas o fenómeno não era, note-se, um exclusivo nacional: numa dada noite, metade da população de toda a Espanha passou os olhos pelo “Gran Hermano”, como por lá se chamava. Numa das emissões, quando dois concorrentes fizeram o que deles se esperava, embrulhando-se carnalmente, o povo castelhano não condenou o acto, nem a sua transmissão, mas tão-somente o facto de o protagonista masculino ter permanecido de peúgas calçadas… 

José Maria Seleiro, o vencedor da contenda, converteu-se num “herói nacional”, como lhe chamaram, apesar de ser, como também disseram, a personificação do “anti-herói”. Numa sondagem entre os jovens, realizada pela Visão, pelo Público e pela TSF, em 14 de Dezembro de 2000, a sua popularidade só era superada pela de José Saramago, nobelizado pouco antes, em 1998, mas estava muito acima dos níveis do Presidente da República, Jorge Sampaio, e do poeta Camões. A revista Invista elegeu-o como “personalidade do ano”, talvez menos por ele, mais pelo “Big Brother”, o “programa que mudou a televisão”, como o qualificou o Público, de 30/12/2000, a toda a largura da primeira página. 

Antes de entrar no “Big Brother” (e também depois) era escassa a biografia do moço: nascera em 10 de Julho de 1973, sendo nativo de Caranguejo, trabalhava como servente na empresa de construção civil do pai, em Barrancos, sonhava ser ajudante de pasteleiro, mas o que mais gostava era de trabalhar no campo. Todos os dias, após o trabalho, passava uma hora a cuidar da horta e dos animais, sobretudo das suas galinhas, o que lhe valeu não pouca troça na “Casa”. Era reservado, tímido, sensível, de poucas falas, o que irritava sobremaneira alguns dos colegas de concurso, com destaque para o fogoso Marco, a estrela do pontapé. Gostava de desenhar, de pintar, de fazer cerâmica, fora responsável pelos cenários e pela maquilhagem de um grupo recreativo local. Como actor, não tivera uma carreira assinalável, entrando numa única peça, onde ademais fez de touro, papel arriscado e difícil por aquelas terras barranquenhas. Por mês, chegava a ir mais de 20 vezes ao estrangeiro, mas nunca passou de Espanha, a seis quilómetros dali. Talvez por amor aos bichos, e à Natureza, indicou a Amazónia como destino de sonho. Para passar o resto da vida, dizia, sintomaticamente, “em qualquer lugar de Portugal, menos em Barrancos”. No interior da “Casa”, fez uns avanços marotos a uma das concorrentes, falando-lhe de hamsters e assim, e acabou confessando, escusadamente, que tinha um envolvimento amoroso e secreto com uma mulher casada, a “Cegonha”, mãe de dois filhos, confidência que a TVI, é evidente, não teve pejo ou pudor em difundir urbi et orbi. Um dado curiosíssimo, só há pouco revelado por Teresa Guilherme: como sempre, o público não sabia, mas existia um “grupo de cobaias” (sic), que a Endemol decidiu encerrar na “Casa”, durante duas semanas, nas mesmas condições dos concorrentes, apenas para testar a rede técnica e o funcionamento do programa – Zé Maria fazia parte desse lote, foi repescado à última para integrar a equipa principal (cf. Teresa Guilherme, ob. cit., p. 24). 

A vitória do trastagano seria apresentada como um enredo de Frank Capra ou, como então alguém disse, com certa maldade e crueza, como o triunfo “da lógica do Zé-Ninguém” (ou “a vitória do Zé Povinho”, como lhe chamou Fernando Dacosta na Visão, de 28/12/2000). De todos os concorrentes, Zé Maria parecia, de facto, o menos fadado para ganhar, dada a sua personalidade tímida e discreta, uma mosquinha morta. Outro engano, nova mentira: sobretudo a dada altura do programa, o seu triunfo estava anunciado nas estrelas, pois, de todos os concorrentes, Zé Maria era o que permitia uma melhor, mais apaixonante e mais enternecedora “narrativa”, a do vencedor imprevisto, a do rapaz que, vindo das lonjuras das planuras, ganhava a tudo e todos. Era o triunfo do nonsense, sem dúvida, mas o que mais comovia os corações do país, o que melhor mobilizava a compaixão lusitana mais pelos fracos – e o triunfo que, na aparência, à superfície, mais certificava a autenticidade do “Big Brother”. Mais ainda: como explica James Brooke-Smith, num fascinante livro dedicado aos anos 90, a vitória do inverosímil – neste caso, o rapazito de Barrancos – tem um objectivo determinado e preciso, visando mostrar o poder da realidade televisionada sobre a realidade real, sendo a primeira capaz de impor as suas escolhas contra a lei das probabilidades, de fazer triunfar os candidatos menos expectáveis contra os vencedores à partida; ou seja, e em suma, a vitória de Zé Maria era uma pujante demonstração da força irónica e tragicómica da reality tv, patente no modo como esta “atribuía os louros da celebridade precisamente quando estes se revelavam a figuração de um absoluto vazio” (cf. James Brooke-Smith, Os Delirantes Anos 90. Uma história da última década do século XX, Objectiva, 2023, p. 268). 

Foi exactamente neste mesmo sentido que Emídio Rangel afirmou um dia que, com o poder que a televisão lhe dava, tanto conseguia vender sabonetes como presidentes da República: “Uma estação que tem 50% de share vende tudo, até o Presidente da República! Vende aos bocados: um bocado de Presidente da República para aqui, outro bocado para acoli, outro bocado para acolá, vende tudo! Vende sabonetes!”. Ignorava o então director-geral da SIC, e nós também, que, por essa altura, do lado de lá do Atlântico, um empresário falido de Nova Iorque dava os primeiros passos de uma cavalgada galopante, começada nos ecrãs da TV e terminada na Casa Branca. Mark Burnett, o criador de alguns dos mais populares reality shows de todos os tempos (“Survivor”, “The Voice”, “Shark Tank”), convidara Donald J. Trump para júri do célebre “The Apprentice”, onde esteve durante 14 temporadas, até ser despedido pela NBC em Agosto de 2015, por ter feito comentários desbragados sobre os imigrantes mexicanos. Na altura, Trump já era candidato à Presidência dos Estados Unidos e a passagem pela “reality television”, além de o ter resgatado da falência, foi, sem margem para dúvida, o acontecimento mais decisivo para a sua conquista da Casa Branca. No passado, a América tivera um actor de cinema como Presidente. Agora, chegara a hora da reality tv, numa demonstração retumbante da sua força e da sua influência (cf. Patrick Radden Keefe, How Mark Burnett Ressurected Donald Trump As An Icon of American Success”, The New Yorker, de 30/12/2018, republicado in Rogues. True Stories of Grifters, Killers, Rebels and Crooks, Picador, 2022, pp. 175-205).     

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O que era a vida de um recém-saído da “Casa” fica bem evidenciado não pelo testemunho de Zé Maria, moço de poucas falas, mas pelo de “Big Mário”, Mário Ribeiro, que conta a loucura então vivida. “Adoro ser famoso!”, exclamou esse rapaz loiro de 1,90 m, que gostava de bife com batatas fritas, Coca-Cola e Bailey’s, e da música dos Pearl Jam, e que, além de convertido em “ícone gay”, desses do guia Spartacus, teve de contratar um manager para lhe gerir a carreira, contratando também seguranças pessoais nos sítios de maior afluência. Quando foi a uma loja de roupa em Vila do Conde, estalou motim entre os fãs, com intervenção dos seguranças. Deram-lhe um Ferrari para as mãos, jantou no Café-Café com Herman José, conheceu “estrelas de carne e osso”, um mundo novo de “passagens de modelos, sessões de autógrafos, fotos para publicidade, contratos e mais contratos… A agenda é de loucos!”, até porque, dizia, “as pessoas tratam-me por tu e consideram-me um amigo da casa delas”, facto explicável, naturalmente, por ter entrado aos serões em milhões de lares portugueses. Os pais, coitados, é que sofreram: a mãe chorava dias a fio, queixando-se de que nunca mais vira o filho, e o pai ajudava à missa, reclamando que ele nunca parava em casa. O próprio Mário dizia estar precisado de tempo para si, para dormir, para estar com os amigos, para retomar os estudos. Notícias recentes dão-no como empresário, após ter cumprido três anos de cadeia por assaltos à mão armada, em conjunto com gente ligada à diversão nocturna no Norte do país, um mundo de assombração (na casa da namorada de Mário, em Matosinhos, a PJ Porto descobriu, entre armas de fogo e matrículas falsas, uma farda da PSP alegadamente usada em espectáculos de strip-tease).   

Marco, aureolado pelo pontapé na Sónia, fez bom dinheiro, parece: cobrava 750 contos por uma entrevista, dezenas de contos por uma sessão de autógrafos, gravou um disco top de vendas e, disseram na altura, entrou “definitivamente nos bons caminhos da vida”, uma conclusão algo apressada porquanto o que se sabe dele é que, além de uma aparição fugaz em “O Último a Sair”, do humorista Bruno Nogueira,  teve de fugir às pressas da China, onde dava aulas de segurança pessoal e contraterrorismo, matérias em que é especialista, pois fez formação na Academia Internacional de Segurança de Israel. Marco leccionava numa base militar nos arredores de Pequim, na Academia Internacional de Segurança Genghis, uma organização privada mas com ligações às forças armadas chinesas, preparando os seus recrutas para actuarem em cenários de guerra, em África ou no Médio Oriente. Escapou de lá, parece, na companhia dos seus instruendos portugueses, já que foram alvo de agressões em Whampoa, motivadas, disse ele, por “xenofobia e racismo”. Da China viajou para Angola, foi trabalhar para uma empresa de segurança em Luanda, a Copebe, mas acabou acusado de, numa altercação num refeitório, ter dado “duas bofas na cara” de um colega, apontando-lhe também uma arma (à cara, já macerada pelas bofas). Depois disto, pouco mais se sabe. 

Marta Cardoso casou com ele, tiveram um Marco Jr., e depois separaram-se. Há pouco, Marta justificou o pontapé na Sónia com o facto de o ex-marido andar exausto na “Casa”, a pontos de, imagine-se, lhe terem caído as unhas dos pés: O Marco estava sobrecarregado. Ganhámos a prova por causa dele. Isto custou-lhe as unhas dos pés, que lhe saltaram fora. Ele andou uma semana sem conseguir andar. As unhas começaram a cair e os dedos dos pés ficaram todos negros com o esforço [que ele estava a fazer] já nos últimos quilómetros”, contou ela, repondo a verdade histórica (Correio da Manhã, suplemento “Vidas”, de 17/6/2020). Marta Cardoso é hoje apresentadora de reality shows, entre outras valências. Em Junho transacto, submeteu-se a uma mastopexia, assim descrita pelo cirurgião responsável pela mesma, o dr. Ângelo Rebelo: “levantou-se e arrumou-se a mama com a substituição das próteses por umas bastantes mais pequenas”, querendo-nos parecer que aquele médico deveria ter usado o plural ao falar da mama, pois, tirando a hipótese de erro clínico, não é credível que a apresentadora Cardoso tenha optado por arrumar só um dos apêndices, ficando peitoralmente assimétrica. A própria o confirma, aliás, ao descrever que, no final da intervenção plástica, ficou com “umas maminhas de uma menina de 20 anos, todas empinadinhas e com uns mamilos lindos de morrer, muito mais bonitos do que os outros”, sobrando-nos tão-só a dúvida se, neste último trecho, se está a referir aos mamilos das outras ou aos outros mamilos que tinha, os de modelo antigo. 

Sónia Veiga, a mais desinibida de todas, que não hesitou em banhar-se nua e, logo no primeiro dia, a comentar os glúteos do Marco (“que cu altamente!”; mais tarde, dizem os livros, “massajou-lhe o pénis”), que confessou aos colegas ter tido experiências lésbicas e que ainda hoje afirma que “para mim, falar de sexo é como falar de iogurtes”, vive actualmente em Aveiro, onde, parece, dá aulas na Universidade. 

Quanto a José Maria Seleiro, passou quatro meses na “Casa”, mas ela ainda está dentro dele, ou vice-versa (“o Big Brother nunca mais saiu da sua vida”, diz Teresa Guilherme, sem se aperceber da crueldade dessa sua afirmação). A TVI tentou transformá-lo em apresentador de televisão, levou-o ao Big Brother Famosos, em 2002, mas os insistentes rumores sobre a sua sexualidade fizeram-no colapsar. De permeio, ofereceu aos pais o carro que tinha ganho, comprou outro, veio de Barrancos para Lisboa, abriu um restaurante, foi colaborador de uma revista de cozinha, anunciou o casamento, desmentiu depois, anunciou outra vez. O restaurante acabou trespassado, a namorada partiu para o México, ele ficou na penúria. Em 15 de Agosto de 2004, quatro anos depois de sair da “Casa”, tentou suicidar-se, lançando-se da Ponte 25 de Abril, sendo salvo in extremis pelos militares da Brigada de Trânsito da GNR. Dois dias depois, foi visto a passear nu numa rua de Lisboa e também então tentou atirar-se ao rio. Uns agentes da PSP conseguiram evitar a tragédia, levando-o para o Curry Cabral. Depois, seria internado no Hospital Miguel Bombarda, sendo transferido para a Clínica Psiquiátrica de São José, a cargo das Irmãs Hospitalárias do Sagrado Coração de Jesus (ou, no dizer do Correio da Manhã, de 27/8/2004, “Zé Maria Entregue a Freiras”). Actualmente, continua a ser seguido pela equipa de saúde mental do Hospital de Beja e a tomar medicação que, segundo dizem, o acompanhará até ao fim dos seus dias. O dinheiro do concurso acabou, regressou à casa dos pais. Recebe há vários anos o Rendimento Social de Inserção, tirou há pouco um curso de jardinagem, através do centro de emprego, e obteve a equivalência ao 9.º ano de escolaridade. Numa terra envelhecida, sem empregos nem perspectivas, vai fazendo uns biscates de jardinagem, colabora pontualmente com a junta de freguesia. Trabalhou numa pastelaria da Amadora, no cabeleireiro da irmã em Barrancos, andou a vender jóias em Jerez de los Caballeros, Espanha, ignorando-se se por lá continua. Dizem que lançou livros (não encontrámos nenhum) e foi comentador do “social” (não procurámos). Em 2020, abriu as portas de casa para uma reportagem da TVI, programa “Você na TV”, a primeira e única entrevista que concedeu após ter caído em crise. Tem poucos amigos, uma vida social muito escassa, quase nula. Aos que lhe conquistam a confiança, gosta de recordar quem é, ou foi, o “Zé Maria do Big Brother”, o Zé Maria que fazia de Zé Maria a fazer de Zé Maria. 

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“Éramos genuínos. Éramos puros. Não tínhamos maldade. Não tínhamos noção de nada. Vivíamos como se fosse a nossa casa. Não tínhamos a noção da projeção do «Big Brother», da quantidade de pessoas que, também, estavam a viver aqueles momentos”, diz Susana, outra das concorrentes da “Casa”, talvez a mais próxima do barranquenho, tentando explicar o sucedido ao amigo (no fórum do “Big Brother” na Internet, psicólogos e sociólogos discutiram se Susana, a “Cabeça-Amarela”, seria ou não bipolar, com comportamentos neurótico-obsessivos). Teresa Guilherme, de seu lado, diz que “ficou uma ligação” entre ela e Zé Maria, acrescentando:  “Não o achei capaz de vir para Lisboa ou voltar a meter-se numa aventura como se meteu naquela, provavelmente não terá estrutura psicológica para aquela pressão”, só havendo a lamentar que nada disso tenha sido detectado e despistado antes, durante e depois da passagem do rapaz pela “Casa Mais Famosa” e, já agora, que ele tenha entrado, em 2002, no primeiro “Big Brother Famosos”, ao lado de vedetas como Romana, Cinha Jardim, Nuno Homem de Sá, o futebolista Cadete e a cantora Nicole. Vinte dias depois de ter entrado na “Casa”, Zé Maria desistiu. Depois, ao que parece, tentou entrar na “Quinta dos Famosos”, mas não conseguiu chegar à fala com a equipa da Endemol, onde nem sequer o atenderam. Hoje está “lindamente”, garante Cinha Jardim, que ficou sua amiga para a vida. “Está giro. Com cabelos brancos, mas giro”, diz a sua ex-colega Marta Cardoso. “É um caranguejo com um coração mole como eu… Somos umas florzinhas de estufa”, refere Teresa Guilherme, num retrato a um tempo astrológico e psicológico, mas bem eufemístico, do antigo participante da “novela da vida real” (como o “Big Brother” se auto-intitulava, para tramar as novelas da SIC)

É apressado e pouco sério dizer-se que foi a passagem pelo “Big Brother” que fez nascer ou sequer precipitou os problemas de saúde mental de José Maria Seleiro, como alguma imprensa insinuou, e até afirmou expressamente, com tremenda irresponsabilidade. Aliás, a mesma imprensa que outrora o levou às estrelas, para logo o esquecer, é aquela que hoje faz notícias sobre o seu estado psíquico, usando-o e descartando-o num minuto, tal qual como há 20 anos.  

Nessa época, nada se comparou às discussões então travadas pelos intelectuais. O conto de Teolinda Gersão foi só um momento, entre muitos, do pânico moral que então assolou a intelectualidade portuguesa: como lhes competia, os profissionais do intelecto, em parte bem, em parte mal, logo se precipitaram sobre o “Big Brother”, escrutinando-o à minúcia, inclusive sob uma perspectiva antropológica – de resto, bem interessante –, à luz da qual o concurso foi comparado aos cerimoniais de certas tribos (falou-se do ghotul, do chelik e do motiari) e analisado enquanto “rito de passagem” (cf. Eduardo Cintra Torres, Reality Shows. Ritos de passagem da sociedade do espectáculo, MinervaCoimbra, 2002; Alexandra Laranjeira, Mediatização da Vida Privada: o Big Brother como rito de passagem, Autonomia, 2003). 

Em 2 de Janeiro de 2001, a TVI promoveu um debate entre Eduardo Prado Coelho, Eduardo Cintra Torres e José Manuel Fernandes e, em Fevereiro desse ano, o movimento Graal organizou no “Terraço” uma mesa-redonda sobre o concurso, na qual participaram o antropólogo e técnico de psicanálise José Gabriel Pereira Bastos, o crítico Eduardo Cintra Torres e a professora Maria Alzira Seixo, catedrática de Letras. Pereira Bastos considerou que, com o “Big Brother”, estávamos perante uma “nova Revolução Francesa”, com a ascensão da pequena burguesia ao novo poder, o mediático; depois, discorreu longamente sobre “a massificação à volta de Lisboa”, falou nos efeitos do Maio de 68, com a vitória da juventude, a revolução sexual e a libertação das mulheres. Sustentou a tese de que o programa representava uma resposta à globalização, sob a forma de “paroquialização”, e, invocando a sua experiência de psicanalista, afirmou que a “Casa” representava a passagem de uma “cultura sadomasoquista”, marcada pela violência dos professores sobre os alunos, para uma “cultura voyeurista-exibicionista”, patente na avidez com que se via, e cita-se, “a Marta a fornicar com o Marco”. A vitória de Zé Maria fora, no entender de Pereira Bastos, o triunfo do “Portugal profundo, promovido pelo salazarismo” sobre a nova Revolução Francesa e o Maio de 68, personificados na pequena burguesia suburbana. Segundo o psicanalista, Zé Maria veio mostrar, coitado, que “a identidade nacional dos portugueses ainda é a identidade salazarista: gente que se diz afável, terna, sentimental, delicada, dedicada”. 

Eduardo Cintra Torres, pelo seu lado, falou da “apoteose da sociedade do ócio e do espectáculo”, na linha de Guy Debord, que tinha lido havia pouco, salientou, e bem, que a “Casa” não era uma casa, mas um estúdio, e chamou a atenção, e bem, para o facto de que também as elites viam o programa. Quanto a Maria Alzira Seixo, confessou que soubera do programa pela sua mulher-a-dias e que, como era professora, não podia alhear-se do seu tempo, pelo que começou a vê-lo “muito a custo”. Concluiu de imediato que a sua vida era muito mais interessante do que a dos moradores na Venda do Pinheiro e, apesar de dizer que não era uma espectadora assídua, do programa e da televisão em geral, mostrou um conhecimento circunstanciado das aventuras na “Casa”. Sobre o sexo de Marco com Marta, considerou-o um “sintoma de degenerescência”, não de libertação; depois, chamou a atenção, e bem, para o constrangimento que os pais dos concorrentes sentiam ao verem os filhos naqueles preparos, a exporem-se de forma tão despudorada. A seguir, falou de “mecanismos de catarse”, das “indústrias da cultura”, de “negócio e opressão”, de “uma ideologia de convívio muito negativa” e, enfim, da TV como “ópio do povo”, para concluir, derrotada, que estava prestes a reformar-se, levando consigo a mágoa de, ao longo de décadas de docência, ter contribuído, a seu modo, para formar uma juventude tão inculta e desgraçada, aquela que, poucos anos antes, em 1994, Vicente Jorge Silva designara por “geração rasca” (cf. AA.VV., O Sintoma Big Brother, Graal-Terraço, 2001).  

Enquanto isso, em editorial do Público, que então dirigia, José Manuel Fernandes classificou o concurso como “qualquer coisa entre o lamentável e o detestável”, enquanto, nas páginas da Máxima, Madalena Fragoso dizia que o programa mostrava “uma juventude inculta, um tanto básica, rude nos gestos como na linguagem, mas sã” e “que se apaixona” e “tem espírito de aventura”. Já Pacheco Pereira considerou que o problema não era de voyeurismo, mas da “aldeia global com os seus mecanismos de destruição da individualidade” e pediu um debate urgente sobre os reality-shows, opinião de que Vasco Pulido Valente discordou, por, segundo ele, assentar nos preconceitos de uma suposta “classe média letrada” perante “um povo analfabeto, ignorante, grosseiro”. Pela voz de Ruben de Carvalho, o PCP condenou tamanha e tão impudica exibição das intimidades do povo, enquanto Cintra Torres diria, com graça, que o “Big Brother” era, ele sim, a verdadeira “ditadura do proletariado”, enquanto Augusto Santos Silva se mostrava indignado com a “mercantilização dos afectos” e a “exploração dos instintos mais primários”, advogando que era necessário “recolocar a educação na ofensiva”. O secretário de Estado Arons de Carvalho, por sua vez, considerou que a imprensa portuguesa atravessava “uma profunda crise”, que se repercutia em “falta de rigor e sensacionalismo”.  

O juízo mais agreste caberia, contudo, a Mário Soares, o qual, antecipando uma frase célebre de Manuela Ferreira Leite, afirmou que “se eu pudesse, fazia uma ditadura em Portugal para proibir o Big Brother”, acrescentando que nunca seria capaz de conversar com aqueles concorrentes, todos uns medíocres. Quando transmitiram a Zé Maria a opinião do ex-Presidente, o jovem mostrou-se conformado, como sempre: “Pois é, se calhar sou mesmo medíocre!”. Para a reacção de Soares certamente contribuiu o seguinte: chamado a comentar as eleições norte-americanas para o Jornal Nacional da TVI, as audiências mantiveram-se baixas enquanto Soares falou; logo a seguir, quando o noticiário incidiu sobre a “novela da vida real”, o share subiu em flecha. O escândalo levaria o Sindicato dos Jornalistas a promover um debate sobre o tema, com uma psicóloga, o neurologista Alexandre Castro Caldas, a editora do jornal “Big Brother Extra” e o padre Peter Stilwell. Intervieram também, sob moderação de Maria Flor Pedroso, Henrique Garcia, pela TVI, Jorge Wemans, director da Lusa, José Vegar, d’O Independente. Wemans referiu que uma jornalista da Lusa invocara a “cláusula de consciência” para recusar-se a fazer a cobertura do pontapé de Marco, que Wemans acabou por delegar noutra colega, considerando tratar-se de um assunto relevante, opinião sufragada por Henrique Garcia (“Era uma coisa de que toda a gente falava. Não podíamos ignorar uma coisa de que todo o país falava”). Em contraste, Alexandre Castro Caldas foi arrasador: “A casa do Big Brother equipara-se a Auschwitz”, disse, acrescentando que se colocavam os concorrentes em “situações-limite”, com “consequências difíceis de prever”. Sobre o que iria suceder aos antigos concorrentes, passada a febre da fama, comparou-os às pequenas vedetas de Hollywood quando crescem e afirmou, premonitório: “Mais tarde ou mais cedo, quando a febre passar, estas pessoas vão questionar-se: «Porque é que eu já não sou importante»? Cria-se uma distorção da realidade” (cf. Público, de 11/11/2000). 

Alexandre Castro Caldas colocava o dedo na ferida, falando do mais importante – o bem-estar dos concorrentes –, tópico que praticamente passou ao lado de todos os que doutamente discorreram sobre o “Grande Irmão”. A resposta a essa questão seria dada por dois constitucionalistas de Coimbra, Gomes Canotilho e Jónatas Machado, que, num parecer sobre os reality shows, afirmaram peremptoriamente que, depois de participarem no “Big Brother”, os concorrentes estavam “longe de apresentar os sintomas físicos, emocionais e sociais de quem foi alvo de um atentado contra a sua dignidade”. Faziam-no com base num texto de um jurista alemão, sem que, num parecer jurídico sobre o “Big Brother”, se tenham preocupado sequer em analisar as regras do concurso, que jamais citam, ou em escrutinar a literatura da especialidade (médicos, psiquiatras e psicólogos) que já então existia sobre o tema. 

O parecer daqueles juristas de Coimbra representou uma defesa desbragada, enviesada e abjectamente parcial dos reality shows, indo ao ponto de dizer coisas como esta: “se muitos detestaram o «Big Brother», muitos outros adoraram-no. A «junk food» de uns é a «fast food» ou mesmo a «haute cuisine» de outros”. Afirmaram também que, mais do que voyeurismo, os reality shows mostravam pessoas a orientar a vida pelos “seus próprios valores, interesses e objectivos”, por muito que isso custasse ao paternalismo dos intelectuais.  E disseram ainda que os que criticavam o programa queriam, no fundo, que o Estado tutelasse a existência de Zé Maria, condenando-o para sempre a trabalhar nas obras em Barrancos, como se a existência do rapaz tivesse de obedecer a este esquematismo binário: ou entrava no “Big Brother” ou eternamente ficava como servente de pedreiro. Pelo meio, inflamadas perguntas retóricas, tudo a favor dos reality-shows: “que semelhança pode existir entre a casa do Big Brother e, por exemplo, o campo de concentração de Auschwitz? Ou entre a Endemol e as SS?” 

A resposta a este argumentário ad Hitlerum fora dada, como vimos, por Alexandre Castro Caldas, um dos mais prestigiados neurologistas portugueses, director do serviço de neurologia do Hospital Egas Moniz, mas, obviamente, pouco interessou ao panfleto de Gomes Canotilho e Jónatas Machado, o qual, depois de defender o inestimável contributo das televisões privadas para a “ampliação das oportunidades de comunicação e do pluralismo de expressão”, depois de ter denunciado a “tirania da dignidade”, depois de  ter falado muito na “liberdade de expressão” e da necessidade de “protecção da biodiversidade axiológica e cultural” e sustentado que bom mesmo era a “auto-regulação” pelas televisões privadas e que a Alta Autoridade para a Comunicação Social deveria abster-se de aplicar sinistras coimas, sendo melhor optar por uma soft regulation, com admoestações pedagógicas e recomendações genéricas, depois de tudo isso, enfim, concluiu dizendo, enfim, que “não existem razões constitucionais ponderosas para pôr em causa o modelo dos «reality shows» em si mesmo” (cf. J. J. Gomes Canotilho e Jónatas Machado, “Reality Shows” e Liberdade de Programação, Coimbra, 2003, p. 110). 

Tudo isto mostrava que, nos finais da década de 90, alvores do novo milénio, o Portugal pensante foi confrontado com uma televisão inteiramente nova, revolucionariamente diferente. Era o sexo, não o povo, que fazia o “25 de Abril televisivo”, de resto muito mais presente nos talk-shows do que nas “novelas da vida real”. Por outro lado, o movimento mostrava que, finalmente, pertencíamos de pleno à “Europa”, um mercado comum de gostos e tendências que rasurava as idiossincrasias nacionais de cada país, como sucedia entre nós com o catolicismo e a moral cristã. A programação arrojada das “privadas” revelava ainda que o “Consenso de Washington” e o neoliberalismo se estendiam agora à indústria dos media, com o audiovisual à cabeça, a qual doravante passava a ter por fito exclusivo o lucro e as audiências, perdendo a função antiga de educar as massas e formar o gosto. O fim do monopólio estatal da radiotelevisão correu em paralelo com a privatização de outros sectores da economia, mas ancorava-se, curiosamente, em certos valores de Abril, como as liberdades de expressão e criação cultural, a libertação das mulheres e a democratização da sexualidade, entendida agora não apenas como um mero direito de fruição e de gozo num espaço íntimo, mas como o direito de expor a intimidade na praça pública.  

***

Foi este o contexto em que as estações privadas, com destaque para a SIC, levaram aos lares portugueses um país-outro, carregado de sexo e de bizarrias, como ficava exemplarmente mostrado nos títulos dos programas do talk-show “Fátima Lopes”, que o canal de Balsemão emitia todos os dias úteis: “Eu já abortei”, “O meu casamento foi um inferno”, “Já andei na prostituição”, “Vivo com um órgão que não era meu”, “Sou gordo e gosto”, “Nasci homem mas tenho uma mulher dentro de mim”, “Os meus pais puseram-me na rua”, “Fui avó antes dos 35”, “Fui abandonado ao nascer”, “O meu marido desapareceu”. Em simultâneo, no programa “Sex Appeal”, a fulgurante Elsa Raposo interpelava cidadãos na rua, perguntando-lhes que idade tinham quando deixaram de ser virgens, enquanto, no estúdio, o jornalista Vicente Jorge Silva e a actriz Sofia Alves desvendavam, em conversa amena, detalhes pícaros das suas vidas sexuais. 

Vendo-se ultrapassada pela TVI, a SIC reforçava a aposta no sexo e, em simultâneo, lançava os seus próprios reality shows, ainda mais bárbaros do que o “Big Brother”. Da TV Globo, Emídio Rangel trazia uma arma secreta, o brasileiro Ediberto Lima, o qual, entre outras proezas, ainda hoje detém um recorde nunca visto, 90% de share com o “Super Bueréré”. A ele se deveu “O Bar da TV”, apresentado por Jorge Gabriel e comentado por Lili Caneças, que, sintomaticamente, e apesar de um razoável desempenho nas audiências, não mais voltou a ser transmitido. Porquê? Talvez porque, a dado momento, a concorrente Ana Raquel levou o namorado para dentro da “casa”, onde teve sexo com ele, autorizada pela produção. Ediberto foi demitido, deu uma conferência de imprensa a alegar que, por lapso, um colaborador seu se baseara no “regulamento sueco” do programa, o qual, mais liberal, permitia aquelas visitas íntimas.  “O programa é O Bar da TV, não é o Bordel da TV. Não posso admitir que levem alguém lá para dentro para fazer sexo. Aquilo virava um bordel. Seria acusado de proxeneta e gigolo”, sustentou Ediberto Lima, agora irado e pudico, deixando por explicar o incidente mais grave de todos, quando os pais da concorrente Margarida Gomes, uma rapariga de Borba, irromperam pelo “bar” adentro, instando a filha a regressar a casa, após terem-na visto a brincar com um vibrador no decurso de uma festa. O mais abjecto de tudo: a SIC gravou – e transmitiu – o doloroso diálogo entre Teodomiro e Miquelina, de um lado, e Margarida, do outro, gente infeliz com lágrimas (“Onde estão os teus princípios?”, “Abandonaste a Igreja?”, “Não posso viver em Borba. Não posso ir ao supermercado, não posso ir mais à missa”, “Tu não sabes as imagens que eles estão a passar”). Para cúmulo, Ediberto Lima intrometeu-se na conversa familiar, pôs-se do lado de Margarida, que acabou por permanecer no programa. A SIC, obviamente, retirou os registos desse momento, do qual só hoje existem, imagine-se, trechos capturados por um “DJ Porco”, em vídeo disponível no YouTube. O presidente da câmara de Borba acabaria por se envolver na contenda, atacando os seus munícipes, que apelidou de “retrógrados” e “conservadores”. Margarida, por seu turno, optou por tocar o Hino de Nossa Senhora de Fátima ao violino e rezar um pai-nosso em directo, de mão dada com Lili Caneças. Pouco antes, ao discorrer sobre o assunto – mais precisamente, sobre o facto de Ana Raquel ter levado um massajador erótico para o “bar” –, Caneças perguntou o óbvio, “de que é estavam à espera?”. Nada havia para admirar nesse comportamento tão ousado, pois, segundo ela, Margarida “vinha da favela”. A jovem solicitou apoio psicológico, Ediberto mandou-lhe uma falsa psicóloga, argentina, e, que se saiba, Margarida nunca teve a ajuda que pedira à produção. “O pior já passou para Margarida”, diria dias depois Jorge Gabriel, serenando os ânimos. Foi sol de pouca dura: no dia seguinte, Leonor recebia a notícia de que o ex-marido, aproveitando a estada dela no “bar”, raptara a filha de ambos e que os pais estavam a caminho de Lisboa para contar-lhe o sucedido, o que, segundo parece, não passou de mais um embuste da produção. De permeio, o namorado de uma das concorrentes entrou no “bar” para fazer sexo debaixo de edredões, Leonor saiu do “bar” e regressou, violando as regras mais básicas, um concorrente simulou sexo oral com o malfadado vibrador, outro assumiu-se homossexual. Era tanta a “realidade” que acontecia a toda a hora no “Bar da TV” da SIC que, entre mentira por mentira, os espectadores acabaram por preferir o “Big Brother” da TVI. No frenesi das audiências, o canal de Balsemão todos os dias tinha uma história, um acontecimento escaldante, e, como é óbvio, os espectadores começaram a desconfiar ou, como então disse Cintra Torres, tratou-se de uma “manobra estúpida”, pois a “audiência percebe perfeitamente que ali há gato”, que tudo mais não era do que uma soap opera aldrabona. Contudo, e mesmo perante provas evidentes de que a SIC andava a enganar quem a via, Emídio Rangel não se demoveu, dizendo tão-só “os cães ladram e a caravana passa”. Não passou. Tempos depois, Rangel saía da SIC, para assumir, imagine-se, as funções de director-geral da RTP. Antes de falecer, em 2014, teve, como último projecto audiovisual, a criação de um novo grupo de media, juntamente com Rui Pedro Soares, antigo administrador da PT. 

A história, porém, não termina aqui. Dezoito anos depois, em 2019, Ediberto Lima explicou a Rui Unas como tudo se passou com Margarida Gomes: com “Bar da TV” a ser esmagado pelo “Big Brother”, Ediberto interrogava-se, atormentado, “o que é que eu vou fazer para ir buscar audiências?”. Na manhã seguinte, a sua produtora ligou-lhe, dizendo que os pais de Margarida anunciaram que iam de Borba buscar a filha de volta. “Foi a melhor notícia que você me deu!”, exclamou o brasileiro. Quando Teodomiro e Miquelina chegaram ao estúdio, Ediberto entreteve-os, disse-lhes que eles tinham inteira razão, espicaçou-os, e, depois, propôs-lhes entrarem no “bar” para convencer a miúda a voltar à terra. Emídio Rangel dissera-lhe para entrar em directo, havendo em tudo isto um pormenor sórdido, inconcebível: nem os pais de Margarida, nem ela, sabiam que tudo estava a ser gravado e transmitido em directo. “Não sabiam!”, disse Ediberto a Unas, entre gargalhadas. “Valeu o sacrifício. É tão simples quanto isso. E eles acabaram por não tirar a menina porque não havia motivos para isso. Nós, que estamos nos bastidores de televisão, muitas vezes somos obrigados a trabalhar a nossa imaginação em busca das audiências”. As audiências, sempre as audiências… que diriam de tudo isto os doutores Gomes Canotilho e Jónatas Machado, é melhor nem perguntar.  

Perante este desconchavo, a Alta Autoridade para a Comunicação Social aprovou deliberações indignadas, quer contra a TVI, quer contra a SIC (a que esta reagiu retransmitindo partes do “Bar da TV” e falando em “intenção persecutória”), mas, estranhamente, levou quatro anos para decidir da coima a aplicar ao canal de Carnaxide. “Não se pode explicar. Não tem explicação”, disse, sobre essa singular demora, uma fonte da AACS ao Diário de Notícias, de 27/8/2005, esclarecendo que, apesar de ser “desejável uma decisão rápida”, esta “levou mais tempo, mas, ainda assim, dentro do prazo legal, sem atingir a prescrição, que é de cinco anos”. A lei previa uma coima entre os 37 e os 250 mil euros, a AACS optou por um “patamar intermédio”, 150 mil euros. Peanuts. “Esta é uma decisão estranha de um órgão moribundo, cuja explicação só pode ter a ver com o facto de a AACS querer colocar-se em bicos dos pés na hora da saída”, disse Emídio Rangel, afirmando que a Alta Autoridade não poderia sobrepor-se à vontade das pessoas, “que participaram em tudo aquilo de livre vontade e pleno juízo”, o que não era verdade, pois, como vimos, as imagens do diálogo da família Gomes foram captadas e transmitidas sem o seu consentimento e, logo, sem o seu “pleno juízo”.  

Antes do “Bar da TV”, a SIC emitira outro reality show tenebroso, o “Acorrentados”, apresentado por Artur Albarran e José Figueiras, no qual os concorrentes se encontravam presos por correntes e tinham de andar juntos para todo o lado (na inauguração do programa, o dia do acorrentamento, acorrentaram-se também muitos famosos, como Paulo Pires, Felipa Garnel, Herman José e Joaquim de Almeida).  Apesar de terem sido feitas seis temporadas desta coisa, muita gente agrilhoada, apesar de Elsa Raposo ter irrompido pela “casa” gritando “Quem já praticou sexo anal, ponha o dedo no ar!”, apesar de, como disse Mário Mesquita no Público, o programa ter quebrado o último tabu, pondo os concorrentes a urinar e a defecar à vista de todos, o “Acorrentados” nunca conseguiu destronar o “Big Brother”. Nos reality shows, a SIC perdeu sempre para a TVI, quer nas audiências, quer na qualidade, a prova de que o povo pode ser estúpido, mas não tanto como alguns julgam.  

A Alta Autoridade, de seu lado, foi prosseguindo o seu afã recomendatório, perfeitamente inútil. Reuniu os presidentes da RTP, da SIC e da TVI e, em Setembro de 2001, assinaram todos um belo acordo de auto-regulação, com várias cláusulas. Três meses depois, a TVI de Moniz supostamente infringiu-o. Porém, como isso deveria ser analisado por uma comissão arbitral, e como essa comissão ainda não fora instituída, nada de concreto se fez. 

Pouco antes, a SIC estreara os programas “Bombástico”, “Escândalos e Boatos” e “O Crime Não Compensa”, e a TVI o “Eu Confesso”. Num deles, um apresentador, armado em Marco, chegou a dar pontapés numa sentença judicial de que discordava, o que mereceu queixa do Conselho Superior da Magistratura ao Governo, o qual solicitou a intervenção da AACS, e a qual emitiu… um comunicado. Em desespero, o Governo acabaria por aprovar uma nova Lei da Televisão, a Lei n.º 23/2003, de 22 de Agosto, mas sem quaisquer resultados práticos. 

***

O formato do “Big Brother” persiste e ainda hoje são emitidas “novelas da vida real”, mesmo que a sua audiência se encontre em franco declínio, como, de resto, a de todas as televisões generalistas, cada vez mais preteridas em favor do streaming e das redes sociais (“Inacreditável o nível desumano a que estão a chegar as redes sociais”, disse há pouco Piet-Hein Bakker, indignado pelos comentários feitos a fotografias da sua filha despida numa praia de nudistas: Flash!, de 2/8/2023). A cada dia que passa é mais evidente que, com o actual modelo, a SIC e a TVI se encontram em lenta agonia: só nos primeiros seis meses de 2023, o Grupo Impresa viu os seus prejuízos agravarem-se em 87%, tendo uma dívida líquida no valor de 145,2 milhões de euros; o grupo Media Capital, dono da TVI e da CNN, registou 4,1 milhões de perdas em 2021, recuperando no ano seguinte pela venda do negócio das rádios, que gerou mais-valias líquidas de 46,1 milhões de euros. Esta, sim, é a “novela da vida real”. 

O “Big Brother” trouxe dinheiro e fama a muitos jovens de Portugal e, como sempre sucede, os que tiveram tino e cabeça souberam aproveitá-lo para melhorar as suas vidas e a das suas famílias (em todo o caso, tudo quanto ganharam ficará sempre aquém, muito aquém, da colossal fortuna de John de Mol, o dono da Endemol Entertainement, considerado o homem mais rico da Holanda e um dos 500 mais ricos do mundo na lista da Forbes). O sucesso da receita, pelo menos nos Estados Unidos (e, provavelmente, também em Portugal), prende-se com outra razão, os baixos custos de produção. Uma vez mais, a História ajuda, sendo necessário ter presente que a reality television nasceu, curiosamente, de uma disputa laboral: em 1988, a Fox começou a desenvolver o projecto de um reality show com polícias nas ruas, o célebre “Cops”, que recebeu luz verde dos executivos porque, por um lado, a produção das séries de ficção estava parada devido a uma greve dos argumentistas e, por outro, porque os seus custos de produção eram comparativamente muito mais reduzidos. Não deixa de ser irónico pensar que a “TV realidade” viu a luz devido a uma falha da “TV ficção”. Com o tempo, é certo, acabou por confundir-se com ela, sendo hoje difícil determinar a fronteira entre a verdade e a mentira dos reality shows.  

Se eles trouxeram a fortuna de produtores como John de Mol, e de estações como a TVI, para muitos outros, porém, a passagem pela “Casa Mais Famosa” acabou por revelar-se uma indelével tragédia, que os marcará para sempre. A alguns, mais tontos ou imaturos, a súbita fama subiu à cabeça, havendo até o caso de uma concorrente que, quando foi pedir um empréstimo ao banco e lhe perguntaram pela profissão, respondeu “Big Estrela” (no “Big Estrelas”, um programa feito pela TVI para promover os ex-concorrentes, estes cronometravam ao segundo as aparições de cada qual, fazendo escândalo se sentissem estar a ser ultrapassados pelos outros). 

Quanto aos milhões de espectadores do programa, não se sabe se saíram culturalmente mais enriquecidos, mas foram, ao menos, efemeramente entretidos. Não deixa, no entanto, de nos acorrer ao espírito uma frase de Nietzsche, “quando olhas muito para o abismo, o abismo também olha para ti”. Na verdade, e ao contrário do que se pensou e pensa, o “Big Brother” não foi um “retrato de Portugal” pela amostra dos concorrentes ou pelo que exibia no interior da “Casa”; foi, isso sim, um retrato do país que diariamente o via e que assim se pôde observar ao espelho, vendo-se reflectido nas percentagens do share e das audiências. Estas mostraram, para surpresa de muitos, que o “Big Brother” não era, como chegaram a dizer, “o mundo VIP dos pobres” ou, se quisermos, que os seus espectadores não se cingiam, de modo algum, às classes populares e iletradas, estando antes distribuídos equitativamente por todas as camadas da pirâmide social: 15% para a classe alta, 30% da classe média alta, 35% da classe média baixa, 22% da classe baixa. 

Depois, como é evidente, os ricos mudaram de canal e deixaram de ver aquilo, até porque passou a ser vulgar fazê-lo. Mas, nos tempos áureos das primeiras temporadas, houve uma irrepetível comunhão entre as elites e o povo, a qual só causa espanto aos que ainda julgam que, em matéria de gostos, hábitos e consumos culturais, há um abismo entre ricos e pobres, afortunados e remediados. Talvez isso demonstre que os conceitos de “elite” e “povo” são demasiado genéricos e abrangentes para explicar uma realidade social muito mais plural e diversa do que julgamos, uma realidade em que muitos ricos têm no Correio da Manhã o seu jornal de leitura e só frequentam eventos culturais (teatro, cinema, exposições) que sejam socialmente remuneradores, não por hábito enraizado numa educação formal ou num gosto genuíno. Existe, é certo, uma elite cultural (ou várias), classificável grosso modo como “intelectualidade”, mas ela é tão diminuta e exígua que, só por si, não consegue suportar uma actividade cultural intensa e financiar as suas dispendiosas “indústrias”. A falta de público e de consumidores, em número e em dinheiro, é o principal e insolúvel drama da “cultura” em Portugal, aquilo que obriga a uma subsidiação estatal permanente de um sem-número de “iniciativas” e “projectos”, com prejuízo de áreas menos espectaculares e de efeitos menos imediatos, como o património, as bibliotecas e os arquivos, o livro e a leitura. 

Em 1973, quando foi lançada a série “An American Family”, a antropóloga Margaret Mead disse que ela era “uma invenção tão significativa como a criação do drama ou do romance”. Contudo, e apesar de ser considerada precursora dos actuais reality shows, poucas ou nenhumas semelhanças existem entre a série de 1973 e a selvajaria iniciada nos anos 1990, a qual se prolonga até hoje. Em 2019, após a morte trágica de um concorrente, a Câmara dos Comuns do Reino Unido lançou um grande inquérito sobre os reality shows britânicos, sobretudo sobre os efeitos psicológicos que os mesmos têm sobre participantes e espectadores. Por cá, ao que sabemos, não se promoveu ainda qualquer estudo ou inquérito sobre o “Big Brother” e congéneres.  

***

Até 2020, já se tinham suicidado 38 concorrentes de reality shows (cf. Yom Adegoke, “Why suicide is still the shadow that hangs over reality TV”, The Guardian, de 27/5/2020). 

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Todos os natais, Zé Maria liga a Teresa Guilherme, desejando-lhe as Boas Festas. E, num passado não muito distante, ajudou a amiga Cinha Jardim numa mudança de casa. 

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