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Androcentrismo
“Todos os psicólogos que estudaram a inteligência das mulheres reconhecem que elas representam as formas mais inferiores da evolução humana e estão mais próximas das crianças e dos selvagens do que do homem civilizado. Elas têm a inconstância, a falta de reflexão, a incapacidade para raciocinar. Nas raças mais inteligentes, como os parisienses, existe uma proporção notável da população feminina cujos crânios se aproximam mais pelo seu volume dos gorilas que dos crânios do sexo masculino.”
Gustave Le Bon, Relatório da Academia das Ciências de Paris, 1879.
O androcentrismo é a forma como gira o nosso mundo. O nosso mundo real e imaginário. Andro em grego significa “homem”. O androcentrismo é o homem no centro, mas também o homem acima. Deus é homem. Os profetas são homens. Adão é homem, a Eva, mulher, não é mais do que um fragmento do macho ou um macho imperfeito ou mutilado como dizia Aristóteles[1]. Séculos de androcentrismo: líderes religiosos, políticos, intelectuais, filósofos, produtores de conhecimento, artistas, engenheiros, arquitetos, proprietários, multimilionários, imperadores, reis, donos, senhores, chefes, patrões, diretores, foram e ainda são, na sua esmagadora maioria, homens. Dizia o Protágoras que o Homem é a medida de todas as coisas. Se Protágoras tinha como pretensão falar da espécie humana, a verdade é que é o homem que tem sido a medida de todas as coisas. Mas nem todos os homens respondem a todos os critérios do que é ser “homem”. Se voltarmos à longa lista mais acima, estamos sobretudo a falar da figura do tal homem cis, hétero, branco, burguês, sem deficiência, e mesmo quando este não era certamente branco como no caso de figuras importantes, do ponto de vista histórico, como Jesus, existe uma propensão para os branquear. Basta olhar para grandes organizações internacionais como o G7 ou a lista das maiores fortunas mundiais, ou ainda prémios prestigiosos em vários domínios como os Prémios Nobel para constatar que a lista é maioritariamente masculina, ou ainda ver a quem se dá em maioria a palavra na comunicação social, quem tem o privilégio de comentar a atualidade, ou é entrevistado. Eis em Portugal, um exemplo, entre tantos outros: na temporada 16 (2023) da Grande Entrevista da RTP, desde o início deste ano, em 21 episódios Vítor Gonçalves entrevistou 19 homens e somente 4 mulheres. Na temporada 15 (2022), foram 49 episódios, 40 com homens, 9 com mulheres.
O androcentrismo faz, assim, de todas, todes e todos nós, especialistas dessa figura hegemónica. No debate atual, sobre quem pode escrever sobre quem, a verdade é que temos um conhecimento consideravelmente mais vasto do pensamento e das vivências dos homens brancos cis-het burgueses do que todas as outras categorias da população.
No entanto, as mulheres não foram e não são um detalhe na História, nem são figurantes como explica a jornalista e ensaísta francesa Titiou Lecoq no seu livro[2] sobre as grandes esquecidas, onde demonstra como as mulheres foram apagadas, desde a Pré-história até aos nossos dias. Colocando em causa a perspetiva contemporânea que considera a História como um processo de constante caminho natural para a Igualdade, em que as mulheres foram passando da condição de servidão total até a uma atual libertação completa. Ora, Titiou Lecoq denuncia esta perspetiva como uma contrafação defendendo que “as mulheres já governaram, já falaram, dirigiram, criaram”, que “na Pré-história as mulheres caçavam, que na Idade Média as mulheres construíam catedrais ou ainda que eram espiãs durante a guerra ou jornalistas no século XIX”. Sabemos que mulheres foram decisivas em várias descobertas científicas, ou que enquanto artistas se escondiam por detrás de pseudónimos masculinos, e que viram, como ainda hoje, o seu trabalho invisibilizado ou usurpado. A passividade das mulheres é, portanto, um mito. Apesar dos obstáculos, foram sempre resistentes e não uns seres passivos sem grande impacto na História da Humanidade. O que o trabalho de investigação de Titiou Lecoq coloca ainda em evidência é também o facto de que direitos conquistados podem ser aniquilados, que não podemos nunca baixar os braços pensando que o progresso é um processo natural, linear e inexorável sem obstáculos e retrocessos.
O androcentrismo está também presente na linguagem, a palavra homem ainda serve para designar a espécie, a pessoa humana, todos os géneros, e em várias línguas o neutro masculino também. Em português ou em francês, por exemplo, se necessitarmos de designar um grupo de cinquenta mulheres e um homem, o grupo será designado pelo masculino. As profissões ou os cargos mais prestigiosos em línguas como a francesa são muitas vezes masculinizadas invisibilizando assim as mulheres. No que diz respeito à língua francesa, a masculinização de palavras ou profissões, ou do masculino como neutro não foi sempre assim. Até ao século XVII as profissões escritas no feminino eram normais, mas, entretanto, encetou-se um processo de centralidade do masculino e de considerar o masculino como neutro e prioritário, através da regra “é o género mais nobre que prevalece”. Claude Favre de Vaugelas, gramático e lexicógrafo, um dos primeiros membros da Academia Francesa, justificava desta forma a regra “O género masculino, sendo o mais nobre, deve predominar de cada vez que o masculino e o feminino se encontrem juntos.[3]” Em português, mesmo quando as palavras existem no dicionário, como por exemplo a palavra Presidenta, a sua utilização é alvo de críticas acesas, como também já tinha havido críticas quando Maria de Lurdes Pintasilgo era apresentada como primeira-ministra[4]. A língua é muitas vezes palco de guerras ideológicas, regularmente mascaradas de exigências linguísticas puramente técnicas e desinteressadas, quando o verdadeiro objetivo é a manutenção de um status quo discriminatório que preserva privilégios e dinâmicas de poder.
O androcentrismo está também presente na esfera da sexualidade, o homem aparece como ativo e a mulher como passiva a vários níveis e nomeadamente em questões de reprodução. Os espermatozoides são descritos como ativos, encetando uma corrida para ver qual é o melhor enquanto o ovócito fica à espera do valente que o vai fecundar. A este propósito, a filósofa investigadora Marie Kill explica na conferência “O androcentrismo nas ciências”[5] como o androcentrismo e o campo lexical da fertilização, que atribui passividade ao feminino, influenciou a investigação. A atividade do ovócito não foi sequer estudada, de tal forma os estereótipos androcêntricos eram naturais e inquestionados. Ora, a partir do momento em que a investigação mudou de paradigma chegou-se à conclusão de que o papel dos espermatozoides era bastante menos ativo do que aquilo que se pensava, e que o ovócito tinha uma função ativa na captura do espermatozoide. Entretanto, várias feministas desde filósofas até a sexólogas defenderam uma mudança da linguagem, das metáforas utilizadas, dando um lugar mais importante à mulher através de expressões como o empoderamento vaginal ou ainda de cerco da vagina ao pénis contrariando a ideia de ação única da penetração. Ainda hoje, tendo sido o “homem a medida de todas as coisas”, nas ciências médicas encontramos posologias de medicamentos ou de tratamentos erradas, não adaptadas aos corpos das mulheres, ou ainda os sintomas de certas patologias, tais como os de uma crise cardíaca, levando a dificuldades ou atrasos de diagnóstico.
Em questões de orientação sexual, o androcentrismo também está presente de várias formas sendo, por exemplo, um dos fatores de bifobia. Na comunidade bissexual conhecemos bem a problemática do homem bissexual que é visto como um gay não assumido, que finge gostar de mulheres, e da mulher bissexual que é vista como uma mulher heterossexual que só tem curiosidade ou quer brincar com mulheres, por vezes, até só para agradar o olhar masculino heterossexual. O denominador comum aqui é que uma mulher ou um homem bissexual só pode gostar de homens, e só o seu interesse pelos homens, e não por outros géneros, é levado a sério.
Na expressão de género, uma mulher que se apresente como “masculina” é menos discriminada do que um homem que se apresente como “feminino”. Uma mulher de calças ou gravata não será discriminada da mesma forma que um homem que apareça em público com um vestido ou uma saia. Lembremo-nos aqui do caricato escândalo mediático quando o assessor da então deputada Joacine Katar Moreira, Rafael Esteves Martins, “ousou” aparecer com uma saia longa na Assembleia da República. O mesmo acontece se pensarmos na questão da identidade de género. Existem diferenças a vários níveis entre a discriminação contra os homens trans e as mulheres trans, até ao nível da violência extrema como a taxa de assassinatos destas últimas. Existe também uma discriminação diferenciada entre uma pessoa não binária que foi identificada como mulher à nascença ou como homem.
O androcentrismo teve durantes séculos e tem ainda consequências em variadíssimos domínios, como a liberdade para abrir uma conta no banco ou ter autorização para viajar, o acesso à educação, à saúde, à propriedade, a cargos diretivos, a direitos cívicos, como o de poder votar, a igualdade salarial, a liberdade e segurança no espaço público, a violência de género, a regulamentação do corpo, da reprodução, do vestuário. Continuamos a ver o androcentrismo em ação desde os espaços de recreio na escola que dão primazia às atividades dos rapazes[6] até à himpathy[7] ou elepatia que consiste na tendência generalizada em ter empatia excessiva para com um homem perpetrador de violência sexual, ao ponto de fazer dele uma vítima, sobretudo se faz parte de uma classe social superior, tem notoriedade, etc.
Machismo, misoginia, patriarcado, cultura da propriedade, cultura da violação e tantos outros mecanismos de dominação estão intimamente ligados ao androcentrismo, são facetas de um sistema de opressão e de poder que se autoalimentam, preservam e reforçam, fazendo assim parte da nefasta aritmética da desigualdade.
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[1] Aristóteles, Da geração dos animais, 384 – 322 a. C.
[2] Titiou Lecoq, Les grandes oubliées – Pourquoi l’Histoire a effacé les femmes, Paris, Iconoclaste, 2021.
[3] Claude Favre de Vaugelas, Remarques sur la langue française, 1647.
[4] Cf. Carla Martins, Mulheres, Liderança, Política e Media, Alêtheia Editores, 2015.
[5] https://egalite-diversite.univ-lyon1.fr/2022/12/24/fete-de-la-science-2022-les-sciences-ont-elles-un-genre/
[6] http://geoconfluences.ens-lyon.fr/informations-scientifiques/dossiers-thematiques/geographie-espaces-scolaires/geographie-de-l-ecole/cour-recreation-genre
[7] Termo criado pelo marido da filósofa feminista Kate Manne e desenvolvido por esta no livro Down Girl – The Logic of Misogyny, 2018.