A mais trágica e bela estação
Boa Vida
Marta Lança

A mais trágica e bela estação

1. Fim de junho, a camioneta dá entrada na gare de Campanhã, os motores desligam enquanto atendo o telemóvel. É o número da minha mãe, mas surpreende a voz do senhor Manel. “A mãe caiu no corredor do prédio”, ouço os uivos de dor por detrás da voz sóbria do porteiro. Uns dias antes, a voz era a da própria a contar, orgulhosa, das caminhadas com amigas pelas belezas frondosas das ilhas Flores e Corvo,

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Rebentou o pneu e a guerra
Boa Vida
Marta Lança

Rebentou o pneu e a guerra

1. Manhã de fevereiro de 2022. Dou um beijo à filha ao pousar a mochila da Dora aventureira à porta da escola: «Hoje é o pai que te vem buscar. Boa semana. Adeus querida.» Ontem observei-a a desenhar rodeada de crianças. Viu-me e mostrou-me o desenho, uma montanha ou um vulcão, pareceu-me. Mas era «uma menina com vestido gigante.» A colega insistia: «queres vir brincar a minha casa?» – é uma coisa que elas dizem

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Em frente ao vulcão, baleias vivas e mortas
Boa Vida
Marta Lança

Em frente ao vulcão, baleias vivas e mortas

1. Em 1988, a família rumava ao Faial. O pai contratado para construir a Assembleia Regional, a mãe colocada numa escola secundária ao lado da minha preparatória, o irmão na primária. A casa arrendada ficava no topo da cidade da Horta. Aliás, era uma quintinha: portão, carro sob parreiras, jardins descuidados, ou principescos, depende do grau de fantasia, de onde surgiam fontes de pedra e uma moradia elegantemente decadente. Havia vacas, gatos e cães açorianos.

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O empadão de esparguete dos avós em Benfica
Boa Vida
Marta Lança

O empadão de esparguete dos avós em Benfica

1. O avô morreu na passagem de ano de 2007-8. O meu pai passou a noite, mão na mão, com o seu pai. Apesar de já ter visto esta imagem milhares de vezes, não sei exatamente o que será consolar alguém nos momentos finais. Menos ainda sei o que é morrer. Quando os avós desaparecem dá-se a nossa primeira orfandade, dizem. Perde-se o vínculo aos últimos representantes próximos de universos e referências que demonstram a

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A varanda da Maianga
Boa Vida
Marta Lança

A varanda da Maianga

1. “Sete e Meio”, assim ficou conhecido o apartamento na Maianga, em Luanda onde, entre 2005 e 2007, morei com artistas angolanos, Orlando, Kiluanji, Ihosvanny, Yonamine, Francisca e o bebé Njamy, os mais perenes, outros em temporadas de média duração[1]. Ficava num sétimo andar (e meio), num prédio de arquitetura moderna, semelhante aos edifícios da Avenida Estados Unidos da América, em Lisboa, mas degradado pela passagem do tempo e negligente manutenção. Bem localizado, dali podíamos

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“Quem vendeu a minha pátria?”
Sociedade
Marta Lança

“Quem vendeu a minha pátria?”

1. A certa altura do governo Sócrates, por via das robustas bolsas INOV-Art*, houve debandada de jovens do setor cultural. Como o país não tinha (tempo verbal hesitante) muito para oferecer a esta gente, a atriz Beatriz Batarda esteve bem quando, no lançamento oficial do programa, aconselhou os bolseiros: “Vão e não voltem”. Então, de Nova Iorque ao Cairo, em versão culti do programa “Os Portugueses no Mundo”, ei-los que partiam novos, e de facto

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Aprendo depressa a chamar-te de realidade. Carta de São Paulo
Boa Vida
Marta Lança

Aprendo depressa a chamar-te de realidade. Carta de São Paulo

Em 2017 passei uma temporada em São Paulo, 20 anos após ter vivido em Paris, um ano e pouco antes do desastre Bolsonaro, entre o impeachment da Dilma e o golpe baixo do Lula preso. Escrevia-se e gritava-se muito “Fora Temer”, o ambiente era politicamente sinistro, não imaginava que podia piorar tanto.  1. Troca de casas entre amigas, apartamento em espelho Penha de França vs. Santa Cecília, com quarto e brinquedos para criança e livros

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Le Piano Vache
Boa Vida
Marta Lança

Le Piano Vache

1. Percorri o solo europeu sobre os carris do interrail, ainda a Chéquia se chamava Checoslováquia. E em 1997, saí do ninho lisboeta para o Erasmus em Paris. Quem podia — a bolsa mal chegava para pagar a renda — erasmava, era parte do ritual de iniciação “devir europeu”. Ter 21 anos em Paris foi um embate de geopolítica existencial, um momento fundador no património de mundividência e ceticismo. Apresentou-me a ambivalente digestão de uma

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Crónica do Mindelo com uns Anos de Atraso
Sociedade
Marta Lança

Crónica do Mindelo com uns Anos de Atraso

1. Em 2004 aterro, com curiosidade e disponibilidade, na ilha de São Vicente, Cabo Verde. Tenho 28 anos, convencida de que a alegria, inclusive a excentricidade, fermentam numa ilha, ainda que árida. Os dedos abrem-se a novos ventos e areias. Já vivi nos Açores e reconheço o poder transformador das ilhas, o seu horizonte incerto, contingente e criativo; a sua beleza presidiária. Num pedaço de terra de meio habitante por quilómetro quadrado, onde os primos

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A mais trágica e bela estação

A mais trágica e bela estação

1. Fim de junho, a camioneta dá entrada na gare de Campanhã, os motores desligam enquanto atendo o telemóvel. É o número da minha mãe, mas surpreende a voz do senhor Manel. “A mãe caiu no corredor do prédio”, ouço os uivos de dor por detrás da voz sóbria do

Rebentou o pneu e a guerra

Rebentou o pneu e a guerra

1. Manhã de fevereiro de 2022. Dou um beijo à filha ao pousar a mochila da Dora aventureira à porta da escola: «Hoje é o pai que te vem buscar. Boa semana. Adeus querida.» Ontem observei-a a desenhar rodeada de crianças. Viu-me e mostrou-me o desenho, uma montanha ou um

Em frente ao vulcão, baleias vivas e mortas

Em frente ao vulcão, baleias vivas e mortas

1. Em 1988, a família rumava ao Faial. O pai contratado para construir a Assembleia Regional, a mãe colocada numa escola secundária ao lado da minha preparatória, o irmão na primária. A casa arrendada ficava no topo da cidade da Horta. Aliás, era uma quintinha: portão, carro sob parreiras, jardins

O empadão de esparguete dos avós em Benfica

O empadão de esparguete dos avós em Benfica

1. O avô morreu na passagem de ano de 2007-8. O meu pai passou a noite, mão na mão, com o seu pai. Apesar de já ter visto esta imagem milhares de vezes, não sei exatamente o que será consolar alguém nos momentos finais. Menos ainda sei o que é

A varanda da Maianga

A varanda da Maianga

1. “Sete e Meio”, assim ficou conhecido o apartamento na Maianga, em Luanda onde, entre 2005 e 2007, morei com artistas angolanos, Orlando, Kiluanji, Ihosvanny, Yonamine, Francisca e o bebé Njamy, os mais perenes, outros em temporadas de média duração[1]. Ficava num sétimo andar (e meio), num prédio de arquitetura

“Quem vendeu a minha pátria?”

“Quem vendeu a minha pátria?”

1. A certa altura do governo Sócrates, por via das robustas bolsas INOV-Art*, houve debandada de jovens do setor cultural. Como o país não tinha (tempo verbal hesitante) muito para oferecer a esta gente, a atriz Beatriz Batarda esteve bem quando, no lançamento oficial do programa, aconselhou os bolseiros: “Vão

Aprendo depressa a chamar-te de realidade. Carta de São Paulo

Aprendo depressa a chamar-te de realidade. Carta de São Paulo

Em 2017 passei uma temporada em São Paulo, 20 anos após ter vivido em Paris, um ano e pouco antes do desastre Bolsonaro, entre o impeachment da Dilma e o golpe baixo do Lula preso. Escrevia-se e gritava-se muito “Fora Temer”, o ambiente era politicamente sinistro, não imaginava que podia

Le Piano Vache

Le Piano Vache

1. Percorri o solo europeu sobre os carris do interrail, ainda a Chéquia se chamava Checoslováquia. E em 1997, saí do ninho lisboeta para o Erasmus em Paris. Quem podia — a bolsa mal chegava para pagar a renda — erasmava, era parte do ritual de iniciação “devir europeu”. Ter

Crónica do Mindelo com uns Anos de Atraso

Crónica do Mindelo com uns Anos de Atraso

1. Em 2004 aterro, com curiosidade e disponibilidade, na ilha de São Vicente, Cabo Verde. Tenho 28 anos, convencida de que a alegria, inclusive a excentricidade, fermentam numa ilha, ainda que árida. Os dedos abrem-se a novos ventos e areias. Já vivi nos Açores e reconheço o poder transformador das