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Avatar, história e catarse

Conhecem aquelas pessoas que, ao ouvir uma piada, dissecam-na ou divagam a propósito em vez de se rirem? Ou aqueles memes sobre psicólogos, que olham para as reações dos espetadores em vez do écran onde decorre a ação? É mais ou menos o que vou fazer aqui e agora. Em vez de lançar um enorme “uau!” de espanto acerca do grande blockbuster da quadra, Avatar: O Caminho da Água, vou dizer algumas coisas que giram em torno dele. Não é um filme banal, essencialmente por dois motivos, aliás, interligados: a excelência visual dos efeitos especiais e o seu sucesso comercial, por ter excedido todas as expectativas ao atingir mil milhões de dólares de receitas de bilheteira, no 14º dia de exibição mundial (a 27 de dezembro). Porque não é um filme qualquer, não pode, portanto, ser tratado como tal.

Enquanto obra cinematográfica, Avatar: O Caminho da Água já mereceu a esperada atenção dos críticos, dividindo opiniões entre a excelência dos efeitos especiais, a pobreza do argumento e a banalidade do restante. Já o primeiro filme (Avatar, de 2009) suscitara reações idênticas. Eu próprio tive ocasião, por essa altura, de comentar o filme e opinar acerca do assunto: uma grande expectativa e uma maior desilusão. Mantenho o que então escrevi, com a ressalva de que este novo filme desce mais uns quantos degraus. Se o primeiro tinha 163 minutos, o segundo arrasta-se por 192; se aquele tinha, ao menos, a frescura da novidade com algumas ideias interessantes e de grande potencial, este não vai além de, previsivelmente, encher o olho com mais ação e espanto visual. Na verdade, limita-se a explorar o filão e a seguir a receita prévia, sem nada de novo. O filão é, evidentemente, a orgia de efeitos especiais; a receita é a narrativa linear, a trama banal e moralista, as personagens simplórias e superficiais. James Cameron não arriscou desviar-se um grau que fosse da trajetória anterior. O filme de 2022 é uma desilusão acrescida também por isso. Avatar foi o filme que gerou mais receitas em toda a história do cinema, quase três mil milhões de dólares (e a sequela para lá caminha), e tudo graças à tecnologia CGI [Computer-Generated Images] e 3D. Mas a saga vilifica a tecnologia e o desejo de lucro dos humanos. Irónico, não?

Tudo em Avatar gira em torno de “tecnologia” e “efeitos especiais”, noções que, por vezes, se confundem em cinema e que geralmente associamos ao género de ficção científica. Na maior parte dos casos, constituem um fator extra de curiosidade e de interesse; neste, é exatamente o oposto: o que Avatar tem de interessante é exatamente o que escapa a esse vórtice. Mas já lá iremos.

Comecemos pelo essencial, que é, precisamente, a relação desta obra – da saga, melhor dizendo – com a ficção científica. Diz-se que a necessidade (ou a dificuldade) aguça o engenho, algo frequente em cinema e que, particularmente neste género, leva argumentistas e realizadores a colmatar a escassez dos orçamentos com inovação narrativa, densidade dramática e complexificação de personagens. Cinema é luz e câmara, mas também imaginação. Em Avatar, não há necessidade de engenho nem de imaginação nem há lugar a sombras ou a ambiguidades, tudo é claro, exposto e bem visível, a maior parte das vezes com cores bem garridas. A embriaguez pornográfica e exibicionista das CGI, dotadas de orçamento milionário, é dominante, mas acaba por funcionar como uma espécie de pesticida que mata ou faz definhar tudo à sua volta, apenas permitindo que floresça a única dimensão permitida, a do espetáculo visual. Alguém poderá alegar que os grandes filmes ou séries de ficção científica são adaptações de obras literárias e que James Cameron não é Isaac Asimov, Philip K. Dick ou Frank Herbert. É verdade. Contudo, muitos exemplos distintos podem ser apontados, como alguns dos trabalhos de Christopher e Jonathan Nolan ou de Neill Blomkamp que, além da solidez e criatividade das suas obras, usaram as CGI sem se deixarem devorar por elas. O meu exemplo favorito é o de Ronald D. Moore que, com escasso orçamento e efeitos especiais modestos, transformou uma space opera banal num prodígio televisivo, produzindo um estimulante exercício reflexivo acerca da condição humana. O universo Avatar merecia melhor sorte e teria certamente resultados mais interessantes em mãos mais hábeis e mentes mais fecundas. A minha preferência iria para Denis Villeneuve, mas, oh!, o que eu não daria para ver David Lynch dar-lhe uma achega.

Avatar levanta questões interessantes para além do âmbito estritamente cinematográfico. A primeira é a sua inspiração no passado. O mundo descrito na saga tem um sabor déjà vu de aglomerado de ideias decalcadas de experiências ocorridas na História da Humanidade no último meio milénio, em particular a colonização europeia do Novo Mundo. Uma potência em expansão que atinge um continente desconhecido e que se apropria dos seus recursos, desprezando as populações indígenas, onde é que já vimos isto? Esta inspiração na História é, contudo, usada de forma ingénua e grosseira, retirando dela apenas traços básicos e caricaturais. Uma vez mais, os elementos visuais são os mais importantes, como se esperava: toda a exuberância do ambiente onde vivem os Na’vi, tanto the forest people como the reef people (no primeiro filme e na sequela de 2022, respetivamente) é decalcada da selva amazónica e das ilhas do Pacífico. As tatuagens que este último ostenta, assim como a língua de fora como expressão de hostilidade, são estereótipos retirados da cultura maori; só falta mesmo um haka.

Estereótipos indígenas é, aliás, algo que não falta no mundo de Avatar. O mais imediato envolve a vivência pacífica dos Na’vi, sem vestígios de doença ou de conflito, numa espécie de estado natural harmonioso com a natureza e entre si. Não há rivalidades entre grupos, tensões políticas ou sociais, guerras endémicas ou deuses cruéis; um paraíso, no qual o único elemento disruptivo é a chegada dos humanos. Cameron repesca toda a cartilha do que por cá se convencionou chamar de “mito do bom selvagem”, prenunciado pelas utopias do século XVI, de Thomas Moro a Montaigne, e teorizado, mais tarde, por Rousseau e outros filósofos das Luzes. Como sabemos, a visão ocidental sobre as sociedades ditas “primitivas” oscilou entre esta matriz e a oposta, que as considerava desprovidas de elementos constitutivos da boa ordem social (um rei, uma religião estruturada, uma hierarquia social, etc.) e que denunciava as suas práticas e hábitos (idolatria, antropofagia, poligamia, entre muitos outros). Numa etapa inicial – ou seja, no século XVI –, eram sociedades que contrariavam as normas elementares da visão cristã do mundo e, mais tarde, foram tomadas como estágios primordiais da evolução “natural” das sociedades humanas na longa caminhada rumo à racionalidade e à civilização; logo, passaram a ser tomadas como “atrasadas” ou “primitivas”. A realidade provou ser bem mais complexa do que estas noções elementares que, todavia, perduraram no imaginário e na cultura popular.

No cinema do século XX, todos conhecemos exemplos de “selvagens”, desde as tribos antagonistas de Tarzan nos confins de África até ao subgénero “canibal” dos filmes gore dos anos 70 e, no sentido oposto, Revolta na Bounty ou Os Deuses Devem Estar Loucos, entre muitos exemplos possíveis.  Cameron perfilha e adapta esta última matriz a uma abordagem ecofriendly, onde os heróis são noble savages que lutam contra invasores que não são apenas gananciosos, mas também, ou principalmente, destruidores do ambiente natural de Pandora. No filme de 2022, este enfoque ecologista foi atualizado para as preocupações mais recentes: os oceanos e a vida marinha.

Os invasores, the sky people, são vilões especiais. Não são extraterrestres de aspeto medonho que vêm destruir o nosso planeta, como em A Guerra dos Mundos, O Dia da Independência ou No Limite do Amanhã. Somos nós, em 2154, que vamos invadir um planeta alheio. Nós, quem? É na resposta a esta questão que a saga Avatar mostra de onde provém: dos EUA e da sua própria História. Na crónica que escrevi em 2009, disse que Avatar é uma mistura de Pocahontas com Danças com Lobos. Não fui o único, pois o paralelo é de tal madeira óbvio que deve ter pairado na cabeça de meio mundo. Para a sequela de 2022, veio-me à mente Red Dawn (a versão de 1984 ou a de 2012, à escolha), que narra a história, tão heroica como inverosímil, da resistência de um punhado de jovens a uma invasão estrangeira.

Avatar é um exercício de catarse identitária, no qual a consciência norte-americana exorciza as sombras e os demónios que continuam a atormentar a memória coletiva acerca das origens e da formação do país. Há uma frase lapidar em O Caminho da Água, proferida a certa altura pela general que comanda as operações no planeta alienígena, que resume tudo: “A Terra está a morrer; o nosso trabalho aqui é o de dominar esta fronteira, nada menos do que tornar Pandora o novo lar para a humanidade, mas, antes de podermos fazer isso, precisamos de pacificar os [nativos] hostis”. Eis a “fronteira” (um paralelo à fronteira dos EUA em expansão para oeste ao longo do século XIX) e a “pacificação”, eufemismo utilizado, desde os espanhóis no século XVI, para designar submissão pela força. A resistência dos habitantes de Pandora à invasão humana é designada por “rebelião [insurgency] Na’vi”, termo de uso comum pelas potências coloniais para caracterizar a oposição ao seu quadro de domínio ou hegemonia territorial.

Apesar das suas coordenadas de referência mais ou menos claras e transparentes e da sua ingenuidade antropológica, Avatar não deixa de replicar alguns velhos tiques do cinema de Hollywood. Registo apenas dois: o herói da saga não é um nativo de Pandora, mas sim um marine norte-americano de nome Jake Sully que, um pouco à semelhança de Nate Algren de O Último Samurai (ou do tenente Dunbar de Danças com Lobos), descobre e encanta-se com a pureza e a bondade dos indígenas que deveria combater e renega a sua missão original; assim se vê como Na’vi, japoneses e sioux continuam a necessitar de um white savior para a história ficar decentemente contada. Por fim, não posso omitir a irritação peculiar que me causou o sotaque indígena dos Na’vi, um inglês a soar vagamente africano, vagamente caribenho, vagamente exótico com algo indefinido mas seguramente identificável como não-americano.

Uma boa parte da frustração que envolve o mundo de Avatar resulta da sua incapacidade de ultrapassar estereótipos e do caráter elementar e maniqueísta dos elementos que o constituem. Teria sido estimulante aproveitar a inspiração da História para conceber complexidades mais interessantes e, arrisco, mais verosímeis: em vez de bulldozers e de marines broncos e de gatilho fácil, por que não usaram os invasores humanos a diplomacia para seduzir, comprar e dividir os Na’vi? Não seria interessante assistir à forma como estes últimos oscilariam entre a aceitação da paz e de um progresso tecnológico e material prometido pelos invasores e a sua recusa intransigente? Ao invés de uma empresa quase omnipotente, agressiva e de vistas curtas, não seria interessante acompanhar as tensões e as divisões que a invasão (ou, se preferirem, o descobrimento, a exploração ou a colonização) de Pandora causaria na Terra? Ou, em alternativa, nenhum estratega, político ou oligarca humano pensou que as extraordinárias capacidades cognitivas dos Na’vi e a sua conexão ao planeta onde vivem seriam bem mais interessantes de explorar e controlar do que a mera extração de minério? E, por fim, não haveria formas mais subtis e menos simplistas de confrontar progresso com conservacionismo ou de esbater a dicotomia entre “vilões invasores” e “heróis indígenas”?

A ação de Avatar passa-se em 2154; O Caminho da Água ocorre doze anos depois. Um dos fatores de interesse da saga deriva da forma como, em 2009/2022, imagens e estereótipos do passado são imaginados e projetados nesse futuro não muito distante. Há quem, olhando para além dos limites estritos da obra cinematográfica, destaque o seu impacto global na opinião pública e vislumbre a sua utilidade nos desafios ambientais da atualidade. É, certamente, um debate em aberto e que se estenderá – como é previsível – aos capítulos seguintes, a produzir e lançar nos próximos anos. Pessoalmente, suscita-me uma interrogação mais sombria. Muito progredimos, nos últimos séculos, na forma de olhar e respeitar “o outro” e de nos relacionarmos com ele. Os totalitarismos, o Holocausto e a ameaça nuclear fizeram-nos refletir profundamente sobre os limites da condição humana e os riscos da intolerância, do medo e da ignorância e da sua manipulação oportunista. Contudo, esta minha convicção foi abalada com o deflagrar da guerra na Europa, em 2022. Perante um país que invade, bombardeia impiedosamente e comete atrocidades a um vizinho de etnia, cultura, língua, religião e história tão próximas, e considerando a apatia e “normalização” do seu efeito na opinião pública mundial, ao fim de poucos meses, pergunto: numa “Terra a morrer”, o que seríamos capazes de fazer, daqui a um século ou um milénio, a uma raça alienígena estranha e distante? E, caso ocorresse algo de semelhante ao descrito em Avatar, qual seria o grau da nossa indignação, passado o choque inicial, se isso nos trouxesse benefícios? Há um clássico da ficção científica que descreve um cenário equiparável e que resume tudo numa pequena expressão: “the spice must flow”. Enquanto fluiu, ninguém quis saber da sorte do povo que era oprimido por esse motivo.

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