Fotografia de Marta Lança

A mais trágica e bela estação

1. Fim de junho, a camioneta dá entrada na gare de Campanhã, os motores desligam enquanto atendo o telemóvel. É o número da minha mãe, mas surpreende a voz do senhor Manel. “A mãe caiu no corredor do prédio”, ouço os uivos de dor por detrás da voz sóbria do porteiro. Uns dias antes, a voz era a da própria a contar, orgulhosa, das caminhadas com amigas pelas belezas frondosas das ilhas Flores e Corvo, de como a vida valia a pena, espiritual e fisicamente, em qualquer fim do mundo. Agora, prostrada e desesperada num corredor de Carnide, pedia ajuda à filha, por sua vez a 300 km de distância. Que não se despreze a importância dos irmãos, sobretudo na velhice dos pais. Pode ser aconchegante noutras ocasiões, mas na velhice é crucial. O irmão lá se põe a caminho, assim como o INEM, e a nossa mãe segue de ambulância para Santa Maria. Urgências, triagem, fémur partido, internada até ser operada, o que, no estado impraticável do SNS, demorará onze dias a acontecer.

Desde que vejo o rosto de Françoise Vergès projetada num ecrã a falar de descolonização de museus e de arquivos (num Colóquio de Cultura Visual, na Mala Voadora organizado por Kitty Furtado e Inês Beleza Barreiros), até apresentarmos “Alguém me escuta?”, o resultado da nossa intensa Oficina de Reparações, na qual pensámos, debatemos, partilhámos ideias e impossibilidades de “reparação de crimes contra a humanidade”, acontecerão muitas coisas. A noite mágica do São João que enche o céu do Porto de balões coloridos, confidências, feridas de vários graus, angústias pessoais e coletivas, construção de uma comunidade transitória. Até a operação da minha mãe, descerei a Lisboa desde o Porto umas quantas vezes, fixando a imagem dos Três Pastorinhos numa loja de merchandise católico de Fátima, quiçá pedindo milagres a cada viagem.

O quarto de ortopedia são 30 m2 de pesadelo e ternura. Enfermeiras e auxiliares trabalham ao máximo da sua exaustão, lavando rabos, lágrimas, trocando lençóis e pensos. Fazem greve, o que exaspera familiares e doentes, mas compreendemos bem as razões.

Os três colegas de quarto da minha mãe ficam-me no coração. São uma família temporária e contigente que tem de partilhar privacidade numa altura delicada e débil. O rapaz de 30 anos atirou-se da janela após uma burla na net em muitos milhares de euros. Tem espelhadas no rosto uma frustração lancinante e uma raiva insuperável. A senhora em frente cegou repentinamente devido a diabetes, e conta que ficará acamada e eventualmente de perna amputada até ao resto dos seus dias. É com muito amor que recebe o marido motorista de longa carreira, que vem vê-la todos os dias, conduz de Braga ao quarto de Santa Maria, para passarem uma hora de mãos dadas. Comoveu-me ver o marido a tirar-lhe os pelos das sobrancelhas e do buço com uma pinça. Ao lado da cama da minha mãe, a voz da filha e da mulher muito carinhosas com o seu doente de olhos fixos ao nada. A filha consegue levar-lhe uma sopa, na tentativa da comida caseira atenuar a falta de apetite. O senhor acaba por morrer. A TVI sempre ligada num volume insuportável transforma o quarto de ortopedia num hospício e enerva a minha mãe, e a mim que tento baixar o volume, e levo na cabeça da doente invisual, reclamando, com razão, que a televisão é a sua conexão ao mundo. 

A operação corre bem, apesar dos receios com a anestesia em idades avançadas. Achamos por bem seguir com cuidados continuados num hospital privado. A mãe está muito fraca para ir para casa, sozinha, as férias das crianças estão aí, não conseguimos estar sempre presentes. Vamos visitá-la diretamente da praia: biquini, sal e chinelos nos corredores do Hospital da Luz. As miúdas divertem-se com as camas e utensílios geriátricos.

No regresso a casa, a mãe precisa de ajuda nas refeições, medicamentos, higiene. Continua fraca, sem apetite e a memória seriamente abalada. Contacto uma empresa de cuidados ao domicílio. Apresentam-nos a cuidadora, uma guineense firme e sorridente. Ficamos ambas confiantes porque conheço Pecixe, a terra de onde vem. O que a Flora me conta deixa-me indignada. Nas empresas de cuidadoras, grassa a exploração laboral, apenas uma minguada percentagem do que pagamos vai para as “técnicas”, ou seja, mulheres, imigrantes, não raras vezes indocumentadas. No nosso país envelhecido, cuidar de idosos é tão importante como cuidar de crianças: exigente e essencial. Os cuidados são feitos de pequenas e intermináveis tarefas. Limpar, cozinhar, fazer compras, tratar de corpos debilitados, fazer companhia, ter uma paciência inesgotável para ouvir as mesmas histórias, lembrar o medicamento, levantar a moral, aturar os maus feitios e desencantos de doentes, velhos e solitários. Sendo que a pessoa prescinde da sua vida, família e casa para estar ali de casa em casa de estranhos, a dar o melhor de si. Portanto, é um trabalho que devia obrigatoriamente ser bem remunerado. Mas não, é um negócio do mais baixo nível.

 

2. Sete anos fez a minha filha. Infortunada a data de 1 de agosto, para as festas com amigos, ninguém está na cidade, sobretudo no dia em que chega o Papa para benzer a Jornada Mundial da Juventude. Lá deu para comemorarmos no jardim José Gomes Ferreira antes do dia de aniversário, bolo de três cores com efeitos da Wednesday montado num tronco de árvore, sem apagar a vela que dá azar. Sete anos, isso implica que tenho de ser mais adulta ainda, ela já quase sabe ler portanto acabam-se as narrativas únicas da parte dos pais. É uma alegria assistir ao devir-pessoa conhecendo cada fase, novo formato de birras e de perguntas, e uma personalidade que se vai ajustando a essa criatura saída de um sonho louco de ser mãe. E lá vai ela para a quinzena no Algarve com a família do pai enquanto eu fico pela Costa da Caparica, para não me afastar muito dos meus deveres de filha. E é na Costa da Caparica que passeio pelo paredão com os veraneantes low class, colados na areia, abarrotando o mar com água pela cintura. Ainda se apanha vestígios das turbas católicas, nas filas para a Pizza Hut, entoando cânticos de paz e amor, na rua dos Pescadores a salvo da insolação. Leio romances e comics, nada de notícias (silly season, gosto de ti), mexo nuns textos pseudo qualquer coisa. Que difícil o processo decoming out da escrita nesta idade! Sofro por antecipação na plena consciência da desinteressante “poética do quotidiano”, como categorizou o editor Fernando Ramalho, que também passa férias na Caparica. Revivo os lugares e as casas, e a da Costa é bem marcante. Ando extraviada em memórias, no jogo, egóico, de acolhimento e aceitação ao que fui sendo, talvez inconscientemente motivada para escrever memórias, seletivas claro, porque a minha mãe partiu o fémur. É que é altamente simbólico. O fémur o osso que medem e anunciam na ecografia ao feto, esperança imensa, ou a fractura mais recorrente no ocaso da vida. 

À falta de melhor, documentar o verão ajuda a agarrar qualquer existência sem missão histórica. E neste verão perdi a minha pulseira da sorte de há 40 anos.

 

3. Passo as restantes semanas de verão no monte ouriquense, meu eixo emocional. Uma casa de ruínas, agora cheia de histórias, que assiste ao nosso crescimento – um nós com muita gente – enquanto permanentemente a reconstruímos, com trampolim, biblioteca, animais, jantaradas, amores, espiados pelas oliveiras, os marmeleiros e as figueiras. Os verões ali têm muitas horas de barragens e piscinas municipais, calor extremo, sestas, excitação e fome permanente das crianças. Este ano a filha já nada sem braçadeiras e leu a Turma da Mónica até ao fim. 

Faço um intervalo de campo para descer à Manta Rota ao aniversário de uma grande amiga. É impressionante mas consegue reunir mais de 30 pessoas em pleno fim de agosto,  a seguir o areal em maré baixa para nos sentarmos no chão de Cacela Velha a comer ostras, paio e pizas. Somos amigos desde antes de os EUA invadirem o Iraque, antes do cerco a Sarajevo, antes de podermos votar, durante o Cavaco Silva como primeiro-ministro. E agora os filhos também já são um grupo como nós, e neste verão andam viciados a jogar ao Lobo. “A aldeia adormece…”, é a frase que mais se ouve. Que sorte ter este chão de amigos para sempre. 

Mas antes do encontro na Manta Rota para o aniversário da Joana, muitos de nós viemos a Lisboa ao funeral do Pedro, um desses amigos antigos, na realidade o mais antigo de todos, desde bebés até ao 9.º ano, e depois continuando no grupo alargado. O Pedro já não chegou a fazer 47 anos como a Joana. Morreu depois de doença verdadeiramente prolongada, mas ficamos com um pouco dele nos dois filhos incríveis e na companheira que tudo fez para aguentar um barco pesadíssimo, um petroleiro, com gestos leves e sorriso sempre pronto. O Pedro era doce e rabujento, fumador e cismante. Às vezes, a sua cabeça impenetrável escondida no boné. O Pedro era físico, passava a vida a alertar-nos sobre os riscos das corporações de um mundo securitário e de vigilância. Tinha toda a razão, mas nós gozávamos com as teorias que nada têm de conspiração. E reencontramos amigos e família na igreja onde já fomos velar pais desses mesmos amigos, porque os ciclos de vida humana são infalíveis como os das árvores lá do monte. No crematório cantamos, chorosos, a canção da guerra civil de Espanha que o Pedro escolheu para despedida. En la plaza de mi pueblo dijo el jornalero al amo / Nuestros hijos nacerán con el puño levantado. Vozes potentes e sentidas, é certo que ajudou haver membros do Coro da Achada. 

Assim é o verão, um dia a chorar um amigo, noutro a celebrar outra amiga com bolo de amêndoa e a levantar ventania no sotavento algarvio. Entre um e outro acontecimento desta família do coração, dou mergulhos e lanço-me em escorregões de água com a filha que não mostra qualquer receio dos tubos mágicos que nos levam, ligeiras e velozes, com emoções na barriga, até uma poça de água. Acampamos no Meco, apresento-lhe a Festa do Avante (fica fã), prazer das conversas, música e encontros em série, sempre igual no potente ritual de fim de verão.

 

4. Entretanto é quase dia dos mortos. Choremos os soterrados e a destruição do terramoto de Marrocos e das cheias da Líbia, as árvores ardidas pelos incêndios. Choremos as guerras domésticas, surdas em tantas casas. Choremos muito e, sobretudo, não permitamos o genocídio em curso na Palestina. É a nossa vergonha. A extinção da esperança, a falência das instituições e da invenção da paz…

A escola recomeçou e o verão prolongou-se em calor, foi o mais quente verão desde 1880. Passei anos a ir para os trópicos, na mesma altura das cegonhas, quando ainda havia alguma previsão climática. Não queria que deixasse de ser verão na minha vida. A trágica e transformadora estação ensina-me a crescer com tudo o que acontece. As parvas discussões de férias, as frustrações e os prazeres do estômago, a pele fortemente morena são o mais belo horizonte.

A minha mãe esmera-se na fisioterapia e regressa aos seus programas sociais que prolongam a vida. Eu sonho viver sem esta ampulheta do Pictionary espetada no coração em que tudo é uma check list permanente. Conto discutir e atuar em coletivo nas possibilidades de reparação de um mundo doente, macabro e surpreendente. 

Reparaste como o Outono este ano veio por outro lado, como se fosse pelo lado de dentro?, assim fecho o verão, e custa tanto deixá-lo ir, no verso de Manuel António Pina. Contem comigo.

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