Demorei alguns anos para conseguir ter uma resposta eficaz, engatilhada, à simples, mas frequente questão: ‘O que é que tu fazes?’. Em resposta, facilmente me perdia nos detalhes e deixava de parte o essencial. As expressões de confusão, e repetidamente de aborrecimento, encontradas no outro interlocutor deixavam-me frequentemente frustrado e com o sentimento de que tinha falhado naquilo que deveria ser a minha missão mais simples, comunicar o que é o meu trabalho de forma eficaz e acessível. A verdade é que, até muito recentemente, a comunicação de ciência sempre foi o parente pobre para a maioria dos cientistas, aqui me penitencio. Com o passar dos anos, e muitas conversas depois, consegui refinar a minha resposta para aquilo que hoje me parece ser o mais certeiro: ‘Sou geofísico e trabalho com ferramentas matemáticas que nos permitem saber mais sobre o que está debaixo dos nossos pés’. Meço o sucesso da minha resposta pela cara de curiosidade de quem está à minha frente. A partir daqui o caminho é sempre mais fácil.
Em oposição à premissa simples de saber o que está debaixo dos nossos pés, está um sistema natural, dinâmico, altamente complexo, difícil de descrever e frágil: a Terra. O que me fascina naquilo que faço diariamente é a possibilidade de obter imagens, ou representações numéricas e computacionais, do interior do nosso planeta a várias profundidades, desde o seu interior mais profundo até a poucas dezenas de metros no subsolo, e do impacto que este sistema tem nas nossas vidas e as nossas vidas neste delicado sistema.
Mas este texto não é sobre mim, é sobre a necessidade de trazer para o espaço público temas relacionados com as ciências da Terra, as geociências, por estas desempenharem um papel central no nosso quotidiano (como por exemplo o local onde construímos as nossas casas), no combate à crise climática e nas transições energética e digital, que se querem rápidas e acima de tudo sustentáveis em todas as suas dimensões. A falta de uma discussão alargada sobre estes tópicos, e a consequente falta de consciência social para as geociências, impacta diretamente em pelo menos dois aspetos. Por um lado, há falta de estudantes do ensino superior em licenciaturas e mestrados de alguma forma relacionados com estas temáticas porque existe a falsa perceção de que são áreas do conhecimento que ‘não interessam’ e pouco avançadas tecnologicamente. Por outro, facilmente se propagam conceitos e argumentos que se perpetuam no tempo, mas que têm pouco ou nenhum suporte científico.
Este texto foi-se construindo após uma visita recente à exposição ‘Desejos Compulsivos: A Extração do Lítio e as Montanhas Rebeldes’[1] com curadoria de Marina Otero Verzier e patente na Galeria Municipal do Porto até 28 de Maio de 2023. A deslocação ao Porto vale pelo conteúdo artístico da exposição que interpreta, e especula, sobre a extração e produção de uma matéria-prima natural, o lítio, e o impacto que este processo pode provocar nas populações locais e no ambiente. É uma exposição em tour mundial, e que no Porto se foca no caso nacional mais conhecido, a especulativa exploração de lítio em Covas do Barroso. Não querendo reduzir o papel da arte a uma perspetiva puramente utilitária, perde-se o que poderia ser um espaço de cocriação e de uma discussão tripartida, como a própria exposição está construída, entre a necessidade de alterar o modo de produzir energia, a consequente necessidade de recursos minerais e os potenciais impactos negativos a nível local e global associados à exploração destes recursos.
O futuro constrói-se sobre uma linha ténue entre a necessidade de uma melhor gestão dos nossos recursos naturais, e a rápida transformação da matriz energética que acontece freneticamente nos países mais ricos. Nestes territórios, e até muito recentemente, a produção de energia era fortemente alicerçada na queima de carvão e hidrocarbonetos, com a emissão de grandes quantidades de gases que contribuem para o aquecimento global, tendo sido recentemente substituída em grande parte pela utilização de fontes renováveis. A face menos visível desta tão desejada transição energética é a necessidade de grandes quantidades de recursos da Terra, minerais críticos, para a fazer cumprir. São exemplos destas matérias-primas o vanádio, o cobalto, o tungsténio, o nióbio, o fósforo e o lítio, que, como quase tudo na natureza, não se encontram uniformemente distribuídos geograficamente, mas em localizações muito específicas. Estes minerais são componentes fundamentais das tecnologias produtoras de energia verde (geradores eólicos e painéis solares, por exemplo) e também das baterias utilizadas para armazenar a energia gerada através destas fontes. Por outras palavras, com a tecnologia atual, o futuro que queremos cada vez menos dependente de combustíveis fósseis exige a exploração e produção de recursos minerais em grande escala e, preferencialmente, em circuitos socialmente e ambientalmente sustentáveis, desde a sua origem até à sua aplicação no produto final.
Surge-me uma analogia. Estamos neste momento a conduzir, num carro elétrico claro, numa daquelas estradas em que só é permitido viajar a alta velocidade e temos agora uma trifurcação. Podemos seguir, alegremente, o caminho que nos trouxe até aqui, não procurar alternativa e atingir o previsível abismo. Podemos escolher o caminho que nos obriga a voltar atrás no tempo, para piores condições de vida, não apostar nas energias renováveis e deixar de queimar combustíveis fósseis. Ou podemos optar pelo caminho alternativo que nos permita ganhar tempo através da generalização de fontes de energia renováveis e atingir as metas relacionadas com o desenvolvimento sustentável e da neutralidade carbónica antes de 2050. Este talvez seja um caminho sinuoso, mas que certamente nos obriga a um compromisso sério de utilização sustentável dos escassos recursos naturais existentes desde a sua fonte até à sua aplicação no produto final.
Voltando ao início, é hoje possível prever a distribuição espacial das propriedades geológicas das rochas do subsolo a quilómetros de profundidade com uma precisão espacial de apenas algumas dezenas de metros. A precisão destas previsões aumenta à medida que nos aproximamos da superfície da Terra podendo chegar a dezenas de centímetros. Todas estas previsões, associadas a um valor de incerteza (ou risco), permitem uma decisão mais informada. A combinação dos métodos geofísicos existentes e das ferramentas mais recentes da estatística espacial permite-nos construir modelos, ou representações computacionais, do interior do nosso planeta capazes de descrever com enorme detalhe as tais dinâmicas complexas e a variabilidade natural do planeta que pisamos. São modelos deste tipo que nos permitem planear e construir casas mais seguras e com menor risco sísmico e com construções adaptadas às propriedades geológicas e geotécnicas do subsolo. Estes modelos são ainda essenciais para que se desenvolvam, ou não, planos de exploração dos recursos naturais que tomam em consideração dois fatores importantes: a maximização do recurso explorado, um critério económico; e a minimização dos impactos ambientais e sociais do processo de exploração, um critério de responsabilidade social. O que ainda falta implementar de modo efetivo é colocar o ser humano, o meio ambiente, e as várias dimensões do território em questão correspondente a todo o percurso desde a origem da matéria-prima até ao seu destino final, no centro do desenvolvimento da tecnologia e no processo de decisão. Cumprir este objetivo exige uma abordagem interseccional.
Os eventos como a exposição em exibição no Porto são uma oportunidade para a criação de um espaço comum de cocriação e de discussão das diferentes perspetivas existentes sobre as possíveis soluções de um problema crítico, a crise climática, a transição energética e os problemas que daí possam ser gerados se nenhuma medida de monitorização e mitigação for implementada. Foi isso que aconteceu no grupo de amigos que comigo visitou a exposição nesse dia. É na partilha que se geram soluções criativas e robustas para problemas difíceis. Visões enviesadas do nosso mundo têm-se frequentemente revelado insuficientes para responder aos desafios que atravessamos, fazendo-nos escolher muitas vezes alternativas não ótimas.
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[1] https://contemporanea.pt/edicoes/04-05-06-2023/desejos-compulsivos-extracao-do-litio-e-montanhas-rebeldes

Ilustração de Carolina Celas