Fotografia de Helena Araújo

Bretanha – Portugal ao virar da esquina

Bretanha – Portugal ao virar da esquina
Fotografia de Helena Araújo

Galgenhumor é uma palavra alemã para designar o humor que alguém faz a propósito da situação desesperada em que se encontra. Um dos exemplos mais famosos é o do criminoso que, ao saber que vai ser executado numa segunda-feira, revira os olhos e comenta: “A semana já me começa bem…”. Ou o réu, a quem o tribunal anuncia uma tripla pena de morte, que protesta: “A primeira pena de morte ainda vá que não vá, mas as outras duas, com o devido respeito, senhor juiz, são profanação de cadáver”. 

O humor junto ao cadafalso (ou humor da forca, ou humor patibular, como já tenho visto traduzido) não se confunde com o humor negro. Este serve-se geralmente de temas desconfortáveis ou tabu, enquanto o Galgenhumor tem como condição indispensável ser produzido pela pessoa ou pelo grupo que está sob ameaça. Em situação desesperada, o sujeito não se dá por subjugado, mostra que tem ainda – apesar de tudo – uma palavra a dizer sobre o seu destino. O riso junto ao cadafalso é um acto de resistência, e convida-nos a repensar o significado da frase “ri melhor quem ri no fim”.

Também eu fiz a experiência deste tipo de humor como acto de resistência pessoal nas semanas que se seguiram ao discurso “nous sommes en guerre” do presidente Macron. Fechada em casa, sujeita a regras apertadíssimas de confinamento,  muitas vezes ri com gosto devido a piadas que se iam fazendo sobre a situação de impotência em que nos encontrávamos todos. Ri melhor quem ri no fim, e vive melhor quem ri durante: durante esse período, vivi bem melhor graças à página @mamouz do Instagram. Julie Mamou-Mani, a sua autora, é uma adepta optimista do riso como terapia e como forma de vida mais saudável, e naquela época partilhava diariamente inúmeros apontamentos divertidos sobre a crise da pandemia. Na primeira vez que entrei na sua página, encontrei a imagem de um cãozinho deitado no chão, com um ar completamente exausto, e a frase “Hoje já fui à rua 17 vezes. Quem é esse patife do Covid?”. Seguiram-se piadas sobre o aspecto que teríamos quando os cabeleireiros reabrissem, ou truques hilariantes para poder sair à rua apesar da proibição. Como não podia deixar de ser, havia também piadas sobre o clima bretão (Verão: tempestade. Outono: tempestade. Inverno: tempestade. Confinamento: céu azul e sol), e eu, que na primeira metade de Março apanhara várias molhas épicas, ria com gosto mais uma vez, e quase nem me importava por não poder saborear em liberdade o dia esplendoroso que estava do lado de fora da janela. 

Quando as regras abrandaram um pouco, e as pessoas foram autorizadas a mover-se num raio de 100 km à volta da sua morada, no @mamouz apareceu um mapa da zona de Brest no centro de um círculo com raio de 100 km: o mar cobria 75% da sua superfície. Ri muito, porque ria sempre quando visitava aquela página, e também porque daquela vez Julie Manou-Mani não tinha razão nenhuma. Sabia lá ela quanto valia aquele bocadinho de terra ao lado de Brest!

Roscoff, por exemplo: a 64,5 km. Pouco mais de metade da distância autorizada, uma beleza de cidade, uma beleza de jardim botânico, a ilha de Batz mesmo em frente. E também – oh, surpresa! – Portugal ali tão perto: porque no século XVII um monge capuchinho levou de Lisboa umas sementes que experimentou pôr na sua horta bretã, e estas resultaram em cebolas rosadas que vieram para ficar. Eram fáceis de conservar, tinham um sabor suave, e muita vitamina C para os navegadores da região. Quando a tradicional cultura do linho sofreu rudes golpes, a região especializou-se cada vez mais na horticultura – sobretudo a alcachofra e, sim, essa rosada cebola, o “ouro cor-de-rosa” português. Um bom par de anos mais tarde, um sujeito decidiu atravessar o canal da Mancha para ir vender aos ingleses as cebolas portuguesas produzidas em Roscoff, muitos outros o imitaram. Foi assim que nasceram os Johnnies, grupos de bretões que, do outro lado do canal, vendiam porta a porta as suas tranças de cebolas, partindo em Julho e regressando depois de vender a última.

Quem conta bem tudo isto, e muito mais, é Alexandre Dumas, que se instalou em Roscoff a escrever o que viria a ser a sua última grande obra: o Grand Dictionnaire de Cuisine, com três mil receitas da culinária francesa do seu tempo, e inúmeras histórias da sua vida e das suas viagens – nomeadamente histórias da sua cozinheira de maus fígados e das generosas pessoas de Roscoff, dos peixes do seu mar e, como é óbvio, das alcachofras e das cebolas da sua terra. 

Com o tempo, tudo muda –  mesmo nos confins da Finisterra. As travessias da Mancha tornaram-se menos arriscadas, os circuitos comerciais evoluíram de tal forma que hoje em dia até no Lidl encontramos ocasionalmente as famosas tranças de cebolas de Roscoff. A tradição dos Johnnies, há muito em decadência, sofreu um último golpe com o Brexit e a pandemia. Em 2022, dos 7 membros da associação de Johnnies, só dois fizeram a travessia do canal.

No entanto, nem só de cebolas vive Roscoff. Na segunda metade do século XIX, o poeta Tristan Corbière chamava-lhe “terra de flibusteiros, ninho de corsários”. Esqueceu-se de mencionar os contrabandistas de vinho, aguardente e chá, mas há que conceder que estava a escrever um poema e não um relatório de actividades económicas. Em todo o caso, numa primeira abordagem desatenta, quase se poderia ficar com a impressão de que os únicos que ganhavam a vida de forma honesta eram os Johnnies, a vender cebolas portuguesas. E, pensando bem, nem esses: afinal, onde estão as nossas royalties dos últimos quatro séculos?..

Naquela manhã de Maio, também nós encontrámos a cidade “adormecida no seu sono de granito”, como no poema de Corbière. Quase não havia turistas, e os habitantes da cidade estariam talvez ocupados a rever finalmente familiares e amigos num raio de 100 km. Passeámos pelas ruas antigas em busca da igreja de Nossa Senhora da Cruz de Batz, assim chamada por ter sido construída perto do antigo embarcadouro para a ilha, onde dantes havia uma cruz. É fácil de encontrar, porque de toda a parte se vê o seu campanário renascentista, autêntica filigrana do granito sobre os telhados de ardósia da cidade, espécie de farol que usa beleza em vez de luz para anunciar a quem anda no mar que Roscoff é ali, é ali!

Nas paredes exteriores da igreja encontrámos novo sinal de Portugal: caravelas esculpidas na pedra. Seriam realmente caravelas? Em todo o caso, eram um sinal que os mais ricos armadores e comerciantes da cidade, que pagaram a construção da igreja, nela quiseram deixar. Naquelas pedras haveria certamente algum dinheiro português, ganho nas exportações de cereais e têxteis para Portugal –  e tantas vezes a Bretanha matou a fome ao pequeno país dos confins da Europa que se lançava já na conquista do Atlântico, e tantos marinheiros bretões embarcaram também na aventura portuguesa!

Algumas das casas quinhentistas dessas endinheiradas famílias encontram-se ainda na praça e nas ruas à volta da igreja, e merecem bem um olhar que pouse com calma nos adornos das suas fachadas de pedra, e em particular nas esculturas ladeando as escadas que levam directamente da rua para a cave onde se guardavam as mercadorias. 

Por toda a parte encontrámos placas a indicar o caminho para uma outra casa, que ficou eternamente famosa por ter albergado a pequenina Maria Stuart, de cinco anos, depois de desembarcar à pressa para fugir a uma tempestade no mar, e antes de avançar para a tempestade seguinte: a celebração do seu noivado com o delfim da França, o futuro rei François II. Foram apenas alguns dias em Agosto de 1548, mas, para a cidade de Roscoff no seu sono de pedra, parece que foi ontem, e que desde então pouco mais aconteceu.

O que não é inteiramente verdade. Ali se instalou, por exemplo, um importante centro de investigação de biologia marinha, há mais de um século. Ali se construiu em 1972 um novo porto e se criou uma empresa de ferries, que aproveitava a recente entrada da Grã-Bretanha na CEE para abrir uma nova rota de comercialização dos produtos agrícolas bretões (os Johnnies a preparar o século XXI…) e desenvolver o turismo da região. Com o mesmo excelente sentido de oportunidade, deu-se um jeitinho de modo a que a Volta à França de 1974 atravessasse o Canal para fazer uma etapa em Inglaterra, o que resultou numa extraordinária publicidade à recém-criada ligação por ferry entre Roscoff e Plymouth. 
Mais recentemente, uma nova actividade económica baseada na colheita e transformação de algas para alimentação e cosmética está a instalar-se na cidade, e nas lojas aparecem cada vez mais produtos com algas, tão apelativos quanto caros: sal com algas, arroz basmati com algas, maionese de algas, biscoitos com algas, conservas de algas, algas secas, e tudo o mais que se possa imaginar.

Não nos demorámos muito na cidade, porque íamos apanhar o barco para a ilha de Batz. Quase o perdemos, por não nos ter ocorrido que a maré estava baixa, e quando assim é o barco fica longíssimo, na outra ponta do cais. Por sorte, uma família com várias crianças sem máscara estava a negociar a possibilidade de fazerem a travessia no convés, e enquanto tentavam usar argumentos lógicos para abrir uma brecha nas regras draconianas do Estado francês em tempo de pandemia, nós pudemos chegar ao barco e instalar-nos no convés vazio, a arfar e a sorrir por trás das nossas benditas máscaras. 

 

(Continua)

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