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As Lentes da História

Há fascínios que vêm de criança. O meu, por História, começou pelos impérios da Antiguidade, mais especificamente por Roma, romanos e Império Romano. Não havia então internet mas havia Astérix. Comprei o primeiro álbum (“Astérix Gladiador”, ed. Bertrand) em 1974, na Papelaria Mimo em Mem-Martins, hoje desaparecida. Outros se seguiram. Custavam 75$00 e ainda os tenho todos. Vi o Ben-Hur e o Quo Vadis vezes sem conta, no cinema da Praia das Maçãs. Era um fascínio geral, mas com um interesse particular pela história política do império e, como se espera aos 7 anos, pelas legiões romanas. Não me incomodava que os romanos fossem os antagonistas dos heróis gauleses da banda desenhada e invariavelmente estúpidos, gananciosos ou ridículos. E não me impressionava a brutalidade das conquistas reais, a opressão sobre os povos dominados, a crueldade dos castigos, das represálias e as crucificações. Já então considerava que a História é o que foi. Mas causava-me alguma perplexidade a forma como, por cá, os romanos eram maus porque usaram manhas e traições para abater o herói Viriato e assim subjugar os lusitanos – pois de outra forma não o conseguiriam, decerto – mas rapidamente passaram a bons porque trouxeram as estradas, os aquedutos, a paz e a prosperidade. Sim, tal como na célebre cena de A Vida de Brian onde se discute “o que fizeram os romanos por nós?”. Percebi mais tarde que a explicação era simples: eram maus enquanto nossos antagonistas, bons quando nós passámos também a ser romanos. O papel de maus foi então transferido para outros povos, primeiro bárbaros, depois árabes, turcos e sei lá quem mais.

Partilhava esse interesse com um colega de escola, mas ele inclinava-se mais para vikings, celtas e godos. Era certamente menos conformista e mais romântico do que eu, pois preferia a bravura individual, anárquica e rebelde dos guerreiros bárbaros à eficácia da máquina de guerra romana. Mas numa coisa estávamos de acordo: tudo o que não era romano, nórdico ou germânico pouco mais merecia do que desinteresse e desdém. Império Persa? Império Assírio? Egito? Árabes? Otomanos? Tudo gente mais ou menos folclórica e decadente, com nomes estranhos. E quanto a Índia, China, civilização inca? Coisas remotas e exóticas. Nenhuma pirâmide ou Taj Mahal fazia sombra ao brilho e glamour de Júlio César, Armínio ou Rolão. Era um olhar simples sobre o passado: o nosso ofuscava todo o restante. Eu tinha 12 anos e andava no Ciclo Preparatório.

Estas memórias de infância reemergiram pouco antes do início do Mundial no Catar, quando o presidente da FIFA Gianni Infantino falou na conferência de imprensa de abertura. As suas observações sobre a hipocrisia da Europa foram muito comentadas, mas uma pequena frase parece ter passado despercebida: “Pelo que nós, europeus, fizemos nos últimos três mil anos, por todo o mundo, devíamos pedir desculpa nos próximos três mil anos antes de darmos lições morais aos outros”. Ah nós, europeus…

A frase foi proferida com aquele tom pungente e dramático de quem está a reparar uma injustiça universal. Podia ter saído da boca de um puto da Escola Preparatória Visconde de Juromenha (como eu era) ou de um dirigente de um clube desportivo de bairro, em conversa de café. Mas não. Foi proferida por Gianni Infantino, poderoso presidente da poderosa FIFA. Ecoou, portanto, à escala planetária, amplificando uma ideia que se vai tornando banal: que pende sobre os “europeus” um lastro de culpa, pesado e antigo, que lhes retira legitimidade para emitir juízos acerca dos outros. Em português vernáculo, chama-se a isto “ter – ou não – moral para falar”. Infantino é italiano e dirige uma instituição criada e sediada na Europa, mas o que lhe falta em legitimidade para questionar as opções da FIFA sobra-lhe, pelos vistos, para fazer tiradas moralizantes sobre História. Eu falo sobre História desde os tempos do Astérix, mas não sobre futebol e é por isso que não me apanham a comentar jogos, mas cada um sabe a que figuras se presta.

A frase de Infantino é um minúsculo tratado de miopia espácio-temporal que esbate contrastes e contornos e mistura e funde tonalidades numa névoa indistinta e cinzenta; uma miopia de espaços, ao falar de “europeus”, e de tempos, ao espraiar-se num horizonte passado de três milénios. Além de projetar um juízo moral sobre os próximos três, claro. Ora vamos lá pegar no cutelo e desossar a peça.

O “últimos três mil anos” levou-me a rever as cronologias da Antiguidade arrumadas há muito na minha memória. Embora seja provável que tenha atirado o primeiro número que lhe veio à cabeça, pode assinalar-se, de facto, a turbulência e a instabilidade ocorridas na viragem para o I milénio a.C., no fim da chamada Idade do Bronze. Há três mil anos, portanto. Prova em como o barro atirado à parede às vezes pega.

Tempo e espaço. Num período tão longo como “os últimos três mil anos”, falar em “europeus” é impreciso e incongruente. Na verdade, o berço do que mais tarde se convencionou chamar “Ocidente” ou “civilização ocidental” (pois é aí onde Infantino quis chegar) não foi exatamente a Europa, mas sim o Mediterrâneo, que une – e não separa – Europa, Ásia e África e que se projeta para o Mar Vermelho e para o Golfo Pérsico. O Egito, a Grécia, a Ásia Menor, a Pérsia ou o “Crescente Fértil” são núcleos civilizacionais que partilham a mesma matriz mediterrânica. Eram todos iguais? Depende da lente que usamos. Na verdade, pouco os distinguia, se observados a uma escala maior e considerados a par de outros: Índia, China, África Central, México e Peru, por exemplo.

Da mesma forma, o judaico-cristianismo é uma religião mediterrânica, tal como o é o islão, a sua extensão e desenvolvimento mais importante. Ironicamente, apesar dos elos essenciais que as unem e de terem ambas nascido na mesma margem do Mediterrâneo, tornaram-se avatares e símbolos de uma oposição entre “Ocidente” e “Oriente”. Novo problema de lente, uma vez mais: onde colocar, então, o hinduísmo, o budismo, o taoismo, os animismos africanos ou os xamanismos americanos? Um carvalho é muito diferente de um sobreiro até ao dia em que alguém compara ambos com um cato, não é verdade? Nesta abordagem enviesada incorreram muitos e respeitáveis autores por lhes faltar, precisamente, uma perspetiva mais ampla de comparação e análise. O caso mais evidente é o de Edward Said na sua crítica ao “orientalismo” europeu já que, entre outras mazelas, se centrou demasiado num “Oriente” específico, o do Médio Oriente árabe-islâmico, numa abordagem que perde pertinência quando se alarga o escopo de análise para fora deste palco. A crítica de Robert Irwin no seu For Lust of Knowing é clara e pertinente a este respeito. No mesmo risco incorre, por consequência, o némesis de Said, Bernard Lewis. Algo de semelhante pode também ser dito acerca de Anthony Pagden quando fala em “mundos em guerra” e nos “2500 anos de conflito entre o Ocidente e o Oriente”.

Inúmeros conflitos marcaram o espaço mediterrânico ao longo dos séculos. Aqueus micénicos vs. troianos, gregos vs. persas, romanos vs. cartagineses, são alguns exemplos clássicos dos antagonismos da Antiguidade. Contudo, foram guerras e tensões que decorreram no interior do mesmo quadro civilizacional. Exceções? Há uma notável, a das campanhas de Alexandre da Macedónia no subcontinente indiano, para lá do Império Persa e do Hindu Kush. Sim, para Infantino fazer sentido, os primeiros europeus a pedir desculpa deveriam ser os gregos aos paquistaneses.

O padrão repetiu-se em épocas posteriores. O Império Romano nasceu na margem norte do Mediterrâneo e expandiu-se naturalmente em seu redor, até onde lhe foi possível. O islão árabe nasceu na sua margem oriental e galgou para norte na Península Ibérica e na Ásia Menor, até aos Balcãs. As Cruzadas foram um movimento no sentido inverso, que assolou tanto os antagonistas muçulmanos como os – supostos – aliados cristãos do Império Bizantino. Ironicamente, uma das ameaças externas a este mundo mediterrânico proveio da própria Europa: as incursões escandinavas que assolaram as populações costeiras das Ilhas Britânicas até à Sicília e ao Mar Negro e que atacaram Paris e Constantinopla. Por fim, há que não esquecer uma outra, bem mais devastadora, que teve origem no extremo oposto da Eurásia e que semeou o terror a ocidente, sobretudo no mundo muçulmano: as invasões mongóis do século XIII, que dizimaram populações inteiras (c. de 10 por cento da população mundial, segundo alguns cálculos) e causaram um grau inédito de destruição. Foi uma das maiores hecatombes da História causadas por mão humana. Escuso-me a desenvolver a pergunta lógica, embora cínica: onde estão as exigências aos mongóis para pedidos de desculpa pela devastação causada pelos seus antepassados?

A frase de Infantino menciona o que fizeram os europeus “por todo o mundo” e não apenas na Ásia. Foi um pouco mais tarde que, de facto, várias nações europeias – com Portugal na vanguarda – extravasaram, por via marítima, os limites do espaço civilizacional mediterrânico. Este processo deu origem a novos impérios, primeiro marítimos e mercantis, depois propriamente coloniais. Suspeito que era aqui onde Infantino queria chegar, isto é, mencionar “quinhentos anos” e não três mil e referir-se, mais especificamente, à conquista espanhola do Novo Mundo, ao tráfico atlântico de escravos e ao colonialismo moderno europeu.

Também aqui há coisas a dizer e correções de lentes a fazer, não tanto de focagem mas de refração. Deixo apenas duas. A primeira é a necessidade de reduzir às suas dimensões reais o poder e o protagonismo dos europeus nos dramáticos processos de mudança que tiveram lugar por todo o mundo nos dois séculos subsequentes a Colombo, Gama e Magalhães, retirando a carga de supervilões (que vai alternando com a tradicional, em sentido inverso, de super-heróis) que lhes está associada: por exemplo, um Hernán Cortés que conquistou um império com trezentos soldados ou um punhado de portugueses que escravizaram meia-África graças às suas armas de fogo. Para o primeiro caso, é de relembrar que os espanhóis não teriam conseguido abater o Império Mexica (ou Asteca) sem o apoio de aliados locais (nomeadamente os tlaxcala), ferozes inimigos daquele, de quem Cortés obteve informações, logística, opções estratégicas e, sobretudo, tropas. É ler Henry Kamen e os seus estudos sobre o Império Espanhol. O segundo exemplo é bem mais delicado porque toca uma das feridas ainda mal cicatrizadas da consciência histórica europeia, o tráfico atlântico de escravos. É, porém, evidente que não era possível aos portugueses – e aos seus sucessores esclavagistas – apropriar-se da vida e reduzir à escravatura tantos milhares com umas dezenas de soldados munidos de arcabuzes, sem a participação ativa, interessada e cúmplice das elites africanas. O historiador John Thornton tem trabalhos interessantes acerca do assunto. Em ambos os exemplos, é preciso reduzir às suas reais dimensões o espaço de manobra e o impacto do poder militar dos europeus, sem que tal diminua o seu oportunismo, ganância e brutalidade. Considerações idênticas poderiam ser proferidas acerca da amplitude das ações europeias na Ásia: é tempo de retirar reinos, elites, comunidades e agentes asiáticos do seu papel anónimo de meros espetadores passivos e de lhes devolver o protagonismo, a iniciativa e a atividade historicamente comprovados. 

O segundo reparo a fazer é o de corrigir a cronologia: o domínio europeu do mundo não tem quinhentos anos, mas pouco mais de um século. Foi no contexto da chamada “segunda expansão europeia”, já no século XIX, que as potências europeias se lançaram efetivamente ao assalto da Ásia e de África, com toda a panóplia de protetorados, tratados de submissão (ainda hoje chamados de “desiguais” na China, por exemplo), administração direta de territórios e de populações inteiras, repartição de despojos e de áreas de influência entre si, delimitação e traçados de fronteiras, tudo sob a capa ideológica da “pacificação” e da missão de “civilizar” povos considerados atrasados, inferiores ou primitivos. Curiosamente, foi pela mesma altura que o continente americano se eximiu a este processo e alcançou a sua autodeterminação e que emergiram novas potências imperialistas não-europeias: o Japão e os EUA.

Ainda assim, a hegemonia mundial da Europa durou pouco. Menos de duas décadas depois do seu apogeu, na viragem para o século XX, as potências europeias envolviam-se numa guerra para a qual arrastaram o mundo inteiro. Não deixa de ser curioso que os dois conflitos mais mortíferos da História e que mereceram o epíteto de “guerras mundiais” tenham deflagrado na Europa e entre potências europeias e, ainda, que tenham tido como epílogo mais visível o abate definitivo do domínio europeu sobre o mundo.

Estamos, portanto, conversados sobre o que os “europeus fizeram nos últimos três mil anos”. Resta o “pedir desculpa antes de darmos lições morais aos outros”. O raciocínio de Infantino é simples, embora pouco ingénuo – ao contrário das minhas memórias de infância – e ardiloso. Os europeus, pelo que fizeram, não podem dar lições de moral, nem ao mundo nem especificamente ao Catar. Contudo, as democracias europeias são o mais resiliente baluarte de defesa dos Direitos Humanos contra a maré de assalto às liberdades individuais, de populismo e de intolerância que avança por todo o mundo, alguém duvida? Mas não pode, diz Infantino. Quem poderá, então? Melhor, quem sugerirá que o faça? 

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