Da Série Birkenau, Gerhard Richter
Alemanha e Israel
Alemanha e Israel

Na entrada principal do Reichstag, o edifício do Parlamento Federal alemão, o público é recebido por duas obras monumentais de Gerhard Richter: à esquerda, placas com as cores da bandeira alemã, e à direita reproduções dos quadros da série Birkenau, feitos a partir das quatro fotos que são o único registo fotográfico conhecido do que foi o horror do Holocausto em Auschwitz-Birkenau. Entre a sala do plenário e essa entrada há duas enormes paredes de vidro. Quando o presidente do Parlamento – a figura de topo na hierarquia do sistema político alemão – ergue os olhos acima das bancadas, é isto que vê: à direita a bandeira alemã, e à esquerda os quadros que não deixam esquecer o horror de Auschwitz.  

Este texto podia acabar aqui, porque, de facto, já diz tudo sobre a relação da Alemanha consigo própria quando o tema é Israel.

***

No dia 7 de Outubro, quando se começou a perceber a dimensão do massacre perpetrado por terroristas do Hamas em Israel, na Alemanha houve pessoas que saíram à rua para festejar o facto. Vi uma entrevistada na TV, provavelmente muçulmana, a dizer com um sorriso rasgado que a família tinha feito uma festa enorme, e distribuído doces pelas crianças em sinal de regozijo. Milhões de muçulmanos ficaram em casa, mas foi esse sorriso rasgado que fez o seu caminho até à televisão e aos jornais. 

Poucos dias mais tarde, em Berlim, a polícia cercou o memorial do Holocausto com grades, para o proteger. Algo que, na Alemanha, é um escândalo do ponto de vista simbólico. 

Por essa altura, o vice-chanceler alemão Robert Habeck publicou na internet um discurso muito claro e pedagógico sobre a posição da Alemanha, e o significado da expressão raison d’État, que todos os políticos repetiam para justificar o apoio incondicional a Israel (aqui, com legendas em inglês).
Logo no princípio do seu discurso, Habeck fala de um quadro que viu no Knesset, onde se mostra uma multidão de pessoas que avançam a pé, com uma mulher e várias crianças na linha da frente. Era Babyn Yar: quando a SS decidiu exterminar a maior parte dos judeus que ainda não tinham fugido de Kyiv. Aos homens do exército alemão e da SS foi dito que se tratava de uma retaliação necessária, como resposta a uma série de explosões e incêndios no centro de Kyiv que, alguns dias antes, tinham custado a vida a muitos elementos das forças ocupantes. Eles aceitaram o argumento e cumpriram as ordens que lhes eram dadas: em menos de dois dias assassinaram mais de 33 000 judeus – velhos, mulheres, crianças. A tiro. Um a um. Foi em 1941 e – acrescento agora – foi no dia 7 de Outubro de 2023: velhos, homens, mulheres, crianças, bebés de colo: assassinados a tiro, um a um, por quem sentia que tinha razões válidas para o fazer.

Se estou a comparar estes terroristas do Hamas com os pelotões móveis da SS que no leste da Europa cometeram chacinas em massa de judeus? Estou, e suspeito que muitos dos terroristas leriam isto como um elogio. Tomar consciência deste facto ajuda a entender o processo de retraumatização que o pogrom do Hamas de 7 de Outubro provocou tanto a Israel e aos judeus no mundo inteiro como, ao nível da consciência do peso da sua própria História, à Alemanha. 

Regressando ao discurso do vice-chanceler: Israel foi criado para que os judeus tenham um Estado, um lugar onde possam sentir-se seguros. Por causa de Babyn Yar, de Treblinka, de Auschwitz e de todos os outros lugares de crimes de horror inimaginável perpetrados pelo regime nazi, a Alemanha tem a responsabilidade histórica de velar pela segurança dos judeus dentro das fronteiras de Israel e em todo o mundo. É por causa desses lugares de horror e dessa responsabilidade histórica que a Alemanha recusa a relativização (exemplifica, citando a frase que todos conhecemos: “Mas Israel também…”) e assume uma posição de solidariedade ilimitada com Israel e com o seu direito a defender-se. Sublinha que na Alemanha não pode haver espaço para anti-semitismo, e não pode haver tolerância para com as organizações radicais islâmicas que o cultivam. Remata: a memória impõe a obrigação de lutar contra o anti-semitismo e o ódio. Nunca mais! 

É um discurso digno e claro, mas tem algumas afirmações peremptórias que suscitam questões incómodas que a Alemanha parece não estar ainda em condições de colocar: por que motivo têm de ser os palestinianos quem paga o preço da responsabilidade histórica da Alemanha? E será que o melhor que a Alemanha pode fazer para garantir a segurança de judeus no mundo inteiro é oferecer apoio incondicional a um governo israelita que tem elementos radicais, que combate os inimigos com uma violência absolutamente desproporcional e sem qualquer respeito pela população civil, e que dá cobertura militar aos seus nacionais para instalarem colonatos em terra alheia, em atropelo das regras mais básicas do direito internacional? Ou não será que esse apoio incondicional é em si contraproducente e acaba por exacerbar ainda mais a polarização e o ódio, o que tem como consequência ainda mais insegurança e medo sentidos por judeus – e muçulmanos – no mundo inteiro?

Desde o dia 7 de Outubro, muito mudou na consciência que a Alemanha tem de si própria: o anti-semitismo associado à população muçulmana tornou-se um tema principal, e logo o chanceler Olaf Scholz se apressou a anunciar que a Alemanha vai recomeçar a repatriar refugiados em larga escala. Os cidadãos judeus sentem-se à mercê do ódio anti-semita – só em Berlim, desde o dia 7 de Outubro registou-se uma média de oito crimes de ódio anti-semita por dia – e recomeçaram a esconder a sua identidade para andar nas ruas alemãs; há crianças com medo de ir à escola. Como se a situação não fosse já suficientemente complexa, há indícios de que será a Rússia que está por trás das estrelas de David que aparecem pintadas em frente às casas de judeus. Para complicar ainda mais, faltam aos agentes da polícia que vigiam as manifestações critérios claros para identificar os sinais de anti-semitismo. Chegou-se ao ponto de ter sido necessário responsáveis políticos virem esclarecer publicamente que afinal não era proibido mostrar bandeiras palestinianas e keffiyeh nas manifestações de apoio aos palestinianos. Porque até isto era interpretado como símbolo anti-semita. Outros sinais, contudo, são inequívocos: em algumas destas manifestações tem havido cartazes e palavras de ordem que exprimem ódio contra os judeus e defendem a extinção do Estado de Israel; chegou a haver alguns casos de grupos radicais islâmicos que se juntaram a essas manifestações com bandeiras do Califado, numa atitude de desafio radical. O que tem provocado reacções de profunda rejeição em todos os espectros políticos – desde os que acreditam numa sociedade democrática e aberta, até à extrema-direita, que por estes dias tem tido muitos e variados motivos para se alegrar. 

Algumas semanas depois do início dos bombardeamentos de Gaza, Robert Habeck preparou novo discurso para as redes sociais (para fazer o download da tradução para inglês, seguir este link e carregar em “Robert Habeck (…) – Manuskript Englisch”). O discurso tornou-se viral e foi muito aplaudido, mas, em meu entender, tem falhas graves. Em primeiro lugar, afirma que na Alemanha se pode criticar Israel, e que ele próprio tem insistido, juntamente com os EUA, para evitar a terrível tragédia em Gaza. Mas a população alemã vê, nos noticiários e jornais, os políticos do seu país a darem carta branca a Israel, e sente-se impelida a praticar autocensura devido à grande falta de nitidez na linha que separa “judeu” de “Israel”. Uma palavra menos cautelosa sobre Israel basta para ser criticado como anti-semita. Se o autor for de família alemã desde há muitas gerações, é imediatamente humilhado com a crítica habitual: “Ora vejam lá este descendente dos autores do Holocausto a dar lições de moral aos descendentes dos que sobreviveram.” Se não for um alemão desses, a resposta é mais do tipo: “Vai para a tua terra, não há lugar para pessoas como tu no nosso país.”

Em segundo lugar, Habeck só menciona levemente o problema do anti-semitismo na extrema-direita alemã. O partido com líderes desavergonhadamente anti-semitas, o partido onde se defendeu a tese de que o III Reich foi apenas uma “caganita de pássaro no glorioso passado alemão” está prestes a chegar ao poder em vários Estados federados. Mas Habeck prefere centrar-se na minoria muçulmana, o que nos leva à terceira falha: 

O discurso critica duramente e de forma pouco cuidadosa as manifestações de anti-semitismo nos muçulmanos e o silêncio de “demasiadas” organizações de muçulmanos quando é preciso condenar o Hamas e anunciar  o apoio a Israel. Estas acusações reforçam a percepção cada vez mais generalizada de que as pessoas desta minoria são os novos inimigos da Alemanha. Nem por um momento põem a hipótese de que alguns dos excessos e silêncios que critica sejam também resultado de um sentimento de revolta e desespero resultante da combinação explosiva das imagens do sofrimento dos habitantes de Gaza com as afirmações de apoio incondicional da Alemanha a Israel, a par da sensação de haver demasiados tabus no debate público.  

A extrema-direita rejubila. Não precisa de fazer nada, são os partidos do centro – os Verdes de Habeck, o SPD, a CDU – que estão a identificar as minorias muçulmanas como um perigo para a coesão nacional. E o trágico resultado desta retórica já está à vista nos Países Baixos: após a vitória de Geert Wilders, os muçulmanos deixaram de se sentir seguros na rua, as crianças muçulmanas têm medo de ir à escola.

Mudemos por alguns momentos o foco: pensemos nas crianças de famílias turcas e árabes que vivem na Alemanha. Em casa, vêem nos canais de televisão estrangeiros programas bem mais centrados no horror dos ataques a Gaza do que aqueles que passam nos canais alemães. Estas crianças estão muito sensibilizadas para o horror e a injustiça do que está a acontecer, mas não podem falar abertamente sobre isso na escola, porque sabem que correm o risco de as suas famílias serem consideradas anti-semitas. O discurso da política alemã – nomeadamente o do vice-chanceler – é muito claro: na Alemanha não há lugar para anti-semitas. Não queremos “essa gente” entre nós. Vamos “repatriar em larga escala”. 

No final, Habeck falha novamente, e de uma maneira que revela bem o desnorteamento da política alemã em relação a Israel. Cito, a partir da página do seu ministério, onde o discurso está publicado em inglês: “Of course, Israel must abide by international law and international standards. But the difference is this: would someone ever frame such expectations of Hamas?”  É aflitivo ver o vice-chanceler alemão, que não admite um “Mas Israel também…” por ser uma relativização inaceitável dos crimes do Hamas, recorrer ele próprio ao mesmo argumento (“Mas o Hamas também…”) para relativizar o desrespeito de Israel pelas leis e os acordos internacionais.  

Durante décadas, o Ocidente – e a Alemanha, em particular – acomodou-se à paz podre entre Israel e os palestinianos. Admito que os políticos tenham andado ocupados a responder a outras crises, que é coisa que infelizmente não tem faltado no mundo. Além disso, a aproximação entre a Alemanha e Israel tem sido um processo moroso, feito de pequenas conquistas e permanente risco de retrocesso: foi preciso esperar até ao ano 2000 para um presidente da República alemão ser convidado a discursar no Knesset; em 2001, houve um grande escândalo por, a pedido da maioria do público, Barenboim e a sua orquestra berlinense terem tocado Wagner como encore num concerto em Israel; em 2008, houve um aceso debate sobre a eventualidade de Angela Merkel discursar em alemão no parlamento israelita. Merkel acabou por discursar realmente em alemão, depois de algumas frases em hebraico, e foi muito aplaudida – mas em 2015, o gesto humanitário de abrir as fronteiras a refugiados muçulmanos fez com que perdesse parte da boa impressão que fizera. São episódios que revelam a relação ainda muito sofrida entre os dois países, e permitem compreender melhor que ao longo destas décadas não tenha sido possível à Alemanha amadurecer e repensar o que pode fazer para contribuir realmente para a segurança de Israel, bem como dos judeus em todo o mundo. Pelo que continua a repetir o mote: a segurança de Israel é raison d’État da Alemanha, aconteça o que acontecer, faça Israel o que fizer. 

Compreendo, como é óbvio, a questão da responsabilidade histórica da Alemanha, aceito que os judeus precisem desesperadamente de um país onde possam sentir-se em segurança. Mas que paz e que segurança são possíveis, quando a existência de Israel assenta na opressão e no atropelo dos direitos mais básicos dos palestinianos? 

Penso que muitas tragédias e muito sofrimento teriam sido evitados se, em vez de escolherem a Palestina, tivessem escolhido um território alemão para instalar um país seguro para o povo judeu. No final da Segunda Guerra Mundial, quando as fronteiras no centro da Europa foram redesenhadas e as estradas se encheram com milhões de refugiados, teria sido possível tirar mais uma parcela ao território alemão para construir o novo país. Tivesse havido vontade por parte das potências que dominaram o destino das Alemanhas no pós-guerra, e a este Israel europeu teriam sido oferecidas algumas décadas de paz que lhe permitiriam dar os primeiros passos como Estado numa terra que já era há mil anos a terra deles. Desse modo, o preço seria pago pelo povo que impôs a máquina do Holocausto em quase toda a Europa, e assim criou a imperiosa necessidade de dar aos judeus um país onde possam viver em segurança. 

Tanto quanto sei, essa hipótese não ocorreu a ninguém no fim da guerra. E agora parece ser demasiado tarde. O Estado de Israel instalado no território dos palestinianos é um facto consumado.

Contudo, em momentos de delírio, dou comigo a imaginar que a Alemanha poderia traduzir a sua responsabilidade histórica não no apoio ilimitado a Israel, mesmo quando este país atropela brutal e cinicamente as leis internacionais, mas em gestos verdadeiramente generosos que ajudassem à resolução da crise que se arrasta há demasiado tempo na Palestina. Imagino, por exemplo, que ofereça uma região autónoma no seu próprio território, onde os colonos ilegais da Cisjordânia se poderiam instalar, para pôr fim a um dos entraves à solução dos dois Estados. Mas é um delírio, bem sei. Um delírio com interesse pedagógico: porque, como é óbvio, tal decisão não seria aceite pela população alemã, e rapidamente seria necessário rever as ideias que este país tem sobre o anti-semitismo dos muçulmanos e árabes em geral e sobre as circunstâncias dos palestinianos em particular. Percorrer algumas milhas nos mocassins alheios… 

E assim se vai prolongando esta tragédia sem fim à vista: a nível externo, uma Alemanha traumatizada tenta impor aos países seus parceiros uma solidariedade total com Israel, apesar dos comportamentos deste, inaceitáveis à luz do direito internacional. O que tem como consequência a perda de credibilidade desses países que se afirmam defensores de uma ordem internacional universalmente respeitada. A nível interno, a Alemanha coloca a sua própria população numa posição de silêncio desconfortável sobre o que se está a passar em Gaza, para não correr o risco de minar a raison d’État do seu país. O que só pode provocar perplexidade: os cidadãos de uma das Democracias mais estáveis do mundo sentem-se compelidos pelo seu sistema político a manter-se em silêncio perante o sofrimento do povo palestiniano, vítima de enormes injustiças e violência, e são publicamente recriminados por não tomarem uma posição pública de defesa do povo judeu – sendo que a defesa do povo judeu é o argumento usado para tolerar os horrores que Israel está a provocar em Gaza. 

No fim, o mundo fica ainda pior do que está: os judeus têm medo de andar na rua, os muçulmanos têm medo de andar na rua, os civis de Gaza têm medo de ser bombardeados em casa ou alvejados na rua, têm medo de ficar doentes num território sem hospitais, têm medo da sede, da fome e das epidemias. Muitos cidadãos de países ocidentais têm medo de abrir a boca para protestar contra as injustiças e a violência, o Ocidente fica desacreditado como defensor do direito internacional, a extrema-direita ganha o seu euromilhões sem precisar sequer de jogar. E os reféns do Hamas continuam à espera da libertação, tal como esperam os menores palestinianos retidos indefinidamente em prisões israelitas sem serem levados a tribunal. Por todo o planeta cresce a sombra da morte e do ódio.  

 

***

Recentemente voltei a visitar o parlamento alemão, e desta vez fui especialmente sensível às cores nos quadros da série Treblinka, de Gerhard Richter. O pintor parte do preto e branco das fotografias do horror em Auschwitz, junta-lhes muito vermelho-sangue e termina a série com grandes manchas de verde. Preto, branco, vermelho, verde: a bandeira da Palestina. Não sei se era a intenção do autor, mas encontro nesta série de imagens um grito de alerta: a tragédia que atingiu o povo palestiniano é herdeira de Auschwitz-Birkenau. A responsabilidade histórica da Alemanha não pode ser apenas para com o povo judeu, mas também para com todos os que ainda hoje sofrem as consequências do Holocausto. 

Talvez esta mudança de perspectiva pudesse soltar finalmente o nó górdio da relação da Alemanha com Israel e com o povo palestiniano.  

Alemanha e Israel
Birkenau, 2014. Oil on canvas, 8 ft. 6 3/8 in. x 78 3/4 in. (260 x 200 cm). Private Collection. © Gerhard Richter

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