A Vida de Brian

A Vida de Brian e a JMJ

Este Agosto, enquanto os leitores da Almanaque se deliciam com um novo número, enquanto saboreiam sofisticados cocktails nos mais recônditos e exclusivos lugares paradisíacos do nosso planeta, Lisboa será invadida por uma multidão de jovens e para-jovens, paramentados ou nem por isso, em busca de ver ao vivo, e num palco francamente polémico, o Papa Francisco. É possível que o número supere o milhão e meio de participantes vindos de todo o mundo, espalhados numa área enorme.

A enorme complexidade técnica da operação entra em gritante contraste com o episódio da Bíblia que me veio de imediato à memória: o sermão da montanha (segundo S.Mateus, no evangelho segundo o próprio era só um monte mas, como se sabe, 2000 mil anos de religião organizada tendem a ser aumentativos), em que Jesus terá pregado de improviso (algo improvável para alguém omnisciente e omnissapiente, convenhamos, mas adiante) para milhares de seguidores que se foram juntando para ouvir as suas palavras, ao que se terá seguido um dos seus mais famosos milagres, multiplicando pão e peixes para alimentar a multidão.

Onde o Papa conta com uma bem coordenada equipa de som, capaz de conectar as inúmeras colunas, de modo a que o som chegue aos fiéis sem distorções ou delays através dum sistema de mistura state of the art, como me explicou inutilmente um funcionário da empresa Audiomatrix, responsável pelo som do acontecimento (basicamente o som é uma onda que se propaga, e para ser ouvido em simultâneo por todos são necessárias colunas de xis em xis metros; Jesus contava apenas com a sua divina voz e não menos divinos dotes retóricos).

O que, curiosamente, não impediu que os Monty Python imaginassem a seguinte piada, no clássico A Vida de Brian, de 1979[1]. O plano começa em Jesus, no topo do monte a dizer as bem-aventuranças, e vai progressivamente regredindo até estarmos nas últimas filas, onde ouvimos Terry Jones, o realizador e mãe de Brian no filme, a gritar “Fala mais alto”. No filme dos Python, como, segundo um dia me contou o Óscar Branco, numa manif do PREC no Porto, as pessoas cá atrás, não conseguindo ouvir, iam inventando o que lhes parecia ouvirem, dum lado frases teológicas, do outro revolucionárias, não me peçam para explicitar em que evento as frases eram mais uma coisa do que outra.

O resultado é hilariante. E é disso que me lembro sempre quando vejo estas moles humanas. Daí à escolha do tema deste mês, foi um pequeno passo, reforçado por Agosto ser o mês em que se comemora o quadragésimo quarto aniversário do filme, estreado a 17 de Agosto de 1979.

A Escrita do Novo Testamento de Brian aka A Vida de Brian

Tudo terá começado em Nova Iorque ou num bar de Amesterdão ou algures no meio da digressão dos Python para promover o filme anterior. As opiniões divergem entre os Python na sua autobiografia. Cleese chega a dizer que tudo derivou do prazer que estavam a ter em trabalharem de novo juntos, nos espectáculos lendários para angariar fundos para a Amnistia Internacional em Londres.

Seja como for, numa coisa estão de acordo, foi Eric Iddle quem viria a chamar ao projecto e em público, para enervar os produtores, Jesus Christ, Lust for Glory. Todos adoraram o título e, à boa maneira Pythoniana, regressaram a casa para escreverem em separado ou em duplas, ideias para o filme.

Quando se voltaram a juntar, chegaram à conclusão de que Cristo, em si, não era particularmente caricaturável ou especialmente divertido, nem os seus ensinamentos motivo de gozo e de escárnio. Mudaram pois de ângulo. E se o protagonista fosse o 13º apóstolo, Brian, o que chegava sempre atrasado e perdia sempre a acção?

Continuava a ser demasiado perto.

E se fosse a vida de Brian, uma vida paralela à do Messias e com o mesmo destino, numa época fértil no aparecimento de pretensos Messias, como resposta à ocupação romana de Israel e Palestina?

Eureka.

Depois, mergulharam nos evangelhos e noutros textos, viram filmes bíblicos tardes seguidas, sendo que o único que lhes pareceu são segundo Terry Jones, foi o Evangelho segundo São Mateus, do Pasolini .

As discussões entre os Python sobre o material são permanentes, mas construtivas. Cleese diz que se assemelham a esculpir um elefante no mármore: eles pegam no mármore e partem tudo até que o mármore se pareça com um elefante. Às vezes enganam-se, Cleese, por exemplo, não gosta das canções de Iddle para o filme, uma delas, o Always look on the bright side of life, que acabará por fechar brilhantemente o filme e tornar-se um dos momentos mais icónicos da carreira do grupo bem como a mais bela das despedidas para Graham Chapman .

Pressionados pela EMI e por Bernard Delfont para apresentarem um novo projecto que aproveitasse a boleia do sucesso de O Cálice Sagrado, escolhido Graham para protagonista, em vez de Cleese, que reconheceria mais tarde ser esta a melhor decisão, os Python decidem fazer um retiro de escrita. Onde?

Nas Barbados.

Em 15 dias em Janeiro, entre todos os excessos e dificuldades inerentes em explicar às esposas e companheiros porque é que só se pode escrever um filme em ilhas paradisíacas, depois de mais de 20 anos a escreverem na pluviosa Londres, os Python têm finalmente um argumento fechado e todos os papéis distribuídos, incluindo um para o excêntrico músico Keith Moon, baterista dos The Who, que estava lá de férias e com quem jogavam à bola ao fim da tarde, antes de irem jantar com Mick Jagger.

Moon, infelizmente, nunca viria a representar o seu papel de profeta, morreria de overdose em Setembro de 1978

Em paralelo, Graham Chapman toma provavelmente a decisão mais corajosa e difícil da vida dele e decide tornar-se abstémio, vendo nisso a única maneira de poder representar o papel, não deixar ficar mal os amigos, como acontecera no filme anterior e, claro está, manter-se vivo.

Todos testemunham o seu enorme sofrimento. Médico de formação, Chapman optou por uma versão cold turkey de reabilitação e rapidamente os efeitos do delirium tremens se manifestaram. Ainda assim, resistiu.

Os Python estavam prontos para o maior filme das suas carreiras.

A Produção

Barry Spikings, que trabalhava para Delfont, era o controlador do trabalho dos Python e telefonava regularmente a pedir-lhes o argumento. Quando finalmente o recebeu, adorou e decidiu dar luz verde ao projecto sem consultar o patrão e a todo-poderosa, mas conservadora, EMI.

O orçamento do filme era de 5 milhões de dólares, à época uma verdadeira fortuna. Quando finalmente leram o argumento, a direcção da EMI e Belfont decidem abandonar o projecto, deixando os Python sem dinheiro a dias do início da rodagem. E quando digo dias, quero dizer que, segundo Terry Gilliam, souberam numa quinta-feira que não havia dinheiro e as filmagens começavam no sábado seguinte.

Desesperado, Eric Iddle desabafa com um dos seus melhores amigos, George Harrison, esse mesmo, dos Beatles. Mostra-lhe o guião, George adora e pergunta quanto é que custa o filme. Eric não quer acreditar, mas  balbucia os 5 milhões.

George hipoteca a casa nesse valor, cria uma produtora de cinema, a muito justamente baptizada Handmade Films. George fará ainda um pequeno cameo no filme e famosamente responderá à pergunta dos jornalistas sobre o que o levara a pôr todo o seu dinheiro no filme: “Porque queria ver o filme.”

É a sua lendária resposta.

Ao que Terry Jones terá respondido: ”é o bilhete de cinema mais caro de sempre”.

Como acontecera antes com o Monty Python Flying Circus, a série que as chefias da BBC achavam que ia correr mal, ou Fawlty Towers, que sobreviveu às devastadoras críticas do Chefe de Entretenimento da BBC, que Cleese ainda hoje guarda como se fosse um prémio Nobel ou um Oscar, tanto a EMI como Belfont se arrependeram das decisões tomadas. A Vida de Brian não só se tornou num grande sucesso nas bilheteiras, vídeo, Dvds e streaming, como tem feito uma fortuna em merchandising, adaptações, como para o concerto de Eric Iddle “He’s not the Messiah, he is just a naughty boy” ou mesmo a futura adaptação para um musical, escrito por John Cleese.

As Filmagens:

As filmagens decorreram na Tunísia, reaproveitando nada mais, nada menos que os cenários usados por Franco Zefirelli no seu Jesus Cristo. Depois dos atritos ocorridos durante a co-realização do Cálice Sagrado, Terry Jones assumiu a realização e Terry Gilliam os aspectos cenográficos bem como duas sequências de animação. Ainda assim houve choques entre os dois. Gilliam, ainda hoje um realizador extremamente preocupado com o lado visual, a fotografia e o mise-en-plateau dos seus filmes, sentia que Jones, muito mais focado na parte cómica das cenas e actores, não dava importância ao trabalho dele. Jones, por sua vez, sentia-se ultrapassado e não gostava. Os dois acabaram por encontrar um equilíbrio no tom que é visível em todo o filme.

John Cleese andava feliz da vida: odiava filmar em estúdios, mas ainda mais filmar sob mau tempo, como no Reino Unido. A Tunísia era soalheira, o hotel era cómodo e, não sendo protagonista, os horários não eram os piores. O único senão, segundo o próprio, era ter de jantar com os outros Python, quando lhe apetecia estar só, mas acabou por fazer valer a sua vontade, apesar disso desagradar aos outros.

Fora isso e o desconforto em ser crucificado em cena, o que não é propriamente surpreendente, tudo lhe corria às mil maravilhas.

Também Eric e Michael se referem às filmagens como dias felizes.

Graham, completamente sóbrio, protagonista do filme, arranjara tempo para se tornar o médico da equipa de rodagem, assistindo os colegas e a equipa técnica, algo de extremamente útil, ainda para mais longe de casa.

O Filme:

A Vida de Brian é o filme dos Python mais estruturalmente perfeito, com um equilíbrio notável de estilos de representação, humor e métodos de criar uma narrativa, algo que não acontece com o mesmo peso no Cálice Sagrado e ainda menos no Sentido da Vida.

Representa na perfeição técnica o humor Pythoniano, um espectro que vai do infantil, mas fabulosamente trabalhado, como nesta cena em que a piada é uma simples troca dos erres pelos eles, a piadas usando como tema a gramática latina, como a cena em que Brian está a grafitar uma parede, é capturado e o seu castigo é escrever correctamente a frase na parede 100 vezes, passando por números musicais, momentos de non sense puro e duro, diálogos hilariantes e sem um pingo de gordura a mais, o timing de todos os elementos perfeito e, claro está, as animações de Gilliam.

Tudo ou praticamente tudo resulta aqui e o filme encerra nele também a ideologia do humor Pythoniano: é um hino à liberdade, ao indivíduo e sobretudo à não conformidade do mesmo a uma autoridade opressora, seja ela representada pelo império romano, seja pela religião, ou até mesmo pela família.

Neste discurso, Brian, o suposto Messias, prega aos seus seguidores, rogando-lhes que sejam livres. O resultado é previsível, ainda assim hilariante e angustiante.

 

Os Python rejeitam no mesmo filme seguir um iluminado, mesmo que um tipo decente, como Brian, a submissão ao império romano , mas também a cedência ao maniqueísmo acrítico da oposição, fragmentada em grupúsculos mais preocupados em discutir o sexo dos anjos e da Loretta de que em fazer algo, e o seu contraponto terrorista, disposto a uma missão suicida sem qualquer nexo.

Contestam um feminismo que quer o poder masculino para poder fazer tão mal como os homens, criando a cena das mulheres que colocaram barbas falsas para poderem apedrejar um desgraçado qualquer.

É, no entanto, a religião organizada o seu maior alvo. Da colecção de Messias a vendilhões do templo, nada é poupado.

A mensagem principal é a de que qualquer que seja a palavra e vontade de Deus, ela é imediatamente adulterada por aqueles que depois se afirmam não só mais próximos de Deus, como os únicos possíveis interlocutores e tradutores do divino. E que essa adulteração que até pode ser ou começar por ser involuntária ou pelo menos não intencional, pende sempre para os interesses de quem a promove e não dos fiéis que aceitam esses intermediários como verdadeiros e únicos representantes de Deus e dos seus segredos. Se isto vos lembrar algo, não é coincidência.

Para os Python, o abdicar do pensamento crítico e individual é a mãe de todas as desgraças, fanatismos, violência e morte.

Essa é a sua tese, defendida ao longo do filme e apresentada na perfeição nesta cena

O antídoto, paradoxalmente naif, está na canção final, na libertação espiritual dos condenados na cruz, cantando alegremente o optimismo cockney  de Always look on the bright side of life..

A Controvérsia:

“He’s not the Messiah, he is a very naughty boy.”

Os berros da mãe de Brian, interpretada por Terry Jones com o empenho, a verve e a fealdade que lhe eram características, a uma multidão de fiéis que aguardavam, debaixo da janela do filho, que ele assomasse e dissesse qualquer coisa messiânica, eram o espelho da controvérsia em torno do filme, quando este estreou.

Seria A Vida de Brian, como muitos apregoaram, um filme blasfemo, capaz de condenar quem o fez e quem o fosse ver à danação eterna?

Não posso responder a isso cabalmente. Devo ter visto o filme umas dez vezes, o que aparentemente me habilitaria a  julgar o assunto, mas a verdade é que ainda estou vivo e, portanto, impedido de saber se haverá um inferno à minha espera e se apenas por causa disto. Mas tenho fé que não.

Inúmeros grupos de activistas religiosos, sobretudo nos EUA, tentaram impor o boicote ao filme. Piquetes e marchas foram montados. Sucederam-se discursos inflamados e o seu contraponto. O resultado foi um tiro na culatra de proporções bíblicas. Por cada cinema que boicotava, outros cinemas e outras cidades faziam questão de mostrar o seu progressismo.

O receio dos distribuidores, que tinha motivado os problemas de financiamento do filme, como vimos, fez com que inicialmente o filme estreasse em apenas 5 cinemas nos EUA. A vontade de ver pelos próprios olhos as tais blasfémias provou ser irreprimível.

Só no ano de estreia e para grande alívio dos Python e sobretudo de George Harrison, que assim não perdeu a casa, o filme atingiria os cerca de 20 milhões de dólares de bilheteira e tornou-se o filme inglês com melhor box office nos EUA desse ano.

O interdito ser o melhor marketing levou a que a civilizadíssima Suécia, segundo Terry Jones, na autobiografia dos Python, fizesse a publicidade ao filme com o slogan ”Um filme tão divertido que foi proibido na Noruega”.

No Reino Unido, a disputa foi feita cidade a cidade, visto que cada vereação tinha o poder de classificar o filme e efectivamente censurá-lo, impedindo a sua distribuição.

A controvérsia atingiu o seu zénite no muito celebrado debate entre um surpreendentemente calmo John Cleese e um ainda mais surpreendentemente apopléctico Michael Palin versus Malcolm Muggeridge e o Bispo de Southwark, que podem rever aqui .

É talvez um dos maiores triunfos do humor sobre a tentação censória e a imposição dos famosos, profusa e inutilmente debatidos limites do humor.

Os Python advogavam que o filme não era blasfemo, que não atacava a figura histórica e religiosa de Jesus Cristo, que era, para todos os efeitos, uma personagem observada de longe. O filme era, sem dúvida, uma crítica às religiões e ao modo como os fiéis eram manipulados ou simplesmente se revelavam hipócritas.

O primeiro argumento entroncava naqueles que tinham sido os desvios ao projecto inicial, que referimos anteriormente. Após aturada pesquisa, os Python tinham concluído que Cristo e os seus ensinamentos não eram bom material de caricatura e tinham-se focado muito mais nos cultos e fanatismos.

Há um esforço deliberado para separar Brian de Jesus em pelo menos três cenas: no nascimento, quando os Reis Magos se enganam na morada e são expulsos pela mãe de Brian, no famoso sermão da montanha em que vimos Cristo a discursar e, cá ao fundo, bem longe, Brian a tentar, sem sucesso, escutar os seus ensinamentos e, finalmente, na crucificação, em que Cristo não está entre os crucificados do dia.

Do outro lado o argumento é que isto eram balelas, que o filme era blasfemo e que destruía a imagem de Cristo e do seu sacrifício para salvar a humanidade perante os seus fiéis. O mau gosto era aviltante e todo o filme, um insulto colegial.

A exaltação de Michael Palin atingiu o rubro quando os dois críticos confessaram que ainda não tinham visto o filme, um padrão bastante usual na crítica ao humor por religiosos.

Michael desabafou, quando lhe disseram que “não era preciso ver o filme para saber que era blasfemo”: “Ainda bem que mantiveram a mente aberta”, gerando a gargalhada geral do público que assistia ao programa.

O bispo terminou com um insulto: “Tenho a certeza de que irão receber as vossas 30 moedas de ouro”, dizendo-o na sua exuberante batina roxa e rodando um abissal e certamente caríssimo terço entre os dedos.

Depois de as câmaras se desligarem, o Bispo, segundo Michael, ainda na autobiografia dos Python, veio ter com os dois, alegremente, sem ponta de hostilidade, dizendo que achava que o debate tinha corrido muito bem.

O tom pio e indignado de quem nem sequer tinha visto o filme era uma mera fachada.

Nenhuma surpresa aqui.

Paradoxalmente, mais de quatro décadas depois, a controvérsia actual em torno do filme não se prende com movimentos religiosos e conservadores, mas vem da ala progressista ou assim dita sobre este momento do filme, alegadamente transfóbico.  Nele, Stan pede aos outros revolucionários que o tratem por Loretta, dos três, só um não o aceita enquanto tal.

Teria o passar do tempo envelhecido o famosamente intemporal humor dos Python?

A resposta é provavelmente um nim. Há coisas que sim, sofreram a usura do tempo, outras permanecem quase premonitórias. Quem determina qual é a categoria em que se insere este trecho? Há quem o ache premonitório do debate sobre identidade de género, quer pelo lado de Loretta, quer pela reacção da personagem de Cleese.

Confesso que a minha avaliação é um work in progress que partiu da aceitação da piada inicial para o começar a pensar se ainda é possível fazê-la, sendo que cumpre os requisitos de estrutura, set-up e punch, é impecavelmente entregue por todos, mais posições que a transfóbica são apresentadas e até ganham a moção e no entanto… há um desconforto insidioso que se instala.

A questão recrudesceu porque, à semelhança do que aconteceu com A busca do Cálice Sagrado, com a criação de Spamalot, um musical de enorme sucesso quer na Broadway quer no West End, também A vida de Brian estará a ser adaptada por John Cleese e correram rumores que actores e produtores teriam pedido a Cleese para cortar esse trecho.

Cleese anunciou urbi et orbi que não cortaria uma vírgula, absolutista que é da liberdade de expressão no humor e não só.

Na minha opinião, o corte não deve existir ou, pelo menos, não pelas razões aduzidas. A Vida de Brian é uma obra prima do humor? Sim, é, e deve ser avaliada pelo seu todo e sobretudo pelo contexto histórico, até porque não foi criada no vácuo e é impossível não ver nos Romanos, por exemplo, uma metáfora do imperialismo americano, ou ignorar a crítica a grupúsculos de esquerda sempre mais concentrados em exacerbar diferenças de pormenor do que apostar no que lhes é comum.

A minha posição é sempre não alterar linguagem ou estilo, apenas enquadrá-lo para novos e antigos espectadores e deixá-los exercer a sua liberdade de escolha, naturalmente dentro dos limites legais.

Tudo isto terá a importância que lhe dermos. Para mim, a Vida de Brian é um momento absolutamente seminal para as minhas escolhas de profissão e, tal como as séries dos Python, influenciou-me de modo ímpar.

É reconhecido por quase todos como sendo uma das melhores comédias de sempre e é, a meu ver, o melhor filme dos Python, o mais coeso e o mais sólido estruturalmente, em que ao lado de piadas extraordinárias, a narrativa nunca é negligenciada. É também um prodígio da combinação de técnicas de comédia e de justaposição de camadas nessas piadas.

A sua homogeneidade resulta também de algumas escolhas claras e difíceis: por exemplo, que em vez da realização bicéfala do Cálice Sagrado, se tivesse optado por ser Terry Jones a realizar a solo, ficando Terry Gilliam com a cenografia e animações, ou a escolha de Graham Chapman para fazer de Brian em detrimento de John Cleese.

A Vida de Brian é reflexo, e cito novamente Michael Palin, na autobiografia do grupo, do “nosso período mais feliz desde as primeiras séries.”

Tinham-se passado 10 anos da estreia de Monty Python Flying Circus, o grupo já tinha sido separado em relação à televisão, primeiro com a saída de Cleese, depois com os outros a seguirem as respectivas carreiras, em parceria uns com os outros ou não. Restavam apenas os filmes e as suas digressões teatrais onde o público conhecia melhor as deixas do que os próprios actores.

A verdade é que se reuniram num momento perfeito de forma de escrita e dos próprios, com Graham Chapman sóbrio e com todas as suas faculdades de brilhante actor ao seu dispor.

Assim como assim, A Vida de Brian continua a ser uma alternativa muito mais divertida de encontrar a salvação das almas do que a torreira da JMJ.

Mas não acreditem em mim, vejam para quererem.

Fim


__

 

Nota: as citações do Python foram retiradas de Monty Python, autobiografia, pelos Monty Python, da Oficina do Livro.         

[1]

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