Continuo sem notícias do Pico Ramelau

De cada vez que o Telejornal fala de Timor, seja lá pelo que for, fico à espera que me falem também sobre o Pico Ramelau, há que tempos que não tenho notícias do Pico Ramelau, às tantas já toda a gente se esqueceu da importância que tinha o Pico Ramelau,

 

(o ponto mais alto de Portugal com dois mil novecentos e cinquenta metros de altitude),

 

como toda a gente parece ter esquecido os afluentes da margem esquerda do Tejo

 

(Sever, Sorraia e Coina)

 

e da margem direita do Douro

 

(Sabor, Tua e Pinhão, Corgo, Tâmega e Sousa),

 

que a gente seguia através da caninha do professor a indicar os risquinhos no mapa pendurado na parede – Portugal Continental, as Ilhas Adjacentes e as Províncias Ultramarinas – com o Alto Alentejo a rosa-choque e a Beira Alta a azul-pervinca, a caninha a desviar-se de quando em vez do mapa e da parede para mergulhar com um silvo tenebroso

 

tzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzziiiiiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuuuuuummmm

 

em direcção à orelha do distraído do Abilório da fila da frente, a regressar depois tranquilamente para a Serra dos Candeeiros, para o Maciço do Montejunto/Estrela ou para as Ilhas dos Bijagós, a orelha a crescer e a ficar encarnada enquanto o Abilório da fila da frente a esfregava para cima e para baixo com a mão como se esfregasse a alma dorida da humilhação da risota vinda das filas de trás, o retrato de Sua Excelência o Presidente da República, Senhor Almirante Américo de Deus Rodrigues Thomaz

 

(mais conhecido, em segredo, no recreio, pelo Cabeça de Abóbora),

 

a olhar reprovadoramente para o Abilório da fila da frente, quase ia jurar que consegui ler-lhe nos lábios

 

– Bem feito!,

ao mesmo tempo que a caninha avançava depois corajosamente pelas linhas reduzidas do Tua, do Vouga e do Sabor e pelo ramal de Trofa-a-Fafe e pelo caminho-de-ferro que ligava Luanda a Nova Lisboa que é coisa da qual, estou convencido, já toda a gente se esqueceu.

Ainda um destes dias, a meio do noticiário, me pareceu ver a orelha do Abilório da fila da frente, enorme como nunca a vi, encarnada como um bife do lombo cru, com o Abilório agarrado a ela com as duas mãos como se assim se defendesse melhor da humilhação da risota vinda das filas de trás, amuado com a natureza que o fez distraído, zangado com o padrinho que lhe pôs o nome de Abílio e o atirou, abecedariamente, para a visibilidade da fila da frente, amedrontado com aquele ruído de abelhão

 

tzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzziiiiiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuuuuuummmm

 

da caninha do professor agora entretida na exploração dos dezasseis quilómetros quadrados da Cidade do Santo Nome de Deus Macau, situada no delta do Rio das Pérolas, na descoberta do forte de São João Baptista de Ajudá e na delimitação do grupo oriental do arquipélago dos Açores, enquanto Sua Excelência o Presidente da República, Américo de Deus Rodrigues Thomaz, que há-de ficar para sempre na minha memória como o Cabeça de Abóbora, deixava cair os olhos de carneiro mal morto sobre o tampo de madeira inclinado da minha carteira, vasculhando os palavrões que a gente riscava a canivete, com certeza para fazer queixinhas à caninha, para a distrair da sua viagem ao longo da linha de caminho-de-ferro entre Lourenço Marques e a Beira, e a fazer baixar com a rapidez de um relâmpago num

 

tzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzziiiiiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuuuuuummmm

 

mais próprio de um caça-zero na batalha de Guadalcanal sobre a minha orelha que eu protejo já com a mão, antecipando-me, e procurando tapar com o braço livre os nomes femininos e corações entrelaçados que sulcávamos a canivete por entre os palavrões como se, com isso, puséssemos um fim à distância impreenchível do pátio de terra batida que ficava para lá do muro amarelo que nos separava do edifício onde estavam fechadas as raparigas.

Não era. Não era a orelha do Abilório da fila da frente, inchada de canadas e humilhações, era a reportagem sobre Timor que me deixa logo à coca de notícias sobre o Pico Ramelau, mas um silêncio profundo desceu sobre o Pico Ramelau, ninguém fala do Pico Ramelau, toda a gente já se esqueceu, certamente, da importância do Pico Ramelau

 

(o ponto mais alto de Portugal com dois mil novecentos e cinquenta metros de altitude),

 

como toda a gente parece ter-se esquecido – palavra!, vi outro dia num concurso – que o Tejo nasce na serra de Albarracim, já para não falar do enclave de Cabinda que está encaixado entre o Congo Francês e o Congo Belga, das seis ilhas de Cabo Verde que formam o grupo de Barlavento

 

(Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, Boavista e Sal, com os ilhéus Branco e Raso),

 

e da protecção natural da orla costeira ocidental – Berlengas, Farilhões, Forcadas e Estelas.

Não era. Não era a orelha sacrificada do Abilório da fila da frente, as balas das milícias indonésias talvez fizessem um

 

tzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzziiiiiiiiiiiiiiuuuuuuuuuuuuuuummmm

 

muito parecido com o da caninha amaldiçoada que fugia volta e meia dos sopés das serras de Montemuro e Leomil, mas não havia nenhum retrato de Sua Excelência o Presidente da República, o Senhor Almirante Américo de Deus Rodrigues Thomaz, a olhar-nos numa insistência maldosa de molduras, pendurado na parede branca onde era capaz de jurar que lhe lia nos lábios

 

– Bem feito!,

 

de cada vez que nos via a esfregar as orelhas doridas com as mãos de esquecer humilhações, não havia lancheiras de pão com marmelada escondidas por debaixo das tampas inclinadas de madeira das carteiras à mistura com canetas de tinta permanente que tinham o vício terrível de entornar uma tinta muito pouco permanente, nem havia sequer maneira de alguém me trazer notícias desse Pico Ramelau que não sou capaz de esquecer mas que já perdi algures na cartografia da vida.

Relacionados

Simpatia Inacabada #10
Filosofia e História
Alda Rodrigues

Simpatia Inacabada #10

APANHAR AMORAS #2   Tudo existe para se transformar em palavras? Nós próprios podemos ser só respiração que deseja transformar-se noutra coisa. Em vez de falarmos em voz alta, murmuramos, como a água a correr, os ramos das árvores ao vento, as abelhas e outros insectos. Música do sentido? No

Ler »
Dicas de beleza para futuros falecidos
Boa Vida
Rafaela Ferraz

Dicas de beleza para futuros falecidos

Há duas fases da vida em que se torna absolutamente essencial ter uma rotina de cuidados de pele: a vida propriamente dita, e depois a morte. Felizmente, a indústria da beleza fatura cerca de 98 mil milhões de dólares por ano nos EUA, a indústria funerária 23 mil milhões, e

Ler »
George Carlin e a Verdade na Comédia
Artes Performativas
Pedro Goulão

George Carlin e a Verdade na Comédia

“Dentro de cada cínico, existe um idealista desiludido” Quando comecei a escrever na Almanaque, o Vasco M. Barreto pediu-me que não escrevesse sobre o estafado tema dos limites do humor. Aceitei, mesmo tendo em conta que isso era um limite ao humor, pelo menos o meu, e que alguns números

Ler »