Poucas coisas terão mudado mais a paisagem do que a obtenção de alimentos pela nossa espécie. A termodinâmica não perdoa: ou entra energia de alta qualidade no sistema – no nosso caso sob a forma de alimentos – ou isto não resulta. Primeiro, a deslocação dos grupos de caçadores–recoletores, e depois, numa escala muito maior, as práticas agrícolas abriram caminho à sedentarização e à vida em aglomerados populacionais maiores, associada a uma enorme transformação da paisagem.
Até agora dependemos em grande parte do “mundo natural” para a obtenção de alimentos. Dependemos de coisas que nascem, crescem, reproduzem-se e morrem. E dedicamos uma parte considerável do nosso tempo, energia, e área da superfície do planeta à obtenção destas coisas. Mas com oito mil milhões de bocas para alimentar as coisas estão a mudar. Mais cedo do que tarde, a “comida sintética” – não produzida por processos naturais – será uma realidade. De carne obtida através de células estaminais e apresentada em hambúrgueres impressos em 3D, a outras proteínas vindas diretamente de um bioreator, há já um sem-número de experiências de sucesso que aguardam a sua aprovação pelo cliente final, seja por questões económicas ou culturais. Comida e cultura confundem-se na nossa espécie, mas será a economia, pressionada pela escassez de produção de alimentos naturais que ditará a transição em massa para a “comida sintética”.
Mais do que adivinhar se iremos poder imprimir pezinhos de coentrada, cabrito estonado à moda de Oleiros, ou bacalhau à Gomes de Sá num qualquer robô de cozinha de um futuro próximo, tenho curiosidade em saber qual será a nossa relação com o “mundo natural” e o que faremos à paisagem que fomos modificando ao longo de milhares de anos. Descrevo aqui dois cenários extremos:
- Cenário a: abandonamos progressivamente o contacto com o “mundo natural”. Passamos todos a viver em cidades rodeadas por fábricas de matérias-primas dos alimentos que confecionamos nos nossos robôs de cozinha e mantemos vias de comunicação entre as cidades. No caso de Portugal, deixa de existir “interior”, demasiado frio, quente, seco, árido para que suscite algum interesse à maioria da população. E fica tudo a banhos perto do oceano Atlântico.
- Cenário b: já livres da dependência do território para a obtenção de alimentos, não nos livramos do interesse irracional que nos espoleta o “mundo natural”. Investimos tempo e dinheiro em fruir dele, em recuperá-lo da pressão de milénios e criamos uma economia à volta de novo “mundo natural”. Achamos piada a voltar a ter leões na Europa, coisas parecidas com Auroques e outros mimos, e o “Rewilding” fará a função dos “Cabinets de Curiosités” dos séculos XVII e XVIII.
Os cenários são suficientemente díspares para que o que quer que aconteça fique situado entre eles. E certamente que ao longo dos anos as políticas e as perceções irão variar, mas, no limite, o futuro será determinado pela nossa necessidade intrínseca de contacto com esse “mundo natural” ou, dito ao contrário, por não nos conseguirmos livrar, enquanto humanos, desse mesmo “mundo natural”. Um amigo caçador está-me sempre a falar no “gene da caça”, que aquilo de matar o animal é o culminar de um processo e porventura não a parte mais importante, sanada a dependência do resultado da caça para a sobrevivência (eu devo ter esta condição muito atenuada). Do outro lado, a geração hambúrgueres e douradinhos tem em geral relutância em entender os processos através dos quais os seus alimentos prediletos são preparados, e nem as quintas pedagógicas, nem as hortas urbanas os demoverão de tal afastamento.
Estou em crer que a nossa geração ainda não assistirá a alterações de monta neste processo de obtenção de alimentos, só escrutináveis por quem olhará para trás, mas atrevo-me a antever que, à parte das alterações climáticas, a adoção de “comida sintética” como principal fonte de alimentos será o maior motor de mudança da paisagem.
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Fotografia de Gonçalo Calado