A vida agitada na rodela circulatória, de Álvaro Domingues.

A Vida Agitada na Rodela Circulatória

Personagens: 6 perdizes vagamente aparentadas: 3 mais velhas e 3 mais novas

Época e lugar: numa semana qualquer, algures no asfalto, numa rotunda próxima de várias autoestradas

 

Perdiz (acabada de chegar à rotunda com o grupo que ficou um pouco mais para trás): Olha que coincidência virmos todas parar aqui! (virando ligeiramente a cabeça e baixando o pio) Quem são aquelas três aqui à frente?

Perdiz (a do grupo da frente com peito avantajado e ar de perdigão de pescoço esticado): Não me parece grande coincidência, tantas são as autoestradas que aqui se cruzam. Conheço bandos e bandos que pousam sempre nesta rodela para recuperar forças e socializar, e todas sabemos perfeitamente que nestes lugares em círculo rodeados de asfalto, os caçadores não ousam sequer parar porque é expressamente proibido pelo código da estrada e implica uma multa daquelas que põe qualquer humano mais deprimido do que uma perdiz de aviário com a asa depenada. 

Perdiz (a do grupo de trás ainda sem perceber muito bem a cena): É coincidência, sim. Eu, por exemplo, não uso autoestradas. Não tenho rendimentos para pagar portagens e os campos e matagais e outros espaços verdes são muito mais saudáveis e sustentáveis…

Perdiz (a do grupo da frente inclinada para a direita ensaiando uma volta para encarar a outra, interrompendo bruscamente) Sustentável, o quê? Também tu andas com essas palavras que os humanos usam para discorrerem não se sabe sobre que assuntos, papagueando lengalengas como as do cacarejar das galinhas? Espaço verde também é este lajedo onde viemos parar. E “resiliente”? Não achas adequado, também?

Perdiz (ligeiramente amofinada): Quero lá saber disso, os humanos usam sempre as palavras em demasia. É próprio da espécie. Tenho o máximo respeito pelas galinhas e tu também devias ter. Bem lhes basta terem sido completamente endrominadas pela domesticação, industrializadas, reduzidas a engrenagens biológicas para produzir proteína barata, nem vêem os filhos, nem chocam já, vivem quatro meses de frangas e frangos atulhados em ração e hormonas, ou esgotam-se a pôr ovos até se esvaírem…, enfim, sabes muito bem o que eu quero dizer; quero dizer que somos dos montes, das serras, da liberdade; não temos nada que usar as coisas desses mamíferos falantes que nos desprezam, que nos matam mais do que as raposas, que chocam os nossos ovos naquela espécie de micro-ondas para depois engordarem os perdigotos e os soltarem, eles, coitadinhos, que nem se sabem alimentar, nem defenderem-se do frio ou do dente do inimigo, nem distinguir uma urze de um pé de centeio ou de como se faz a espera a um moscardo ou uma larva. Tudo para depois os caçarem, pele e osso, e irem para o Twitter exibir troféus. Animais mais tontos não existem em toda a assembleia da criação de sangue quente e frio, cães de loiça, ursos de peluche, sardinhas de renda ou galos de Barcelos.

Perdiz (ainda com o pescoço mais esticado e o peito mais inchado): Criatura problemática que só pensas em desgraças… desempena-te, monte de plumagem armado sobre pernas vermelhas, moderniza-te! Não sejas tão básica e radical. Os humanos também têm certas vantagens. A minha avó, por exemplo, ainda se lembra da fartura dos campos de centeio que eles semeavam e do bem que se comia nessas searas. Agora semeiam autoestradas. Não é comida, mas algumas vantagens terão. Basta descolares do chão e voar um pouco mais alto para perceberes que aquilo é caminho sempre a direito a abrir horizontes e velocidades, que está pejado de veículos motorizados que não permitem que ninguém ande a pé e muito menos acompanhado de podengos, cães perdigueiros e caçadeiras. Temos que sintonizar com os tempos e as marés que correm! Escasseia o centeio, o mato arde e nós temos de andar com a vida para a frente, tirar partido do que nos for mais conveniente e evitar outras tralhas dos humanos que só nos retiram dignidade e respeito. Pensa naquelas pernaltas das cegonhas que conhecemos, descendentes de uma estirpe de aventureiras e viajantes que corriam esse mundo e que agora não saem do mesmo lugar e das mesmas rotinas, da porcaria das lixeiras e dos arrozais a tresandar de adubos e herbicidas, os ninhos encastelados nas armações metálicas dos postes eléctricos e aquele ar pindérico nos dias de chuva dos invernos. Tão boa consideração que tinham por parte dos humanos, que lhes traziam crianças no bico e essas tretas, e agora perderam a poética toda, arriscando-se a descer ao nível das pombas das sarjetas ou das gaivotas transformadas em ratazanas voadoras e canhões de fazer esterco.

Perdiz (insistindo): Sim, sim, o que quiseres, mas para usar autoestradas tens de pagar portagem. Sou perdiz com muito orgulho, não tenho a escolaridade obrigatória nem telemóvel, evito a convivência com humanos e restaurantes especializados em caça, abomino cães, raposas e barracas de tiro, mas tenho as minhas convicções políticas. Esses caminhos largos das autoestradas deviam ser bens públicos, não são nenhuma mercadoria, não se deviam pagar nem vender, não se devia cobrar dinheiro para serem usados. Abaixo o capitaloceno, a mercantilização generalizada e a perdiz de cativeiro!

Perdiz (um pouco cínica): És muito romântica de instinto, prima, e muito pouco prática. Não tens que pagar nada! Quando vieres pela borda da tira do asfalto do lado de fora dos metais e vires aquele sinal de portagem e aquela parafernália dos pórticos e das luzes a piscar, dás uma corrida, tomas balanço, levantas voo e passas a rasar a portagem por cima do corredor da via verde e está feito. Depois é só veres onde aterras. Nós viemos parte do caminho em cima de um contentor de um camião, vento e liberdade pelas partes dianteiras e estamos aqui frescas para a próxima etapa. Pensa, percebes? Não te fiques no teu repositório reduzido e fechado de sistema de instruções de estímulo-resposta a que chamam instinto. Evolui, topas?, como explicou aquele Darwin das espécies. Cria o teu próprio meio com o que tens à disposição e põe-te fina porque as coisas mudam todos os dias, entendes? Abre bem os olhos e a cabeça, saca um drone 5G, um turbo debaixo da asa ou um esquema de radar, ou qualquer coisa que te mude esse ar de taxidermia empalhada e te sintonize com os tempos e as circunstâncias.

Perdiz (a mais calada do grupo, sempre a procurar um ponto para onde olhar sem se fixar em nada): É certo; frescas e folgadas estamos nós por via dessas facilidades de viajar na coberta do camião, mas agora não há miséria de coisa que se possa enfiar no papo nesta rodela verde toda armada e composta de feitios hexagonais e temos que tomar uma decisão sobre onde procurar comida antes que se consuma esta sensação que tenho de que as patas se nos estão a sumir pelas brechas do recinto e a cravarem-se no chão. Ao certo, vamos para onde? Do que fui aprendendo do significado das letras e das palavras, entendo que A1, A2, A6, A10 e A13 dizem-me nada sobre nada. Lembro-me vagamente de uma colega de bando que uma vez disse que por indicação do seu advogado, precisava de um A4 para lavrar um protesto junto do Instituto de Conservação da Natureza acerca de um grunho que andava a caçar à terça-feira numa zona interdita perfeitamente sinalizada por uma placa que faz lembrar aquela vermelha ali atrás só que diferente, com uma risca por cima de um homem armado com espingarda. Parece que o tal A4 era uma folha de papel, ou 4 folhas, não sei…, (concluindo) mas era papel, disso tenho a certeza e era para escrever e…

Perdiz (a do grupo de trás, sempre a balançar de nervos e ansiedade) Olha prima, muito mal te funcionam os raciocínios. Naquela caçada em que quase finavas, deves ter apanhado com algum chumbo que se te entranhou nas carnes e isso põe os miolos em mal estado com o passar do tempo e a circulação dos líquidos que nos percorrem este lindo corpo emplumado que temos. Conservação da natureza, ora, ora. Qual conservação e que natureza? Isso só pode ser coisa dos mamíferos humanos. Não se lhes pode querer mal. Inventaram a natureza para se convencerem de que são diferentes e ocupam o topo da criação, embora não tenham nada de substancialmente distinto do que eles dizem ser da própria natureza que os inclui e que, por sua vez, está sempre em modo de revisão e aumento, consoante a forma como a pensam e o instrumental infindável que usam para a designar, compor, excogitar ou partir às postas. Nós somos da natureza sintética, tudo aquilo de que somos feitas é natureza, cerâmica e tintas: coisas tão bem mais simples do que um átomo de hidrogénio. Conservação foi o que aconteceu a muitas de nós no tempo em que não havia arcas frigoríficas…, infelizes, quando nos matavam e cozinhavam numas gorduras e nos metiam em frascos tapados cobertas com aquela molhanga amarelenta para reservar e comer mais tarde. Hoje, congelam-nos. Para os primatas humanos, a invenção da conservação da natureza queria apenas dizer que eram eles que tinham a coisa sob sua protecção e controlo, depois de terem desistido da crença que isso era com os deuses (sua invenção, também) com quem de vez em quando conferenciavam; assim podiam fazer de deus e para tamanha autoridade  inventaram as ciências da natureza, qual mecanismo infinitamente produtor da própria natureza, desde as coisas muito mais infinitamente pequenas do que um piolho às inabarcáveis e indizíveis como o universo. Coitados. Mais valera à natureza permanecer na sua inexistência para não servir de arma de arremesso no exercício de falar de tudo e do seu contrário, da infinidade das estrelas e das que explodem, dos cometas errantes, dos buracos de ozono e dos buracos negros, das caganitas que de vez em quando aliviamos e do metano que as vacas arrotam. Mesmo que existisse, não é da natureza das naturezas conservar-se, mas sim transformar-se, ora por tempos e lentidões infinitas como o alisar das pedras, ora por cataclismos terríveis que duram menos que um pio, mais a teoria do caos, a da indeterminação e a dúvida metódica. Se é para falar de temas vagos, imprecisos, contraditórios, serenos ou terríveis, do que eu gosto verdadeiramente é do sobrenatural! O tal instituto da conservação que trate de conservar o pouco juízo que tem e que distribua essas placas de interdição da caça por todo o lado para o nosso sossego e longevidade e, sobretudo, que garanta a conservação da natureza sobrenatural que sempre foi aquilo que os humanos quiseram ser e os deuses a assobiarem para o lado. Quem me dera ser anjo, dragão ou demónio a jacto para compensar este voo pesado e taralhoco com que nascemos e que agora aqui se petrificou. O sobrenatural é que nos salva! O pensar outra vida antes da morte, a felicidade e o sol todos os dias, o castigo para quem nos quer mal e cheira a cão, uma chuva de centeio ao amanhecer, o milagre da transformação deste chão tenebroso em terra molhada a transbordar de minhocas vermelhas, lobos mansos e querubins com cio, asas e corpos leves sem piolho, penas douradas e gin tónico…

Perdiz (em modo de comando): Está bem, está bem, muita conversa e assunto inacabado. Vamos a Coruche que está bem sinalizado e que dizem que há lá muito arroz carolino? Ou seguimos para Santarém e Algarve? (murmurando). Como a seta nos mandar para o mesmo lado, ainda não percebi se o Algarve é em Santarém, se Santarém é no Algarve ou se é a mesma coisa com dois nomes diferentes, ou se é primeiro um e depois o outro porque um só tem letras grandes e o outro só tem uma no começo e as outras todas pequenas… não é fácil mobilizar tão poucos neurónios para tão complicada questão. Também acho que essas A1, A2, A6, A10 e A13 nos baralham demasiado o mapa. Lá está a tal porcaria da natureza que não nos instalou GPS, deixando-nos confinadas a uma geografia pequena e confusa, sem nomes de lugares e apenas coisas resumidas: lugar para comer, lugar bom para a criação, abrigo de inverno, … e coisas assim. Tenho um parente que vive em Vilar de Perdizes. É o único caso de que há conhecimento geral em matéria de topónimos e cartografia exacta. Então? Algarve? (baixando o tom, debicando pensamentos) … eu confesso que quero mesmo saber dessa coisa que chamam Algarve e que os humanos tanto apreciam, bandos e bandos deles a correr para lá no verão e a voltarem tostados e gordos de boa vida. Uma minha antepassada que tinha estudos e lia muito, dizia que no Almanach do Algarve para 1903 publicado em Villa Nova de Portimão estava escrito que … O habitante do Algarve não é um sêr fraco, rude e indolente; pelo contrario, o algarvio é, geralmente, activo, laborioso e aventureiro; é uma raça nervosa, e, devido ás depressões climatéricas, melancólica e sonhadora…; a propósito da Praia da Rocha, adiantava-se também que … Quando soar n’estes sitios esquecidos o silvo da locomotiva que os ponha em communicação facil com os centros populosos de civilisação, quando obesos brazileiros passeiarem por aqui os ocios do seu viver d’argentarios, é possível que o capital venha nas azas do progresso trazer a esta formosa estancia balnear os melhoramentos e confortos que se encontram nas suas congeneres do norte. Nós somos as azas do progresso! Bora lá! 

 

Coro (allegro con fuoco em modo fadista)

Somos as perdizes 

gordas e felizes 

postas na rotunda 

Pensamentos vagos

ao soprar da aragem

de bandas diversas

catando razões 

assunto e conversas. 

 

Não nos conformamos 

com a condição 

que querem impor-nos 

Pássaro imperfeito 

carne p’ra canhão

tua fantasia

Delírio de cão 

farejando rastos

soltando terrores 

e voos funestos.

 

Não somos fantoches

coisas de cenário

vacas do presépio

bonecos de loiça

corpos pintalgados

alucinação

 

Somos tu a pensar-nos

o teu desvario

tua confusão.

 

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