ilustração de Lia Ferreira

Ancient guilty apocalyptical pleasure

Foi com entusiasmo juvenil que me pus, há semanas, um pouco antes da bronca das partilhas de conta da Netflix, a ver o mais recente frisson de fast-food “histórica” (muito idêntica à original, isto é, gordurosa, nada nutritiva, cheia de emulsionantes e intensificadores de sabor, mas que devoramos avidamente e inundados de guilty pleasure): a série Ancient Apocalypse. Para quem não esteja bem a ver do que se trata, adianto que é uma série da autoria do jornalista britânico Graham Hancock, em oito episódios de produção Netflix. O que propõe? Uma completa reinterpretação do passado remoto da Humanidade. Mas já lá vamos.

Falo em “entusiasmo juvenil” porque devorei em tempos tudo o que era entulho deste calibre, desde o “fenómeno ovni” a toda a panóplia de teorias da conspiração, encontros imediatos, Roswell, alien autopsy e sei lá que mais. O meu subgénero preferido era, obviamente, o que fazia cruzamento com a História: as origens da Humanidade, os vestígios das visitas alienígenas, pirâmides, ilha de Páscoa, os deuses astronautas, Atlântida, caveiras de cristal e inúmeras “provas” de tanta coisa que não podia ter origem meramente humana.

A teoria dos “antigos astronautas”, em particular, sempre me fascinou. A ideia de que a Humanidade – ou, pelo menos, a civilização humana – tem origem extraterrestre, que os deuses e mitos da Antiguidade não são mais do que ecos da intervenção de seres de outro planeta, é irresistível. É toda uma construção sedutora que se adequa à nossa formação racional, material, empírica e sem mistérios esotéricos ou metafísicos. É Aristóteles a triunfar em pleno sobre Platão. Apenas motiva lunáticos e adeptos do Ancient Aliens ou do Giorgio Tsoukalos? Nem por isso. Basta ler o 2001: Odisseia no Espaço ou ver o filme homónimo: está lá a origem extraterrestre da racionalidade humana.

Misturava o meu interesse com Carl Sagan e O Mundo Misterioso de Arthur C. Clarke, comparava e apreciava tudo com um misto de espanto e crítica. Lentamente, aprendi a separar o trigo do joio, ou seja, especulação de realidade cientificamente comprovada, com algum desalento à mistura. Rapidamente percebi que as alegadas “provas” não têm consistência ou suporte científico. Por outras palavras, é uma mentira. Como diria o António Silva n’O Leão da Estrela, é só uma “mas é das gordas”. Porém, o maravilhamento não cessou, e mantive sempre aquele prazer pueril de, por breves instantes, dar largas à imaginação e colocar o “e se…?” à frente de tudo o resto. Assim, com um “prazer culposo”. E foi desta forma que me predispus a ver a série da Netflix, mais ou menos às escondidas e sem confessar a minha excitação ao meu eu-racional.

Por cá, Ancient Apocalypse foi traduzido como “Revelações Pré-Históricas”. É uma opção curiosa e infeliz, porque retira a carga ficcional de espanto e emoção do título original e tenta incutir-lhe credibilidade “histórica”. Bad karma, dudes. A espinha dorsal da série é, no essencial, a seguinte: ao contrário do que diz a historiografia/arqueologia mainstream (termo usado repetidamente e sempre num sentido pejorativo, quase insultuoso), os vários focos da civilização humana, nos diversos continentes, não emergiram de forma independente entre si, antes possuem uma origem comum: uma antiga civilização avançada que terá colapsado devido a um cataclismo global (daí o Apocalypse), algures por altura da última Idade do Gelo. Num único golpe, essa civilização desapareceu, mas alguns sobreviventes legaram o seu saber e conhecimento a outros povos que lhe sucederam. Alguns vestígios dessa antiga civilização ainda perduram, ocultos, disfarçados e à espera de quem os consiga interpretar corretamente. A tarefa do historiador/arqueólogo é, portanto, descobrir esses vestígios e interpretar os mitos e lendas que fazem eco daqueles eventos. A história/arqueologia mainstream reproduz velhos preconceitos e erros e recusa-se a aceitar qualquer hipótese, digamos, “alternativa”. No essencial, o que é ensinado acerca da emergência das civilizações humanas está errado. Posso eu subscrever tal pretensão? Claro que não, mas guilty pleasure é isso; quem resiste a um hambúrguer suculento destes? deixa mas é cá mergulhar mais uma batata no molho.

Eu sabia ao que ia: um caldo onde vagueia o predomínio da explicação simples sobre a complexa, a colocação metódica e oportunista da dúvida e da certeza ao arrepio das evidências científicas ou do bom senso, dramatização, seleção ou omissão de informações, ignorância, tudo isto temperado com convidados escolhidos a dedo e de credibilidade duvidosa. Numa palavra, uma técnica que se assemelha muito ao que o meu tio bate-chapas de automóveis me contava ser prática comum dos seus confrades menos escrupulosos: em vez de desamolgar o metal com trabalho árduo e moroso de martelo e maçarico, era mais fácil cobrir todas as mazelas com betume de pedra e pintar por cima. O cliente só via o produto final e parecia-lhe perfeito. Pois também tudo parece perfeito em Ancient Apocalypse. Está bem filmado, bem conduzido e bem argumentado e polvilhado com participação de cientistas aparentemente fiáveis (e não simples “autores” que dizem coisas entusiasmadas com ar lunático, como noutras séries). Mas que buracos, que amolgadelas, que corrosão revelaria um simples raspar do betume de pedra?

A resposta que inicialmente obtive a esta pergunta foi: “não sei”. Uma resposta carregadinha de queijo a escorrer da piza, em boa verdade, ainda que honesta. Não sou especialista naquelas temáticas, não disponho de dados suficientes para confirmar ou contradizer cada um dos casos apresentados, cada uma daquelas “provas” de que a arqueologia mainstream está errada, cada uma das interpretações de lendas e mitos, cada paralelo entre civilizações distantes que atesta a narrativa sedutora apresentada pelo ar diáfano de Graham Hancock. Bolas, eu sei lá o que foi o Younger Dryas e o que o causou. O que ali vejo e oiço acerca do assunto parece-me duvidoso, mas suficientemente sólido para me prolongar o interesse. Outros temas que me são um pouco mais familiares suscitam-me maiores interrogações, mas sou obrigado a reconhecer que nunca tinha ouvido falar de Ggantija, Cholula ou Gunung Padang. Se desconheço esta última (que fica em Java, nas minhas áreas de trabalho, vergonha das vergonhas) e Hancock conhece, pois esteve lá e tudo, não é natural que o meu ceticismo abra brechas?

É verdade que a molhanga começou a fazer-me azia e uma pesquisa básica revelou-me que os convidados são bem menos credíveis do que Hancock afirma e quer fazer crer, que há “saltos” explicativos nos momentos convenientes, que ele passa por cima de tudo o que não encaixa na sua narrativa. Ora, ora, isso faz parte do fascínio, este afastar de dúvidas maçudas, em estilo Isso-Agora-Não-Interessa-Nada da Teresa Guilherme, que diminuam o fulgor de uma exposição com conclusões-tcharan! Nada que dois goles na coca-cola e um par de arrotos não resolvam. Portanto, embora já antevendo a dor de barriga que aí vinha e sabendo que me atolava em terreno pantanoso a ver aquilo, não esmoreci.

Na verdade, a gula juvenil predominou até ao quarto episódio. A partir daí foi uma espiral descendente e uma gastrite que nem vos conto. Que acontece de especial no quarto episódio, chamado “Ghosts of a Drowned World”? Um argumento particularmente inverosímil, um erro imperdoável, um disparate monumental? Não. Provavelmente, a série está repleta de tudo isso, ao longo dos oito episódios. Mas neste em particular, o autor toca um assunto que conheço um pouco melhor, embora não seja a minha especialidade. Subitamente, um drrring! Em mais um raciocínio em estilo arrastão, Graham Hancock evoca a cartografia medieval e o célebre mapa de Piri Reis. Tanto ele como os seus convidados “especialistas” demonstram não deter o mínimo conhecimento sólido acerca do tema e toca, portanto, de expor ideias delirantes sobre o mapa, a sua origem e o seu significado, reproduzindo velhas balelas estafadas e a par de novas, como a representação da “estrada de Bimini” no mesmo. A abordagem é a de sempre, usada por tudo o que é “historiador alternativo”, de Erich von Däniken a Gavin Menzies (ou Peter Trickett ou José Gomes Ferreira noutros contextos): olhar para um mapa antigo e sobrepor-lhe imagens do Google Earth ou mapas atuais. As conclusões são sempre tão mais gratificantes – para o autor – quanto arbitrárias e disparatadas.

Este momento desvaneceu, subitamente, o encanto voyeur que, até então se sobrepunha a tudo o resto e me fez ignorar o crescente desconforto. Já não havia pleasure, só guilt. Caso inédito? Nem por isso. Na verdade, todos nós fazemos o mesmo: transigimos facilmente na cientificidade alheia mas somos rigorosos na própria, quando nos afeta um nervo sensível. Um médico nunca aceitaria curar uma maleita com rezas e superstições, mas pode recorrer à astrologia para resolver incertezas da sua vida íntima; já um físico não admite que uma conjunção astral determine os destinos da Humanidade, mas é capaz de ir ocasionalmente a um homeopata ou de tomar um detox recomendado por algum influencer. Quem sou eu para lhes atirar a primeira pedra, se eu próprio me encantei com a série e disponibilizei mais tempo para ver o que sabia, de antemão, ser um logro “histórico”, do que para ler informação fidedigna sobre pré-História, Neolítico, alterações climáticas do final do Pleistoceno ou qualquer dos conjuntos monumentais mostrados em Ancient Apocalypse?

Ancient Apocalypse é apenas uma série. Contudo, o sucesso que obteve faz parte de uma tendência preocupante dos nossos dias: a do crescente fogo cruzado a que o conhecimento científico está sujeito. Como afirma um artigo do The Guardian, a série “sussurra para o teórico da conspiração que existe em cada um de nós” e constitui “o programa mais perigoso da Netflix”. Qual o perigo? Numa palavra, o seguinte: é mais um sinal de que as ideias pseudocientíficas saíram dos pequenos núcleos onde estiveram acantonadas durante décadas e ganharam visibilidade, difusão e, sobretudo, credibilidade.

As teorias dos “ufólogos” que fizeram as delícias da minha juventude estavam disponíveis em obras obscuras, como Os OVNI e os Extraterrestres na História, editada pelos Amigos do Livro nos anos 70. Nunca seria publicado, por exemplo, no Círculo de Leitores; hoje, provavelmente, sê-lo-ia sem que ninguém pestanejasse. Sim, von Däniken e outros eram mundialmente conhecidos, mas o seu sucesso limitava-se a um círculo de fãs e adeptos. Já na atualidade, o Canal História emite, com sucesso mundial, temporadas sucessivas de Ancient Aliens e The Curse of Oak Island e, como se vê, a própria Netflix produz e promove Ancient Apocalypse com a etiqueta de “documentário” e “história”. E por cá? Bom, os livros de José Gomes Ferreira são publicitados na televisão – sem contraditório – e constituem sucessos editoriais, e as teorias do “Colombo Português”, dos “Templários” e de tantos outros “mistérios” e “segredos” continuam a proliferar nos escaparates. Noutro registo, quiçá mais preocupante, o grande “ufólogo” português (agora transmutado em “historiador”) tem o seu perfil e produção listada na página do mais famoso centro de ciência nacional (onde, aliás, teve um dos seus livros apresentado pelo respetivo diretor). Não posso dizer, portanto, que o otimismo me invada.

A banalização da pseudociência é geral e, naturalmente, não se circunscreve à História: o que era “disparatado” passou a “alternativo”, palavra mágica que encobre sem distinção modas e embustes, betume de pedra que tapa de igual forma entretenimento, placebos, fraudes e mentiras perigosas. Quem se lembra da recente pandemia que o diga. Há algum problema que estas dimensões “alternativas” existam? Não. O problema não é a sua existência, é a sua disseminação e a forma como se mina a ciência, como dois lunáticos no Youtube corroem impunemente e com milhões de visualizações, o esforço de décadas, quando não séculos, de trabalho sério e rigoroso de gerações de cientistas.

Nunca como hoje a ciência foi posta em causa, nunca como agora o negacionismo anticientífico esteve tão visível e normalizado, desde o renascimento das “teorias da Terra Plana” até ao movimento antivacinas, passando pela promoção de tudo o que é “conhecimento alternativo” nos canais de televisão, na internet e nas redes sociais. Produtos homeopáticos são vendidos nas farmácias, não é verdade? E porque não, se tanta informação é por aí disponibilizada apelando ao consumo do que é “natural” em vez do que tem “químicos”? A receita é idêntica em vários domínios: há uma ciência “convencional” feita por corporações gananciosas e sem rosto, académicos cinzentos, quantas vezes cobardes, coniventes ou vendidos às multinacionais ou, ainda, politicamente reféns, cujos produtos contêm riscos, dúvidas e incertezas; e há as “alternativas”, com rosto, dirigidas a cada um, descomprometidas, corajosas, que “dizem as verdades”, dão respostas a dúvidas e anseios e propõem soluções humanas e aceitáveis.

O trabalho de Graham Hancock cumpre o seu papel nesta estratégia de corrosão global e de retirada de crédito à comunidade científica. Como o faz? Da forma expectável, insinuando que os historiadores/arqueólogos perpetuam – conscientemente, por interesse, preguiça ou puro preconceito – erros e omissões, ora não aceitando “novas abordagens”, ora ignorando dados e pesquisas. Apresenta toda uma teoria que desvenda um grande segredo oculto, que é preciso descodificar e que responde a dúvidas, incertezas e sombras sobre o nosso passado; uma proposta “alternativa”, isto é, nova, fresca, descomprometida e atualizada, em oposição ao conhecimento enquistado e cinzento do meio académico convencional, numa palavra, mainstream, vocábulo a meio caminho da infâmia. As suas teses não são reconhecidas? Apenas pela tal ciência mainstream; o sucesso da série, dos seus livros e das suas palestras prova o oposto. E, podemos perguntar, que valerá mais, a opinião de meia dúzia de arrogantes conformistas que se acham donos da verdade ou o peso democrático de milhares de cidadãos inteligentes, abertos e informados?

Como digo acima, há um momento ideal para a reflexão sobre estes assuntos; aquele em que deixa de haver pleasure e fica só o guilt

 

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Ilustração de Lia Ferreira

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