Sociedade4b

A Maravilhosa Aritmética da Igualdade (de A a Z)

Nota Introdutória

Foi ao título de um livro da mulher que se definia como “negra, lésbica, mãe, guerreira, poeta[1]” que fui emprestar o nome deste nosso encontro aqui na Almanaque, substituindo simplesmente a palavra Distância por Igualdade. Audre Lorde dedicou a sua vida ao combate às injustiças racistas, sexistas, classistas e LGBTfóbicas. A sua luta por convicção e por condição foi emblemática do que chamamos hoje a Interseccionalidade, uma justaposição ou um cruzamento de vários tipos de exclusão e de discriminação. Partilho com a Audre Lorde muitas das suas lutas igualmente por convicção e condição. O que aqui pretendo trazer é um apanhado do vocabulário, temas, e figuras que me parecem relevantes para abordar estas questões, sob a forma de um pequeno dicionário não-exaustivo e assumidamente subjetivo. Faltará sempre alguém ou qualquer coisa. A Aritmética da Igualdade pode ser Maravilhosa, mas não é perfeita, nem aqui nem na vida. A imperfeição não pode, no entanto, ser desculpa para a inação. Audre Lorde disse ter escolhido a palavra aritmética por esta tratar das funções básicas através das quais se combinam os números[2].  Ora, a luta pela Igualdade é um combate contra a divisão hierárquica de pessoas, contra a subtração de direitos e identidades, contra a adição de opressões, mas pela multiplicação de esforços, de vontades, de respeito, de escuta, para que possamos enfim alcançar a Justiça, porque não há Igualdade sem desconforto.

 

A

ABORTO

 

“E, como de costume, era impossível determinar se o aborto era proibido porque era mau, ou se era mau porque era proibido. Julgava-se de acordo com a lei; não se julgava a lei.”

 

Annie Ernaux, O acontecimento, 2000.

 

Quando era pequena não se falava em aborto ou de interrupção voluntária de gravidez, dizia-se fazer um “desmancho”. A palavra aborto “era uma coisa que não tinha lugar na linguagem”, como escrevia Annie Ernaux, a mais recente Prémio Nobel da Literatura,  em O acontecimento,  tal como não se dizia a palavra cancro, dizia-se “uma doença má”. Eu não compreendia. Então uma doença não é sempre má? Falava-se também em agulhas de tricot. Na minha cabeça de criança ficou a imagem do aborto como a de “destricotar” algo. As mulheres mais velhas falavam disso com mais naturalidade, lembro-me de uma senhora idosa da minha rua do Bairro da Serafina que me disse um dia ter feito na vida vinte desmanchos. Não sei se foi verdade ou não. Infelizmente já cá não está para o confirmar. Ela era muito pequenina, e eu imaginava que tinha sido por causa disso. Quem fazia desmanchos não crescia. Depois também havia as histórias das mulheres que tinham morrido ou de crianças que tinham nascido com “problemas” porque o desmancho tinha falhado. E também se falava de “perder o bebé” em vez de aborto espontâneo. Não entendia como se podia perder o bebé, visto ele não andar e não poder fugir. Na altura, nós as miúdas tínhamos um medo terrível de engravidar. E se apanhamos uma gravidez no autocarro, na sanita ou na banheira? Antes das aulas de educação sexual, ou melhor, de apresentação dos órgãos reprodutivos na escola, tínhamos a revista Maria e a sua secção de perguntas. Se a minha memória não me deixa mentir, lembro-me de uma dessas questões sobre a possibilidade de engravidar se tomássemos banho depois de um rapaz. Entretanto, cresci e não compreendia porque é que uma prática feita por tantas mulheres (por todas as mulheres adultas que eu conhecia na altura) era ilegal. Foi com grande expetativa que esperei pelos resultados do referendo de 1998. Não tinha chegado a tempo para me evitar a mim, a amigas minhas e a tantas, tantas outras mulheres o enorme stress, medo e vergonha que era o aborto ilegal, mas havia a esperança de que as novas gerações nunca passariam pelo mesmo. Na altura, ganhou o NÃO por 51%, chorei. Já eu estava a viver em França, um país onde a IVG é legal desde 1975, ainda nem eu era nascida, quando Portugal aprovou a lei da IVG, em 2007, . Fiquei aliviada, mas pareceu-me conquista tão tardia que a alegria se misturou com o amargor. Tanto tempo perdido, tantas vidas de mulheres marcadas e perdidas pelo caminho. Vivemos anos em que parecia que o caminho para a Liberdade e Justiça parecia inexorável. Em 2022, os Estados Unidos da América, a autodesignada maior democracia do mundo, através do seu Supremo Tribunal, recuou meio século. Subtraiu anos de progresso, subtraiu direitos às Mulheres, dividiu o país em dois, entre os Estados conservadores e os Estados progressistas. Estes retrocessos estão presentes noutros países e prometem não ficar por aqui; depois do ataque aos  Direitos das Mulheres, será a vez dos  Direitos das pessoas LGBTI+ e das pessoas racializadas e por aí adiante. O retrocesso em relação à IVG é emblemático da Interseccionalidade, pois as mulheres que irão ser as mais prejudicadas são as mulheres pobres e racializadas.

 

AFROFEMINISMO

 

“Eu tenho sido uma mulher/durante muito tempo/cuidado com o meu sorriso/Eu sou dissimulada com a magia velha/e a fúria nova do meio-dia/prometida a todos os vossos vastos futuros / Eu sou uma mulher/e não branca”

Audre Lorde, Uma mulher fala, 1984.

 

O Afrofeminismo ou Feminismo negro constitui uma área singular do Feminismo. Este último é muitas vezes pensado de forma demasiado neutra, sem levar em conta a realidade das discriminações cruzadas. Uma mulher branca de classe alta não enfrenta as mesmas problemáticas que uma mulher negra pobre. Ambas são vítimas do sexismo e machismo, mas existem diferenças históricas (ex. Escravatura e Colonialismo), sociais ou culturais que precisam de ser levadas em conta. O que aqui está em causa é não somente a situação das mulheres negras, mas também do seu contributo muitas vezes invisibilizado para a luta feminista e até para a luta pelos Direitos Humanos no seu todo. Um dos múltiplos exemplos é o de Sojourner Truth, à qual dedicarei um artigo mais detalhado ulteriormente, uma mulher afro-americana nascida em situação de escravatura e que se tornou numa das maiores abolicionistas e ativistas pelos direitos da mulher. Num dos seus discursos em que denuncia a diferença de tratamento dos homens brancos em relação às mulheres brancas e negras, pergunta: “E eu não sou uma mulher? Olhem para mim!”  Truth influenciará o trabalho de diversas escritoras e ativistas como bell hooks em E eu não sou uma mulher?: Mulheres negras e Feminismo (1981) ou ainda Angela Davis na sua obra Mulheres, raça e classe (1981). Apesar de progressos e da luta destas mulheres negras nos Estados-Unidos da América, no Brasil e em vários outros países como Portugal, penso, por exemplo, no trabalho do INMUNE (Instituto da Mulher Negra) e de pessoas como a historiadora e ex-deputada Joacine Katar Moreira ou a psicóloga Shenia Karlsson, ainda estamos longe de uma real consciência da importância da Interseccionalidade e especificidade das experiências de exclusão e discriminação. Há muito poucos anos, fui a desolada testemunha desta incapacidade de diálogo por parte de mulheres brancas de uma associação feminista, que com toda a sua boa vontade decidiram dar a voz a mulheres negras numa sessão pública, tendo também convidado uma oradora branca a quem deram a primazia da palavra, decidindo depois  “mandar vir” com as mulheres negras por estas não se juntarem a elas nas manifestações e ainda, após um testemunho emocionado de uma oradora negra da sua experiência de racismo, comentar com um “ah, mas isso também me podia ter acontecido”, desvalorizando a experiência que acabara de ser contada com muito custo pessoal. Rapidamente, a sessão tornou-se num momento coletivo de incompreensão e tensão consternador, metendo a nu o tal caminho que ainda resta a percorrer.

Como defende a filósofa Djamila Ribeiro no artigo Feminismo negro: para além de um discurso identitário (Revista Cult, 2017), a voz das mulheres afrofeministas permite , “pensar um novo modelo de sociedade” pois estas mulheres negras “não estão pensando somente nas opressões que as afligem”, as suas lutas transcendem “o discurso de uma luta meramente identitária”. A acusação de “identitarismo” vinda de sectores mais ou menos progressistas, de direita como de esquerda, é uma constante quando se tenta expor a Interseccionalidade e a especificidade das discriminações. É uma forma recorrente de descredibilização e de redução voluntária de uma reflexão e de um combate que pretende pelo contrário evidenciar o particular para revolucionar o geral.

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[1] https://www.nytimes.com/2020/09/15/books/review-audre-lorde-selected-works.html

[2] Audre Lorde in Berlin – On book “Marvelous Arithmetics Of Distance” https://www.youtube.com/watch?v=4POg-F616Nc&ab_channel=AudreLordeinBerlin

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