The Noble Sans-Culotte, gravura de James Gillray.

Ceroulas par avion

“Que nunca nos falte o supérfluo!”, atira a exuberante Val Marchiori, estrela do reality show brasileiro Mulheres Ricas, num dos seus inúmeros brindes com champanhe a 500 € o litro. Val (née Valdirene no interior do Paraná) é uma das cinco milionárias que compõem o elenco do programa que, em 2012, mostrava como era ser rico na nação que encabeça os BRICS. Apresentado num formato pretensamente documental, cada episódio revelava quotidianos dedicados a ‘gastança explícita’: sessões de compras, viagens em jactos privados, figurinos integrais da Chanel, jóias e o omnipresente champanhe, num deboche agravado por tiradas indecorosas para com os milhões de compatriotas carenciados. Apesar de suscitar fortes críticas num país marcado pela desigualdade social, Mulheres Ricas foi um sucesso de audiências. O seu tratamento caricatural do privilégio assenta, claro está, sobre o exagero, numa distorção reveladora de algo que é grotesco nas vidas destas mulheres, mas também inesperadamente cómico. A certa altura, as deixas mais escandalosas eram apropriadas com ironia pelos espectadores, como “O rico tem que gastar. Se o rico não gasta, o dinheiro não gira”, palavras da protagonista Lydia Sayeg, joalheira e discípula da teoria económica smithiana. 

 

Causa, por isso, algum espanto que o brinde de Val Marchiori contenha tamanha sabedoria e qualidade simbólica. Em primeiro lugar, porque é verdade que quando nos falta o supérfluo, resta apenas o essencial, o que nos aproxima desconfortavelmente da vulnerabilidade – afinal, aquilo que reveste a nossa existência de uma margem de segurança e conforto tende a ser excedentário. Em segundo lugar, porque o programa não deixa de ser uma vívida expressão do seu tempo. Em 2012, o Brasil vivia um período de acentuado crescimento económico, chegando a ocupar o sexto lugar no ranking das maiores economias mundiais (posição até então pertencente ao Reino Unido). Num país que assistia ao aparecimento de dezanove novos milionários por dia desde 2007, não é de estranhar o surgimento de novas aspirações por entre a população. Normalmente, a captação destes fenómenos por parte da cultura popular não tarda, sendo o reality show um formato de entretenimento especialmente adequado para os refletir devido ao imediatismo que lhe é inerente.

No decorrer da última década, economias emergentes como o Brasil, a China e algumas nações do Médio Oriente foram adquirindo uma importância progressivamente estratégica para a indústria europeia do luxo, sendo que, actualmente, um terço das vendas do sector dependem de consumidores chineses. Para adubar este sucesso, as maisons investiram com vista a oferecer melhores experiências de retalho em solo europeu, onde ocorrem a maior parte das vendas graças a turistas afluentes e, em paralelo, expandiram as suas redes de lojas desde São Paulo a Xangai, em operações com resultados mais tímidos mas fundamentais para conhecerem melhor o cliente de latitudes remotas. É ao seu serviço que grupos como a LVMH (detentora de marcas como a Louis Vuitton e a Dior), o rival francês Kering (Gucci, Balenciaga, Bottega Veneta) ou a Richemont (Cartier, Van Cleef & Arpels) têm convertido uma nobre herança nas artes decorativas e técnicas artesanais (impulsionadas desde o séc. XVII pelas casas reais europeias) e colhido frutos que tornaram o luxo a maior indústria do Velho Continente, um feito apenas comparável ao sector tecnológico nos Estados Unidos da América. 

 

Já numa dinâmica de trickle-down intracomunitário, há vários anos que a prosperidade gerada pelo luxo europeu tem aportado amplas oportunidades junto da indústria têxtil portuguesa. Cientes da superlativa importância do poder suave neste segmento e livres de pressão sobre os seus preços, as principais maisons mantêm as suas cadeias de fornecimento por perto, apoiando-se em fornecedores locais e situados em países periféricos com tradição em manufactura. Esta aliança comercial tem estimulado a indústria portuguesa a sofisticar-se, assegurando centenas de milhares de empregos (entre os quais, o meu) na região Norte e Centro do país. Numa lógica mutuamente vantajosa, ao contribuir para o PIB português, as marcas de luxo beneficiam não só do ímpeto inovador da nossa indústria e da predisposição cultural que temos para servir, como também do facto de operarmos sob apertada regulação europeia no que toca a práticas de sustentabilidade ambiental e social. Para marcas que lançam globalmente produtos de elevado valor e, consequentemente,  estão sujeitas a um forte escrutínio por parte de entidades fiscalizadoras e dos consumidores, é crítico conhecerem exatamente quem faz, onde faz e como são feitos os seus produtos, para evitarem riscos reputacionais.  

 

Embora as fábricas portuguesas sejam frequentemente visitadas por representantes destas marcas, são também normais e frequentes as auditorias não-anunciadas. Estas auditorias são encomendadas pelas marcas a organismos independentes, que fiscalizam à lupa não só o cumprimento das normas por parte das fábricas, como de critérios próprios das maisons que, por vezes, superam as exigências legais – exemplo disso é o embargo das marcas de luxo ao algodão oriundo da região chinesa de Xinjiang,  no seguimento de relatos de mão-de-obra forçada da minoria étnica Uyghur na colheita de algodão naquele território.

Apesar de vir inconspicuamente indicado por meio de gravura ou de componentes periféricos como etiquetas de composição, o local da manufactura de um bem de luxo tem especial importância junto dos consumidores de países emergentes. Ao adquirir uma peça de relojoaria suíça, por exemplo, um cliente brasileiro chama a si uma herança de tradição e gosto, reforçada pelo conhecimento tecnológico em que assenta a sua produção; esta experiência é simbólica do alcance do consumidor, permitindo uma certa dissociação da sua realidade, como se as qualidades de um produto de excelência se transferissem para o portador. Não será por acaso que, em Mulheres Ricas, assistimos à sabragem de uma garrafa de Cristal e não de um espumante local.

 

O mundo deste consumidor superafluente e aquele onde os seus produtos são fabricados são realidades muito distantes, intersectadas apenas pelas marcas. No ambiente rarefeito das maisons de luxo, recai sobre o director criativo a figura do mediador principal, função de uma importância crítica tendo em conta a expressão global destas grandes empresas. De pouco serve que JW Anderson na Loewe, Daniel Lee na Burberry, ou Demna Gvasalia na Balenciaga, lancem colecções que agradem à clientela dos códigos postais mais finos de Londres e Paris, se não compreenderem o que leva um millennial de Shenzhen ou uma CEO em São Paulo a gastar o seu dinheiro. Estar, por isso, ao leme da direcção criativa em marcas de luxo globais é ocupar uma posição que agrega imenso poder e responsabilidade, confiada a uma elite de profissionais dotados de uma apurada sensibilidade cultural. Em troca de pacotes remuneratórios milionários, batalhões de assistentes e um estatuto comparável ao de estrelas de rock, o director criativo trabalha hoje sob a expectativa de contribuir para o sucesso de grupos cotados em bolsa, e sob o julgamento implacável das massas através das redes sociais. Esta espada de Dâmocles que paira sobre as mais brilhantes cabeças ao serviço da moda ajudará a enquadrar o episódio que mais à frente irei relatar na primeira pessoa.

 

Na óptica do fornecedor, produzir vestuário de luxo é um desafio de co-criação muito estimulante, e que resulta tanto ou mais de serviço do que do fundamental corte e costura. É ao concretizar a visão de directores criativos excepcionalmente talentosos que expandimos o nosso conhecimento em produção de vestuário, possibilitando-nos transformar ideias em produtos frequentemente subversivos na sua forma e função. A pressão a que está sujeita a liderança criativa acaba por escorrer indirectamente para a fábrica através das equipas de jovens assistentes – perpetuamente afoitos – que apoiam os directores criativos; são eles que emitem pedidos junto dos fornecedores, por vezes no tom de desespero e de urgência que normalmente associamos a assuntos de vida ou de morte. Independentemente do seu segmento, todas as marcas de moda trabalham numa corrida contra o tempo e (tal como nos acontece individualmente, enquanto cidadãos) as marcas menos afortunadas vêem-se obrigadas a ser eficientes, optimizando o mais possível a utilização dos recursos ao seu dispor, enquanto as marcas de luxo, detentoras de meios ilimitados, têm uma generosa folga para práticas e métodos mais extravagantes. 

Um exemplo dos recursos excepcionais ao alcance das marcas de luxo é o serviço de hand-carry. Concebido especialmente para responder a emergências logísticas de indústrias pesadas e de grande valor, este serviço é realizado por um estafeta que viaja juntamente com o objecto transportado, levando-o do ponto A ao ponto B no tempo mais curto possível e custe o que custar (no duplo sentido – financeiro e físico – do verbo). Compreende-se, por isso, que a ele recorram, por exemplo, a indústria automóvel, em que a falha de um componente pode interromper linhas de montagem imensas, complexas e caras, ou a aeronáutica, que em situações designadas por Aircraft On Ground (aeronave em terra devido a uma avaria que impeça o avião de voar) incorrem em avultadas perdas financeiras.

 

No início deste ano, dei por mim nas Chegadas do Aeroporto Francisco Sá Carneiro já perto da meia-noite de um dia de semana, com a missão de me encontrar com um estafeta francês e entregar-lhe uma caixa. Lá dentro, estava um pedido urgente do director criativo da maison que contratou o estafeta. Este contava sair de Paris a tempo de chegar ao Porto, recolher no exterior do terminal de chegadas uma viatura previamente alugada e, em 30 minutos, chegar à fábrica para buscar a tal caixa. Isto permitir-lhe-ia regressar à capital francesa no último voo do dia e finalizar a entrega nos escritórios da marca no 9e arrondissement até às 12h do dia seguinte. Por azar, viu-se retido em Paris por greves e violentos protestos que acabavam de eclodir contra o aumento da idade de reforma em França. Ora, manda o código do hand-carry que, na impossibilidade de embarcar no voo previsto, se compre assento no voo comercial seguinte, pelo que o meu encontro com o estafeta já não se deu na fábrica, mas sim no aeroporto mais próximo, a escassos minutos da meia-noite. Durante a tarde, tínhamos sincronizado os nossos relógios como dois co-conspiradores e combinado por mensagem escrita o local exacto do nosso encontro; levá-lo-ia ainda, no meu carro, o mais rapidamente possível ao stand do rent-a-car do aeroporto. 

Não havendo lugares disponíveis nos voos Porto-Paris da manhã seguinte, foi necessário reconfigurar o plano do estafeta, passando a envolver conduzir 318 km pela noite dentro até ao Aeroporto da Portela e dali apanhar o voo das 6 da manhã para Paris, sendo ele já portador de bilhete graças a forças misteriosas a operar na sua retaguarda. 

Depois de o recolher nas Chegadas, fomos dar com o rent-a-car encerrado devido à hora tardia, contratempo que, aparentemente, em nada aborreceu o estafeta. Estranhando, comentei com ele o carácter algo difícil do seu trabalho, acrescentando que esperava que fosse muito bem pago. Confirmou ambos e disse-me que quando se levanta de manhã nunca sabe onde vai dormir nesse dia, confidenciando que na mesma semana tinha sido contratado por uma maison concorrente para ir buscar um rolo de tecido a Milão e entregá-lo em Londres antes do ocaso. Sem expressar o menor sinal de pressa ou aflição, fumou dois cigarros seguidos e disse-me que seguiria de táxi para Lisboa. Entreguei-lhe a caixa e desejei-lhe bon courage.

No dia seguinte, sentei-me a ver a transmissão em directo do desfile da marca, cuja colecção masculina concebida para o Outono de 2023 foi apresentada, com grande sururu, num amplo espaço branco com a solenidade de uma galeria de arte contemporânea. Entre a enfiada de modelos masculinos estatuescos, caminhavam em passo assertivo os portadores do conteúdo da tal caixa: três pares de ceroulas.

 

O caso das ceroulas par avion, pedidas por uma das marcas de luxo mais reputadas da actualidade horas antes do seu desfile, levou a que, numa freguesia agro-industrial minhota se suspendesse (sem hesitar, pois o cliente é rei) o trabalho planeado para fazer estas três peças prioritárias. Sem mudarem de mãos até chegarem a Paris via Lisboa, recorreu-se a um serviço desenhado para transportar células humanas entre dois continentes com a urgência necessária à sua preservação como alternativa a modos de expedição mais convencionais como o FedEx ou a DHL. Estes compreendem redes logísticas vastíssimas mas são também mais falíveis, sendo frequentes os episódios de atrasos e extravio de envios. Visto que na pressão extrema que antecede um desfile de uma marca de luxo surgem também ideias de última hora, cabe às equipas que trabalham de perto com o criador encontrar soluções para concretizar a sua visão até ao mais ínfimo detalhe. Por razões de autopreservação, preferia jamais estar na pele de um assistente prestes a informar um director criativo de reputação internacional de que as ceroulas, inesperadamente essenciais no desfile, não chegaram devido a um atraso da DHL. Seria inconcebível numa linha de comando implacável.

Estas ceroulas – umas pretas, umas brancas e umas cinza-mescla – podiam ter sido feitas num atelier de Paris? Podiam. A fábrica, que já as tinha prototipado anteriormente e era, por isso, criadora e detentora dos moldes, não hesitaria em cedê-los à marca. Só que, para o director criativo, mudar o processo de produção resultaria num pastiche, e estas não eram umas ceroulas quaisquer: eram, sim, umas ceroulas conceptuais, redesenhadas para serem usadas à vista e combinadas com a luxuosa alfaiataria da marca. É de ceroulas maravilhosamente suaves que aqui tratamos, feitas num jersey 100% lã que não pica, mas abraça e acolhe como o ventre materno. 

Em entrevistas dadas no seguimento do desfile, o director criativo enquadrava as suas peças numa visão algo magrittiana, um surrealismo fino e depurado a que chama de acto reducionista – ou seja, um exercício de extracção do supérfluo. Visto assim, faz sentido que as ceroulas tenham adquirido aqui inesperada importância, uma vez que esta peça tradicionalmente interior, modesta e utilitária, ironiza uma certa ausência de sofisticação, equilibrando uma colecção luxuosíssima e cheia de estrutura com nuances telúricas.

De resto, o que são uns hand-carries para o colosso francês LVMH, que reporta uma margem de lucro bruta próxima dos 70% e receitas de quase 80 mil milhões de euros? Com meios praticamente ilimitados à disposição, o luxo não vê razões práticas, ambientais ou éticas para privilegiar a eficiência em detrimento da excelência. Ao fim e ao cabo, a conta é perfeitamente imputável ao consumidor final que, não só é cada vez mais insensível ao preço, como tem gosto em mostrar que não lhe falta o supérfluo. 

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