1. “Sete e Meio”, assim ficou conhecido o apartamento na Maianga, em Luanda onde, entre 2005 e 2007, morei com artistas angolanos, Orlando, Kiluanji, Ihosvanny, Yonamine, Francisca e o bebé Njamy, os mais perenes, outros em temporadas de média duração[1]. Ficava num sétimo andar (e meio), num prédio de arquitetura moderna, semelhante aos edifícios da Avenida Estados Unidos da América, em Lisboa, mas degradado pela passagem do tempo e negligente manutenção. Bem localizado, dali podíamos rapidamente fugir para o aeroporto ou caminhar até à Mutamba ou Cidade Alta, os dois pólos da primeira Trienal de Luanda onde trabalhámos (antes de me aventurar nas áreas da comunicação, educação e uma breve experiência falhada no sector dos transportes/cerveja).
A partilha de casa entre amigos, não muito comum em Angola, chamava a atenção. A fama do Sete e Meio foi-se suturando pelo ambiente animado, informalidade e mistura de gentes, jantaradas e all tomorrow’s parties. Era ponto de encontro e poiso para quem já não estava em condições de regressar à sua própria casa; albergue de conspirações, mujimbos, tensões de relacionamentos, experiências performativas, gastronómicas, acesos debates e vivências extremas. A adrenalina de uma Luanda pós-guerra civil parecia concentrar-se ali.
Mais tarde, Sete e Meio deu nome a um bar na baixa de Luanda e, além de imortalizado nos nossos corações e como lenda urbana, aparece num capítulo do romance As mulheres de meu pai, de Agualusa, sendo ainda referido no livro Os brancos também sabem dançar, de Kalaf Epalanga.
2. Beatas, repelente, latas de cerveja, velas gastas, uma harmónica, betadine e livros rasgados. Uma cueca triste. Crimes passados no parapeito da comprida e espaçosa varanda da Maianga. A grade verticalmente regular tem uma pequena abertura quadrada onde cabe, à risca, uma cabeça. Apenas uma, para espreitar e farejar a cidade oferecendo-lhe, à cabeça, uma invisível guilhotina (o que por vezes apetece). Dentro das grades, uma das heranças da guerra em todas as casas de Luanda, naquele calor pastoso e cheiro de roupa acabada de estender, já acumulando poeira, chupa-se cigarros e outros fumos, comenta-se filmes projetados na parede. De súbito, o volume das vozes vai subindo. As discussões adensam-se. O blasé alfacinha justapõe-se ao mangolê, baiano, tripeiro e estrangeiro. Todos em mal-entendido. Concordar para discordar, discordar para insultar, expeditos em especulações sobre o fim do capitalismo, o império chinês e as estratégias comerciais, a circuncisão nas Lundas ou a nova galeria de arte contemporânea. As constantemente adiadas eleições. Muitas teorias e projeções. A política internacional, as fortunas da família dos Santos e dos generais. Uma interminável conversa sobre Angola percorre a casa. A promessa das províncias, havemos de partir por essas estradas, conhecer o país tantos anos vedado. As potências mundiais e zonas de influência, no xadrez do terreno players velhos e novos sempre a chegar: portugueses, sul-africanos, americanos, cubanos e soviéticos, brasileiros, franceses, sauditas e chineses. Ruminar, ruminar, ruminar, uma narrativa que ainda não passou do estômago. As cicatrizes da violência, tanto a executada de fora para dentro à videogame, como a mais difícil, fratricida, têm de sarar rápido. Não há tempo para dores e lamentos, o futuro é hoje.
Ao fundo, o Hospital Militar, contíguo à Praça da Revolução. Inacabada oferenda dos russos a Angola, lança afiada celebrando corpos de líderes imortais. De quantos heróis precisa um país? O reservatório de água da zona presidencial insulta quem a não tem correndo pela torneira. É que, convenhamos, o banho de canequinha só é sexy nos filmes de luz baixa. A tarde laranja quente desmaia e, no feltro noturno, desponta a cidade-fantasma.
3. Neste andar onde planamos, junto do céu e em frente ao banco, os ruídos irrompem cedo. Descubro um talento acústico para diferenciar pormenores urbanos: candongueiros e suspiros, persistente voz do cobrador “Mutamba Mutamba, Aeroporto Aeroporto”, apito de polícia, choque frontal de carro, alguidares a pousar no chão, água fétida contaminando sandálias. Por vezes vibra — vinda de lugar não identificado — uma música suave que contrasta com a brusquidão da rua. Se me concentrar, posso ouvir sonatas e cantatas, allegros ma non troppo. Afasto o corpo quente ao meu lado na cama e assomo à varanda para conferir se as gruas, guindastes e estaleiros se reproduziram durante a noite, engolindo mais um musseque do centro. Ninguém quer barracas à vista, os desalojamentos à força sucedem-se e a cidade reconstrói-se fazendo sumir pedaços da sua história. A Mota Engil, Soares da Costa, Teixeira Duarte, Odebrecht e empresas chinesas difíceis de pronunciar são as formigas-rainha, agarrados ao cimento que forra os bolsos, enquanto tantos outros, lá em baixo, partilham a marmita do segurança. Condomínios fechados e de fachada, “novas centralidades”, bairros plantados longe e sem serviços, vão surgindo. Mas os milhões de habitantes dos musseques, ou “bairros informais”, como dizem os cientistas sociais, sem saneamento e com vida amargadas, multiplicam-se em torno deste pedaço de cidade asfaltado. Tal como noutros tempos, a geografia segregada não dá tréguas, por mais tema de teses e análise aprofundada.
Luanda, um estado de urgência, escrevi noutro lado. Paz consolidada, espírito de reconstrução, muitos modos de vida, um modelo de nação. Parece uma letra de rap. Angola é um antídoto para economias gastas. Investidores põem a paisagem a render onde outros (ou os mesmos), antes, engatilhavam armas. Os recursos, ou seja, o petróleo, não traem cifrões, asseguram lucro aos poderosos e a uns quantos recém-chegados tubarões (o tubarão, vítima de injustiças metáforas). Prestes a sair, o álbum Ex-Combatentes, de Paulo Flores, revisita a dor com altivez, chorada no ombro do parceiro da “passada”. Luanda não é apenas um business center, nem os petrodólares são a única linguagem. Apesar do desamparo e tumor nocivo que sufoca tantos angolanos, amamos a cidade na sua turbulência. E há focos de resistência ao estado predador. Os calorosos kambas, os gestos hospitaleiros, as famílias, a língua solta, um mergulho na Ilha, a criatividade e reação, dinâmicas de sobrevivência e ter tanto para se dizer ao mundo.
Eu vivo em espanto constante com as histórias de vida. Aprendo a aguentar as doses massivas de exaltação, entusiasmo e frustração que cada dia carrega.
4. A casa faz-se de gente que a cuida, lhe dá vida, a enche de vícios, preguiças, lágrimas doridas e riso desprendido. Faz-se dos papéis de cada um, o mais inquieto, o provocador, a postura paxá e a de quem resolve os problemas de todos. A casa faz-se de sono e insónias, sobretudo as minhas. De ataques ao frigorífico e crises a meio da noite. Há quem durma sozinho e não se queixe, há quem durma na varanda e não se queixe, os conflitos dos outros são apenas um rumor que não chega a ferir nem impede de dormir. A casa faz-se de amores, sexo, extravagâncias, relações que sucumbem momentaneamente a uma palavra do avesso. Faz-se de ansiedades e reclamações. Uma delas, o salário que não pinga. Outra, o visto de trabalho que não sai. Mas isso são ninharias ao pé dos problemas que a cidade vive. A casa faz-se de ritmos: de manhã fila para a casa de banho, rapazes perambulam sem t-shirt à espera de que o dia se organize por si, há quem vá trabalhar, ou quem fique apenas a fumar. A empregada finge ar normalizado, mas acumula para a fofoca. Manda aquele olhar «xé, a vida destes wis com duas pulas e um bebé!».
A banda sonora do Sete e Meio podia ser o Aquarius, do brasileiro Seu Jorge ou o dvd de reggae/ dub tantas vezes tocado até que alguém diz:
— Já não posso ouvir esta merda!
Ou então Gil, Elis, Tom Zé, Chico Science, Fela Kuti, Manu Dibango ou angolanos como Proletário, MCK, Matias Damásio, Vum Vum.
E alguém grita:
— Põe antes os Stones!
5. Nas arcadas do prédio, um segurança de arma torta adormece com fraqueza, turnos pesados e a guerra às costas. Inicio a interminável subida das escadas em penumbra, extensão da vida privada, onde em cada patamar acontecem coisas, dia e noite: o aroma do sabão atenua o calor e o cheiro a fritos, mães trançam cabelo às filhas, galinhas são decapitadas para churrasco, adolescentes flagrados em carícias íntimas, gangsta rap e troca de impressões sobre o gang do bairro, reunião de vizinhos. Os maridos saem cedo e voltam cansados e a más horas, provenientes dos copos ou das amantes. As mulheres trabalham, sempre em excesso, gerindo um universo de cuidados e de ralações. A caixa do elevador, que fora depósito do lixo, serve de cubículode alguém.
É-me familiar o microcosmo de vivências e agitação em espaço vertical. Cresci num prédio em Carnide com muitos apartamentos (cada andar ia da letra A à G). No prédio da Maianga, como aliás um pouco por todo o país, a luz falta tantas vezes que, depois de quase pirar, os nossos nervos acabam por se habituar e parece luxo quando a eletricidade regressa, já não é preciso beber rápido a cerveja e consegue-se dormir sem lutar contra os mosquitos palúdicos (quando não há luz não há AC). Depois de tantas mudanças de fase no quadro, com o jeitinho de amigos pseudoeletricistas, o sistema elétrico do tempo colonial não deu conta do recado e um dia… Éué!!! Fogo no prédio, dois meses sem luz. Passámos a contribuir para o som de fundo dos geradores e a subir sete andares (e meio) com bidões de gasóleo.
Tanta logística, meu deus, para ligar o computador.
6. Da varanda recolho à sala de jantar. «Into my arms» de Nick Cave envolve a tarde de domingo. Porta da casa semiaberta, crianças irrompem no apartamento a meio de uma brincadeira nas escadas. A parede da sala está repleta de fotografias de vários rostos com a particularidade de todos usarem os mesmos óculos escuros. Reparo nos despojos festivos de véspera: cachaça, cerveja, farrapos de liamba. Uma imensa panela de feijoada, na qual investimos milhares de kwanzas e mão de obra qualificada, azedou durante a noite (nem sempre há sobriedade para lembrar a função de um frigorífico…). Alguém trouxe um enorme relógio da rua, de alguma loja antiga, para pousar uma televisão. Na mesa de jantar de madeira corrida, entre dezenas de beatas e pratos com restos de comida, consigo ouvir o riso muito sonoro de ontem. Rir e dançar, infalíveis reservas de sobrevivência. No espelho da casa de banho fuck you a pasta de dentes, ou terá sido com batom?
Há um certo vazio quando os bêbados desaparecem. Ou dormem. Observo dois corpos abandonados ao chão, indiferentes aos pássaros por cima do Mausoléu e às promessas de “Havemos de voltar”. Admiro-lhes os braços compridos pregados ao lugar onde aterraram. Volto à luz que esventra a varanda gradeada, ganhando consciência da ilusão de que sempre ali vou estar. No Sete e Meio, metáfora de uma Luanda louca e apaixonante.
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[1] Como a videasta baiana Silvana, o antropólogo Filipe, a escritora Susana, a cravista Joana e a arquiteta Cristina, entre outros.
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Fotografia de Kiluanji Kia Henda