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Astória

Não serão abundantes as palavras que suscitam reações tão desiguais e desconcertantes como a palavra História. Há quem a idolatre, a invoque ex cathedra ou a ostente na lapela; alguns usam-na como simples adereço ou adorno descartável, muitos minimizam-na ou ignoram-na. Para não falar de quem a despreza ou renega. Uns consideram que o seu peso é incomensurável, outros ligeiro, outros ainda, irrelevante. Depende. Como pode algo desprovido de massa ter pesos tão distintos? A História é igualmente dotada de incomparável maleabilidade e ductibilidade. Nada se adapta e ajusta melhor a qualquer objetivo e intenção, nada se presta tanto a usos, abusos e falsificações como a História. De extrema utilidade e inútil, ao mesmo tempo.

A História é tão frequentemente invocada como raramente definida. Quem a chama à liça poucas vezes esclarece do que está exatamente a falar. Porque é mais do que uma coisa. Um professor – que mais tarde largou a FLUL e atalhou pela carreira autárquica, versão CDU Oeiras – relembrou isso mesmo à turma de caloiros onde me encontrava, há muitos anos: a História é, simultaneamente, “o passado das sociedades humanas e a ciência que estuda esse passado”. Assim é, de facto. Para início de história (ups!) não estamos mal.

Ora, se a História é o passado, a ciência que a estuda não deveria chamar-se assim, mas outra coisa. Sempre seríamos poupados a não poucos equívocos; talvez historiologia (“a ciência que estuda a História”), à semelhança de outras disciplinas científicas, não? E os historiadores de historiólogos. Talvez não seja boa ideia, afinal: o conceito de historiologia já existe e designa algo diverso: segundo a Wikipédia, “os estudos acerca do trabalho feito pelo historiador, ou seja, a escrita da História”. Portanto, a historiologia estuda aqueles que estudam a História. Para aumentar a confusão já vamos bem lançados. Mas façamos de conta que não é assim.

É uma ciência peculiar, essa, a única cujo objeto de estudo é inacessível e não pode, portanto, ser observado, analisado ou testado. O passado foi-se de vez. O que resta dele são vestígios truncados e enviesados, nem sempre inteligíveis e de natureza e valor desiguais, a partir dos quais se induz e deduz, se compara e reflete, tentando reconstituí-lo ou compreendê-lo. Juntar pedaços de informação e interpretá-los, em suma, e sem manual de instruções claro e coerente, a maior parte das vezes. É uma tarefa ingrata e cheia de armadilhas, em risco permanente de erro e desatualização e que exige uma capacidade crítica sólida. Uma ciência deficiente, incompleta e muito pouco exata. Mas é a possível.

Há o passado e o seu estudo científico, mas ambos escapam a boa parte das evocações, alegações e juízos sobre a História. Estes incidem sobre algo diverso, aparentado e sucedâneo, facilmente confundido com o passado ou o seu estudo, mas diferente. Não é historiologia, ciência histórica. Não é o passado, algo difuso e amorfo que já se dissipou. Não é História, história ou estória. É outra coisa. Chamemos-lhe Astória.

Astória é, essencialmente, uma ilusão de História. Trata-se, em primeiro lugar, de uma narrativa ordenada e coerente, que desejamos ou que consideramos verdadeira. É neste sentido que se fala – e se discute, afirma ou nega – a necessidade ou o perigo, consoante o ponto de vista, de “rescrever a História”, como se esta fosse um pergaminho sagrado ou Tábuas da Lei escritas a fogo, uma verdade consagrada que alguns querem adulterar ou, pelo contrário, velhos dogmas ultrapassados que é preciso demolir e atualizar. Contudo, como o passado não se escreve e a historiologia assenta, essencialmente, numa capacidade crítica e interpretativa, não é História. É Astória.

Em segundo lugar, Astória configura um exercício de empatia, uma espécie de recetáculo de emoções, medos, desejos e preferências. O seu exercício mais elementar ocorre, por exemplo, quando vemos ficção histórica, na qual deparamos com um enredo que achamos que procede da História mas que não passa d’Astória. Os seus atores são imediatamente identificáveis: heróis e vilões, bons e maus. Os que realmente importam são aqueles com quem nos identificamos, por quem torcemos e que esperamos que sejam bem-sucedidos. É o nosso lado, que nem sempre é o lado daqueles que nos são semelhantes. Estes, por vezes, são os vilões. Quando isto ocorre, Astória transforma-se numa catarse, numa expiação, num consolo moral. Dances With Wolves (1990) ou Avatar (2009) são bons exemplos da inversão dos papéis tradicionais transmitidos pelos westerns clássicos de Hollywood. Mas o mecanismo é o mesmo: estamos do lado dos bons, quer se trate do pistoleiro ou soldado personificado por John Wayne ou Errol Flynn, num caso, quer sejam os Sioux ou os Na’vi, no outro. Como veremos adiante, o mesmo ocorre na dimensão coletiva d’Astória.

Astória penetra e funde-se na vivência do quotidiano e nos gostos e preferências pessoais. Neste sentido, projeta no passado preocupações, sensibilidades e modas do presente, algo visível não apenas na imagem animada, no cinema ou nos conteúdos televisivos, mas também na literatura. O consumo maciço e o sucesso de obras sobre mistérios e segredos desvendados, tesouros, factos escondidos e História alternativa está aí para o provar. Some-se a produção abundante sobre escândalos e episódios íntimos – para não dizer coscuvilhices de alcova – da nobreza ou da realeza, conspirações e tramas, aventuras, perversões dos famosos de épocas diversas ou narrativas biográficas de personagens individuais, nomeadamente os que estiveram “à frente do seu tempo” ou alteraram “o rumo da História”.

Um dos aspetos mais relevantes d’Astória é o seu sentido pedagógico e moralizante, por identificar o que é bom e o que é mau ou, de modo mais certeiro, quem é bom e quem é mau. Algumas expressões célebres afirmam-no de forma clara: quando alguém refere “o lado certo [ou errado] da História” não está a falar do passado (que não tem lados), está a proferir um juízo subjacente a uma narrativa selecionada, construída e disposta segundo um sentido moral. Algo idêntico aplica-se às “lições da História”, aos “ventos da História” ou, de modo ainda mais flagrante, à célebre tirada de Fidel Castro, “a História absolver-me-á”. Aqui aproximamo-nos de um outro sentido, o de História como evolução humana (e o que a faz mover), envolvendo o passado, o presente e o futuro, seja a Providência, as Ideias ou as condições materiais e as contradições das sociedades humanas. Voltemos à Astória.

Astória é também uma construção mental baseada em afinidades e traços identitários, reais ou imaginados, que constitui um poderoso elo de ligação entre o passado e o presente. Esta feição (e função) é claramente assumida quando extravasa a esfera pessoal – que ocorre quando assistimos a um filme histórico, como se viu acima – e agrega um coletivo: fala-se com alguma frequência “na História que nos une”, ainda que essa união seja, a maior parte das vezes, meramente retórica ou simbólica ou, mais frequentemente, imaginária. Astória une, mas também separa. Divide mais do que une, na verdade. Marca os limites entre nós e os outros e as respetivas trajetórias no tempo. Trajetórias paralelas são desinteressantes; já quando se cruzam, Astória assume a sua feição mais comum: a de uma narrativa identitária coerente acerca de um coletivo, plena de juízos e devidamente apetrechada de argumentos e justificações.

Os mecanismos desta dimensão coletiva d’Astória são idênticos aos da escala individual – sim, como no enredo de um filme – já mencionados: complexidade elementar, raciocínio simples, clareza explicativa, baixo nível ou ausência de contradição, de dúvida ou de recuo. Esta dimensão coletiva existe em diversas escalas, ao nível familiar, local, clubístico ou de outra tribo a que cada um pertence. A mais comum é, contudo, a nacional. Assim se afirma – melhor, afirmamos nós – que somos (ou não somos) isto e aquilo, nomeadamente “tolerantes”, “abertos” ou “um povo de navegadores”. Uma das minhas tiradas favoritas é a da “vocação universalista dos portugueses”. Provas? Ora, ora, basta ir à História (na verdade, Astória). E somos X e Y isoladamente? Não. Somos, melhor dizendo, fomo-lo (porque Astória remete para o passado) no contacto e em contraste com outros. Melhores do que outros, claro. Tal como o herói do filme com que individualmente nos identificamos, se cometemos atos reprováveis, é porque a isso fomos forçados ou porque tivemos motivos e justificações para tal, mas redimimos os erros cometidos. Ou ainda – e este é o derradeiro argumento – foram apenas pormenores porque o resultado final, o quadro geral, diluiu e suplantou largamente estes percalços. Acidentes de percurso, pequenos detalhes de um quadro amplo. Os outros, claro está, pensam de modo diverso e produzem raciocínios inversos. Também eles têm a sua própria Astória.

Os outros são os que se cruzaram connosco. Como disse acima, trajetórias paralelas são desinteressantes. Que há a dizer acerca de portugueses e tadjiques, por exemplo? Ou letões, apaches, núbios, tártaros ou quéchuas? Nada de muito interessante, decerto. Já sobre outros europeus, asiáticos e africanos, o panorama é bem diferente. Não preciso de ir mais longe, pois não? Astória gere as realidades complexas do passado escolhendo pedaços e episódios, que depois simplifica, conecta e reduz a receitas, chavões e bitaites. Mais importante, consagra heróis e mitos, remove arestas da memória coletiva, elimina ou redime mazelas e alivia a consciência do grupo. Naturalmente, este processo pode também ocorrer no sentido oposto, tornando-se, nesse caso, num veículo de culpa e expiação. Depende do modo como Astória se ajusta a preocupações, causas e militâncias atuais, isto é, como busca no passado respostas para tensões e interrogações do presente. A sua convergência com a História é periclitante e geralmente frágil e a sua relação com a historiologia é problemática e gera debates e controvérsias prolongadas. Tudo depende, em suma, da identificação dos bons e dos vilões, tal como ocorre à escala individual numa ida ao cinema. 

Moral d’Astória? Dava um filme. Muitos, aliás. 

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