Quando eu andava na escola primária, subia a Rua Arquiteto Paulino Montez e despedia-me da Cláudia um pouco antes de chegar a casa. Não éramos bem vizinhas, porta a porta, mas quase. A Cláudia era irmã do Albertino e de mais três irmãs. A casa era de esquina e tinha um pátio gigante. Naqueles tempos, era um pátio gigante, mas há dias passei por ele e pareceu-me minúsculo. O Albertino, seu irmão, fez-se Beto. Assim ficou conhecido o artista, cantor, cujo percurso se fez passo a passo até chegar ao reconhecimento. Considerado um dos melhores cantores de música romântica daquele tempo, lançou vários álbuns, fez parcerias com Rita Guerra e outros cantores cujo nome deixou de encher salas, mas figura na história da música portuguesa. Quando eu andava na escola primária e os meus pais permitiam que almoçasse na casa da Cláudia, era uma grande alegria. O Beto já mal aparecia porque tinha uma diferença de idades considerável das suas quatro irmãs. Era o orgulho da casa, mas já estaria a traçar o seu destino de artista e não o víamos muito. Tenho a sensação de que deve ter sido um percurso muito difícil, uma conquista feita do sangue da persistência. Foi circulando entre bandas, como voz de apoio, e pouco a pouco alcançou contactos com Lisboa e as primeiras editoras. Quem nascia em Peniche, essa península sempre marcada por fome e privação sazonal, não estava com o rabo naturalmente virado para as estrelas. Era preciso desgaste e enfrentar a inveja e desconfiança por parte daqueles que o viam crescer como artista. Naquela que ainda era a sua casa, comíamos sempre peixe fresco acabado de sair do mar. Lembro-me do fogareiro aceso e de estarmos à espera impregnados com o cheiro que o fumo trazia. Comíamos sempre sardinhas, ou sargo ou carapau com batatas cozidas. Um privilégio. O pai passava muito tempo na ilha da Berlenga. Por isso, de quem me lembro bem é da D. Mariete. Tinha uns olhos azuis mais límpidos que o azul das águas intocáveis do Índico, e uma cabeleira loira muito farta, assim como todos os seus filhos, e também o marido. Era uma mulher muito calma, e muito forte. Lá na terra chamavam russos às pessoas loiras como eles. A D. Mariete recebia-me sempre com ternura e eu ficava toda contente por podermos ir brincar o resto da tarde no pátio porque já tínhamos tragado a escola das oito às treze e de escola já bastava até ao dia seguinte. O Beto, Albertino Veríssimo, morreu há treze anos de um súbito ataque cardíaco. Tinha quarenta e três anos. Lembro-me de me terem dado a notícia e de ter ficado muito triste por ele e porque, na verdade, eu nunca mais soube ou procurei a Cláudia nem os seus irmãos ou pais e não tinha como dizer-lhes que me lembrava deles, e do seu filho tão querido, e quanto lamentava a sua perda. Há dias, num programa da tarde resolveram fazer uma pequena homenagem à pessoa mais famosa da minha rua, e do meu bairro, e da minha terra: o cantor Beto. A D. Mariete foi recordar o seu filho à televisão e reconheci os seus olhos claros e a sua enorme bondade. Estava o seu rosto envelhecido, claro, mas qualquer coisa me reacendeu fogos de infância quando descreveu as condições muito difíceis em que criou os cinco filhos. Também disse que está desejosa de que chegue o momento de se juntar ao seu filho Beto, o seu tão amado filho. A D. Mariete está quase cega, embora não totalmente. Então eu olhei-a, com os olhos de espectadora que não lhe podiam chegar, e não me conseguia desligar da sua imagem porque me atacavam memórias de convivência de um tempo em que era demasiado pequena para valorizar o seu sorriso materno e cuidador. Não voltei a ver a Cláudia, como não voltei a ver tantos outros amigos que fizeram parte da minha infância e do meu crescimento. Unem-nos tantas coisas que nem sequer sonhamos. A rua que subíamos e descíamos, incansáveis. Os tempos em que saltávamos o muro para jogar à bola na escola preparatória, ou quando arranjávamos dinheiro para comprar pirolitos ao senhor dos tremoços. Mesmo na porta debaixo da casa da Cláudia, e do Beto, e da D. Mariete, estava uma mercearia onde pela primeira e única vez fui apanhada a roubar um pacote de sugos de morango. Mesmo em frente à casa da Claúdia, do outro lado da rua, ficava uma pequena vila, como as vilas de operários que há por Lisboa. Ao lado, um bebedouro, e depois um acampamento da comunidade cigana que ali se foi instalando. Todos estes fragmentos de memórias me subiram ao sangue quando ouvi, e vi, a mãe do Beto falar na televisão. E cada vez mais sinto que há pessoas com quem vivi momentos tão fortes que podia ser bom que as nossas cabeças se alinhassem e de vez em quando todos ríssemos ao mesmo tempo daqueles momentos. Mas isso não acontece. E escolhi este momento para escrever de alguma maneira ao Beto que, embora nunca lho tenha dito, sempre tive muito orgulho em que tivesse rasgado os limites da sua rua para sair dali e ir fazer o que mais gostava, que era cantar.


Uma peta sobre a Ucrânia
Ante Gotovina, ex-legionário francês, regressa à Croácia em 1990. Em 1996 é designado comandante do distrito militar de Split, dois anos depois é promovido a major-general. A 4 de Agosto de 1995 o exército croata captura Krajina e Gotovina instala-se. O Tribunal Penal Internacional publica em Maio de 2001 a