Boa Vida

O futuro aparente
Boa Vida
Filipe Nunes Vicente

O futuro aparente

Uma discussão interessante é feita por Cícero no Tratado do Destino (IX,17). Convida Diodoro, Epicuro e Crísipo: Tudo o que acontece teve de acontecer. As proposições sobre o futuro são tão verdadeiras como as sobre o passado ainda que nestas a impossibilidade de as modificar seja aparente. Já sobre o futuro essa aparência não é tão evidente. Isto é um dos eixos do estoicismo. Tudo o que aconteceu teve de acontecer representa o aceitar da vida no que ela configura de luto pela nossa omnipotência.  A nota

Ler »
Rebentou o pneu e a guerra
Boa Vida
Marta Lança

Rebentou o pneu e a guerra

1. Manhã de fevereiro de 2022. Dou um beijo à filha ao pousar a mochila da Dora aventureira à porta da escola: «Hoje é o pai que te vem buscar. Boa semana. Adeus querida.» Ontem observei-a a desenhar rodeada de crianças. Viu-me e mostrou-me o desenho, uma montanha ou um vulcão, pareceu-me. Mas era «uma menina com vestido gigante.» A colega insistia: «queres vir brincar a minha casa?» – é uma coisa que elas dizem

Ler »
Em frente ao vulcão, baleias vivas e mortas
Boa Vida
Marta Lança

Em frente ao vulcão, baleias vivas e mortas

1. Em 1988, a família rumava ao Faial. O pai contratado para construir a Assembleia Regional, a mãe colocada numa escola secundária ao lado da minha preparatória, o irmão na primária. A casa arrendada ficava no topo da cidade da Horta. Aliás, era uma quintinha: portão, carro sob parreiras, jardins descuidados, ou principescos, depende do grau de fantasia, de onde surgiam fontes de pedra e uma moradia elegantemente decadente. Havia vacas, gatos e cães açorianos.

Ler »
Bretanha – Guerra e Paz
Boa Vida
Helena Araújo

Bretanha – Guerra e Paz

“Fantástico! Finalmente é segunda-feira, posso voltar ao trabalho!” Imagino que tenha sido este o sentimento de muitos franceses na véspera daquele dia 11 de Maio de 2020, a data marcada para aliviar bastante o pesado confinamento de quase dois meses (*) imposto à população francesa. Nós, não. Foi dia de gazeta ao trabalho, porque valores mais altos se alevantavam: tínhamos de ir fazer uma incursão na paisagem. Escolhemos a península de Crozon, que fica na

Ler »
O empadão de esparguete dos avós em Benfica
Boa Vida
Marta Lança

O empadão de esparguete dos avós em Benfica

1. O avô morreu na passagem de ano de 2007-8. O meu pai passou a noite, mão na mão, com o seu pai. Apesar de já ter visto esta imagem milhares de vezes, não sei exatamente o que será consolar alguém nos momentos finais. Menos ainda sei o que é morrer. Quando os avós desaparecem dá-se a nossa primeira orfandade, dizem. Perde-se o vínculo aos últimos representantes próximos de universos e referências que demonstram a

Ler »
Comida: o resto é paisagem
Boa Vida
Gonçalo Calado

Comida: o resto é paisagem

Poucas coisas terão mudado mais a paisagem do que a obtenção de alimentos pela nossa espécie. A termodinâmica não perdoa: ou entra energia de alta qualidade no sistema – no nosso caso sob a forma de alimentos – ou isto não resulta. Primeiro, a deslocação dos grupos de caçadores–recoletores, e depois, numa escala muito maior, as práticas agrícolas abriram caminho à sedentarização e à vida em aglomerados populacionais maiores, associada a uma enorme transformação da

Ler »
Bretanha - Sozinhos em casa
Boa Vida
Helena Araújo

Bretanha – Sozinhos em casa

Onde estava no momento em que lhe anunciaram que ia viver várias semanas em confinamento? Eu estava num lar de estudantes em Brest, a fazer as malas para mudar para um alojamento local onde ficaríamos alguns dias, enquanto esperávamos a data de entrar no apartamento que arrendámos. O telefone tocou. Era o Joachim, a dizer que “fontes próximas do Eliseu” o tinham informado de que o Macron ia fazer um discurso na televisão, para anunciar

Ler »
A varanda da Maianga
Boa Vida
Marta Lança

A varanda da Maianga

1. “Sete e Meio”, assim ficou conhecido o apartamento na Maianga, em Luanda onde, entre 2005 e 2007, morei com artistas angolanos, Orlando, Kiluanji, Ihosvanny, Yonamine, Francisca e o bebé Njamy, os mais perenes, outros em temporadas de média duração[1]. Ficava num sétimo andar (e meio), num prédio de arquitetura moderna, semelhante aos edifícios da Avenida Estados Unidos da América, em Lisboa, mas degradado pela passagem do tempo e negligente manutenção. Bem localizado, dali podíamos

Ler »
Envelhecer nas bancadas
Boa Vida
Bruno Sena Martins

Envelhecer nas bancadas

Aceitar sem mais a idade que nos é ditada no registo civil implica uma cobarde cedência aos poderes instituídos. Entre os muitos poderes que nos clamam à capitulação, devemos apontar o dedo à burocracia estatal, a uma noção moderna de tempo linear e, claro, à pressão para festejar aniversários. A ideia de que os aniversários devem ser festejados mais não é do que uma bizarria que nos obriga a declarar publicamente a idade como, ainda,

Ler »
O futuro aparente

O futuro aparente

Uma discussão interessante é feita por Cícero no Tratado do Destino (IX,17). Convida Diodoro, Epicuro e Crísipo: Tudo o que acontece teve de acontecer. As proposições sobre o futuro são tão verdadeiras como as sobre o passado ainda que nestas a impossibilidade de as modificar seja aparente. Já sobre o futuro essa aparência não é tão evidente. Isto

Rebentou o pneu e a guerra

Rebentou o pneu e a guerra

1. Manhã de fevereiro de 2022. Dou um beijo à filha ao pousar a mochila da Dora aventureira à porta da escola: «Hoje é o pai que te vem buscar. Boa semana. Adeus querida.» Ontem observei-a a desenhar rodeada de crianças. Viu-me e mostrou-me o desenho, uma montanha ou um

Capa do n.º 8 da Almanaque

Capa do n.º 8 da Almanaque

Capa do Nº 8 da Almanaque, Agosto de 2023; ilustração de Lia Ferreira e layout de João Lagido.

Em frente ao vulcão, baleias vivas e mortas

Em frente ao vulcão, baleias vivas e mortas

1. Em 1988, a família rumava ao Faial. O pai contratado para construir a Assembleia Regional, a mãe colocada numa escola secundária ao lado da minha preparatória, o irmão na primária. A casa arrendada ficava no topo da cidade da Horta. Aliás, era uma quintinha: portão, carro sob parreiras, jardins

Bretanha – Guerra e Paz

Bretanha – Guerra e Paz

“Fantástico! Finalmente é segunda-feira, posso voltar ao trabalho!” Imagino que tenha sido este o sentimento de muitos franceses na véspera daquele dia 11 de Maio de 2020, a data marcada para aliviar bastante o pesado confinamento de quase dois meses (*) imposto à população francesa. Nós, não. Foi dia de

O empadão de esparguete dos avós em Benfica

O empadão de esparguete dos avós em Benfica

1. O avô morreu na passagem de ano de 2007-8. O meu pai passou a noite, mão na mão, com o seu pai. Apesar de já ter visto esta imagem milhares de vezes, não sei exatamente o que será consolar alguém nos momentos finais. Menos ainda sei o que é

Comida: o resto é paisagem

Comida: o resto é paisagem

Poucas coisas terão mudado mais a paisagem do que a obtenção de alimentos pela nossa espécie. A termodinâmica não perdoa: ou entra energia de alta qualidade no sistema – no nosso caso sob a forma de alimentos – ou isto não resulta. Primeiro, a deslocação dos grupos de caçadores–recoletores, e

Bretanha - Sozinhos em casa

Bretanha – Sozinhos em casa

Onde estava no momento em que lhe anunciaram que ia viver várias semanas em confinamento? Eu estava num lar de estudantes em Brest, a fazer as malas para mudar para um alojamento local onde ficaríamos alguns dias, enquanto esperávamos a data de entrar no apartamento que arrendámos. O telefone tocou.

A varanda da Maianga

A varanda da Maianga

1. “Sete e Meio”, assim ficou conhecido o apartamento na Maianga, em Luanda onde, entre 2005 e 2007, morei com artistas angolanos, Orlando, Kiluanji, Ihosvanny, Yonamine, Francisca e o bebé Njamy, os mais perenes, outros em temporadas de média duração[1]. Ficava num sétimo andar (e meio), num prédio de arquitetura

Envelhecer nas bancadas

Envelhecer nas bancadas

Aceitar sem mais a idade que nos é ditada no registo civil implica uma cobarde cedência aos poderes instituídos. Entre os muitos poderes que nos clamam à capitulação, devemos apontar o dedo à burocracia estatal, a uma noção moderna de tempo linear e, claro, à pressão para festejar aniversários. A