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A Maravilhosa Aritmética da Igualdade (de A a Z) #2

 

Nota Introdutória.

A (cont.)

Afro-europeia/Afropeia

 

“Não poderemos continuar a significar humanidade nesta linguagem senão não nos livraremos da violência que ela carrega. Precisamos de novas palavras para expressar o que somos agora, o que queremos ser. Teremos de nos libertar. (…) Afropeia vem abrir as portas da prisão. Para que a reclusão acabe, será preciso repudiar os padrões induzidos pela ocidentalidade.”

Léonora Miano, Afropea – Utopie post-occidentale et post-raciste, Paris, Grasset, 2020, p. 44.

 

Negra, de cor, mulata, mestiça, crioula, cabrita, cabritinha, morena, moreninha, bronzeada, escurinha, café com leite, chocolate, caramelo, black, afro, escarumba, barrote queimado, preta, pretinha, não és daqui, sim, és portuguesa, mas de onde és mesmo, não levas a mal, pois não, vai para a tua terra. Estes são alguns dos qualificativos ou as frases que me são dirigidas desde que sou criança. E que me fizeram tomar consciência de que era vista como não fazendo bem parte da “família”, vista como sendo um corpo estranho naquela que eu pensava ser a minha casa, o meu país.

A primeira pessoa que me fez pensar mais profundamente sobre esta questão do uso das palavras, da auto-definição, foi o Spike Lee nos seus filmes como o Do The Right Thing e a importância da palavra african-american e da conotação sempre negativa que se dava à cor preta. Lee, numa entrevista de 1992 a Barbara Grizzuti Harrison, para a revista Esquire, declara: “Nós passámos pelos nomes – preto, afro-americano, africano, negro. Para mim, isso é uma indicação de um povo que ainda está a tentar encontrar a sua identidade. Quem determina o que é negro?”

Em Un monde en nègre et blanc[1], a historiadora Aurélia Michel explica o momento da transição em que a cor passou a ser um elemento pertinente da noção moderna de raça, um momento estreitamente ligado à história da Escravatura. Os mestiços começavam a causar problema, e era necessário haver distinções de cor para colocar todos aqueles que não fossem brancos fora da posição social privilegiada. As categorias cristão, português ou espanhol já não eram suficientes, era necessário recorrer às noções de branco e de pureza racial, excluindo assim os negros, mestiços ou índios, remetendo-os para lugares de servitude e desumanidade.

“Quem determina o que é negro?” É essa também uma das preocupações centrais da escritora franco-camaronesa Léonora Miano no seu livro Afropea – Utopie post-occidentale et post-raciste[2]. Miano convida todas as pessoas afro-europeias a escolherem para elas próprias a definição da sua própria identidade e atribui uma grande importância à questão das palavras como fonte de cristalização de violência. Para Miano “é afro-europeia uma pessoa de ascendência subsariana, nascida ou criada na Europa. (…) são antes de mais pessoas depositárias de uma vivência europeia. É na Europa que passaram os seus anos de formação, de infância e de adolescência, anos importantes para a estruturação das suas personalidades[3]”. São pessoas filhas, netas ou bisnetas de imigrantes subsarianos e explica Miano, contrariamente aos seus ascendentes, elas “só conhecem a vida em situação de minoria, existem num espaço relutante a se reconhecer nelas[4]”, um espaço também de défice estrutural de representação. Em Portugal, é assim que vivem as pessoas afrodescendentes, pouco importa terem a nacionalidade portuguesa, pouco importa terem nascido em Portugal, pouco importa o número de gerações nascidas em Portugal, são sempre de uma forma ou de outra consideradas estrangeiras porque a cor da pele define a pertença à nação. Portugal é branco. Não para os americanos que colocam os portugueses na gaveta “people of color”, ou ainda para os neonazis nórdicos que se riem com os nossos neonazis nacionais que se julgam brancos, enquanto para eles estes parecem árabes. Apesar de uma longa história de presença árabo-mulçumana, apesar da mistura e da presença de negros em Portugal[5] fazendo até com que Lisboa fosse a cidade mais africana da Europa segundo o etnólogo Jean-Yves Loude[6], que faz dos portugueses um povo altamente mestiço, uma grande parte dos portugueses vê-se como branca e todas as pessoas que não entrem no padrão da cor idealizada são estrangeiras, são exóticas, são estranhas, são uma anomalia.

Mas a presença de pessoas de origem africana não se restringiu a Portugal; na Europa, desde a Antiguidade, essa presença é importante, explica a historiadora franco-camaronesa Olivette Otele na sua obra African Europeans: an untold history[7]. A sua História é, segundo Otele, “de uma grande riqueza, de uma grande complexidade, mas também de uma grande brutalidade, e as experiências que a constituem variam consideravelmente em função do território e de uma época para outra. (…) Encontram-se traços de vida dos Afro-europeus na arquitetura local, assim como nas produções visuais, literárias e outras criações culturais nacionais e internacionais.[8]

Hoje, as pessoas nascidas e/ou criadas em Portugal designam-se em geral como negras ou afrodescendentes e se o contexto for de confronto com o racismo utiliza-se também o termo de pessoa racializada. O termo “preto” é visto como extremamente racista e violento, pois foi esse o insulto mais usual desde a infância. Encontramos uma maior tolerância com o termo ou mesmo a sua utilização em pessoas nascidas e/ou criadas no Brasil ou em países africanos. Nesta como em várias outras matérias, as pessoas negras não formam um grupo monolítico e homogéneo. A vivência das pessoas negras vai sempre oscilar entre a identidade individual, coletiva, a ressentida, e a percecionada. E ao mesmo tempo, existe a necessidade de uma certa força agregadora, de encontrar o que há de comum, para maior eficácia na luta contra o racismo. O racista não estabelece muitas vezes a diferença entre nacionalidades, origens, passaportes, maior ou menor nível de melanina, é tudo “preto”, deve voltar tudo para a sua terra, etc.

A experiência das pessoas negras em territórios onde são consideradas minoria é complexa e muitas vezes extenuante, passa pelo que W. E. Du Bois chamava de dupla consciência: “É uma sensação peculiar, esta dupla consciência, esta sensação de olhar sempre para si mesmo através dos olhos dos outros, de medir a própria alma pela fita métrica de um mundo que para si olha com divertido desprezo e pena. Alguém que sente sempre a sua dualidade – um americano, um negro; duas almas, dois pensamentos, dois esforços irreconciliáveis; dois ideais conflitantes num corpo escuro, cuja força obstinada por si só o impede de ser dilacerado[9]”.

O termo Afro-europeu é mais uma dessas tentativas de não se ser dilacerado. Em Portugal, não é ainda muito utilizado, mas é sem dúvida uma via suplementar para denominar realidades complexas e subtis. Um esforço para tentar encontrar sentido e coerência na multiplicidade. Não se trata aqui de se concentrar sobre a cor ou a nacionalidade; como explica Miano, dizer Afro-europeu não é a mesma coisa que dizer afro-francês ou senegalo-francês[10]. É uma forma mais ambiciosa de alargar a representação da sua identidade, nomeadamente em sociedades onde existe uma mobilidade física ou virtual cada vez maior.

O termo Afropea foi criado pelo músico, co-fundador do grupo Talking Heads, David Byrne nos anos 90 para, escreve Miano, “designar um continente ficcional, que permite explorar, através da música, a influência das culturas africanas sobre a sensibilidade europeia[11]”. Entretanto, os europeus de ascendência subsariana apropriaram-se do vocábulo para fazer viver o termo Afropeu, contração de Afro-europeu. Em 1991, o grupo de música belga Zap Mama constituído por Marie Daulne e a sua irmã Anita apresentam-se como Afropeias no álbum Adventures in Afropea vol. 1. O fotógrafo Johny Pitts conta a criação do termo de forma diferente, diz que David Byrne criou a palavra em conjunto com Marie Daulne[12]. Os dois trabalharam juntos, tendo sido David Byrne que editou o álbum das Zap Mama nos Estados Unidos. Em 1995, o grupo inglês de rap Cash Crew editou o álbum From an Afropean Perspective, e em França, Hélène e Célia Faussart do grupo Les Nubians apresentam-se também como Afropeias, seguindo-se outros artistas como DjeuhDjoah & Lieutenant Nicholson ou Baloji. Outras formas de arte vão também reapropriar-se do termo, explica Léonora Miano, como em França na esfera do teatro e o exemplo da peça Afropéennes de Eva Doumbia. A dramaturga é também a fundadora do festival Massilia Afropea dedicado às criações e artes de vida afropeias. Ou ainda na Áustria o festival Afropea now e na Bélgica a peça Afropean/Human Being. É ainda de assinalar o colóquio universitário Afroeuropeans Conference criado em 2006, que tem lugar de dois em dois anos e junta investigadores e artistas de vários países europeus. E ainda a plataforma Afropea criada por Marie-Julie Chalu ou o trabalho do fotógrafo Johny Pitts partilhado no jornal multimédia Afropean – Adventures in Black Europe.

Pitts defende a importância da transformação do Afro-europeu em Afropeu sem hífen, para marcar a ideia da unidade na diversidade das pessoas afropeias. Esta unidade tem lugar numa espécie de “geografia psíquica[13]”, é um estado de espírito, uma maneira de se relacionar através do comum. E o comum são populações minoritárias, pobres, muitas vezes atiradas para a periferia, que sofrem de racismo estrutural e quotidiano, a quem é negada uma História porque o passado esclavagista e colonial de muitos países europeus é edulcorado, invisibilizado. São também vítimas de teorias de “cegueira cromática” em que a posição que se pensa não racista do “eu não vejo cores” é na verdade uma posição que invisibiliza as vivências das pessoas negras.

Apesar de o termo Afro-europeu “não poder cobrir ou designar todos os aspetos da experiência dos negros e afrodescendentes[14]”, como defende Olivette Otele, assim como o termo Afropeu, eles exprimem apesar de tudo uma experiência comum real e que carrega em si uma legítima demanda histórica e política. Em muitos aspetos um afro-luso pode identificar-se com um afro-francês ou dinamarquês, mas também com um afro-americano. A experiência afro-europeia anda muitas vezes de mão dada com uma perspetiva pan-africana.

Para os que sonham ainda com um Portugal ou uma Europa brancos, os afro-europeus estão aqui para lhes lembrar que essa ideia releva da pura fantasia, vai ser necessário aceitar de uma vez por todas este “destino crioulo inevitável[15]” como defende Paul Gilroy. É aqui a nossa casa, a nossa terra. Quantos séculos serão ainda necessários para que os afro-europeus sejam enfim considerados como pertencentes a este território e não como eternos migrantes ou eternos estrangeiros?

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[1] Aurélia Michel, Un monde en nègre et blanc – Enquête historique sur l’ordre racial, Paris, Éditions du Seuil,

2020.

[2] Léonora Miano, Afropea – Utopie post-occidentale et post-raciste, Paris, Grasset, 2020.

[3] Ibid., p.10.

[4] Ibid.

[5] Cf. Jean-Yves Loude, Lisbonne dans la ville noire, Paris, Actes Sud, 2003; José Ramos Tinhorão, Os Negros em Portugal Uma Presença Silenciosa, Lisboa, Caminho, 1988; Anne Marie Pascal, Le personnage du noir dans le theatre portugais du dix-huitieme siecle, tese de doutoramento, Universidade Paris-Sorbonne, 1991; Isabel Castro Henriques, A presença africana em Portugal, uma história secular: preconceito, integração, reconhecimento (séculos XV-XX), Lisboa, ACM, 2019.

[6] https://www.buala.org/pt/cara-a-cara/o-contributo-africano-entrevista-a-jean-yves-loude

[7] Olivette Otele, African Europeans: an untold history, Hurst & Company, 2020; Une histoire des noirs d’Europe de l’Antiquité à nos jours (trad. Guillaume Cingal), Paris, Albin Michel, 2022.

[8] Olivette Otele, Une histoire des noirs d’Europe de l’Antiquité à nos jours (trad. Guillaume Cingal), Paris, Albin Michel, 2022, p. 251.

[9] Du Bois, W. E. B., The Souls of Black Folk, Chicago, A. C. McClurg & Co., 1903.

[10] Léonora Miano, op. cit., p. 48.

[11] Léonora Miano, op. cit., p. 47.

[12] Vous avez dit “Afropéen” ?, Johny Pitts et la revue The Eyes, RFI, 21 de novembro de 2021.

[13] Johny Pitts, Afropean: Notes from Black Europe, Allen Lane, 2019.

[14] Olivette Otele, op. cit., pp.-. 251-252.

[15] Paul Gilroy, Mélancolie Post-coloniale, trad. Marc Saint-Exupéry, Paris, Éditions B42, 2020, p. 5.

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