Da série personagens do meu país (4): Hércules Dias

Deixou uma marca indelével na política e no jornalismo português. Amigo do seu amigo, defensor das populações com dificuldades, suportou, no entanto, uma campanha de ódio e maledicência como poucos. Multifacetado, foi autarca, deputado, jornalista e escritor. Na sua morte, em 2004, dele disse Almeida Santos: Não morreu um homem, nasceu uma herança de probidade, cultura e dedicação.

Hércules Dias nasceu na Guarda, em 1930, num ambiente politizado e intelectual. O pai, licenciado em Química, foi professor do liceu e envolveu-se, na região da Guarda, na reestruturação corporativa que Salazar empreendeu a partir de 1935. O tio paterno, Marcolino, jornalista, foi durante muitos anos a alma do Jornal do Fundão. Hércules estuda em Coimbra, onde se licencia em Engenharia Civil, empregando-se depois na câmara municipal da Guarda. Nos anos 60 desdobra-se entre a autarquia e a construção civil através da sociedade que estabelece com dois primos empreiteiros. Segue as pisadas do pai no jornalismo e colabora activamente com o Notícias da Covilhã, antiquíssimo emblema da imprensa regional, propriedade da diocese da Guarda, tarefa facilitada pela intensa actividade católica da sua mulher na Casa da Sagrada Família da Guarda (Dominicanas de Santa Catarina de Sena). Mercê do trabalho em prol do progresso do país, que se nota desde que Marcello Caetano assume a liderança, concorre pelas listas da União Nacional e assume o lugar de deputado na Assembleia Nacional, a 15 de Novembro de 1973.

O 25 de Abril apanha-o desprevenido, mas logo se adapta, evidenciando a sua superior inteligência e valor. Durante o Verão Quente depressa reconhece no PS um baluarte da democracia e preenche a ficha de inscrição em Junho de 1975. Com a sua empresa refém da comissão de trabalhadores, a adesão aos socialistas permite-lhe compreender melhor as necessidades das massas trabalhadoras e oprimidas. Recupera a empresa e assume a vereação das Obras Públicas na Câmara da Guarda, nas primeiras eleições autárquicas em democracia.

Enfrenta então a primeira vaga da campanha de ódio e maledicência, através da qual cobardes anónimos permitem-se ligá-lo “ao Estado Novo e ao fascismo”. Num artigo publicado no Notícias da Covilhã, responde aos críticos. Rebate a acusação demonstrando que a convivência com elementos da Legião Portuguesa e da Igreja era uma obrigação do seu estatuto. Quanto ao papel de deputado pela União Nacional, explica que os regimes também se mudam por dentro e foi essa a sua intenção mais límpida, daí as conversas secretas que manteve com a Ala Liberal.

Seja como for, à entrada dos anos 80, Hércules Dias vê a sua vida política e de cidadania cobrir-se de um manto de discrição. Trabalha afincadamente nas estruturas locais do PS, trabalho esse que acaba por lhe valer um lugar em Macau, que aceita com entusiasmo indisfarçável. Na futura ex-colónia, trabalha sob as ordens de Carlos Melancia e Rocha Cabral. São tempos de evolução profissional e muito trabalho, sem dúvida, mas os problemas do caso TDM levam-no a acompanhar a exoneração dos mesmos.

Regressa à Guarda e divorcia-se. Volta a casar, com Sueli mei-Han, sua secretária em Macau, e vai viver para Lisboa, mantendo, no entanto, fortes ligações à Guarda e à política local. Jorge Coelho e José Vitorino recorrem frequentemente à sociedade de consultadoria que Hércules cria, sociedade essa que aproveita a experiência macaense do seu sócio  principal. Em 2002, publica Memórias políticas de um servidor de Portugal (Ed. Estrela), onde se defende da segunda vaga de críticas virulentas. Recusa ter abandonado o catolicismo em prol da maçonaria, desmente ter enriquecido em Macau, nega favorecimento dos governos de Guterres à sua empresa. Afirma que foi sempre um homem e a sua circunstância, uma circunstância socialista, desinteressada de tudo o que não seja a defesa dos oprimidos.

Morre, como dissemos, em 2004, na sua quinta nos arredores da Guarda, ao cair, acidentalmente, numa vala fétida.

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