Texto de Gonçalo de Carvalho Amaro, autor convidado.
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Não foram 30 pesos, foram 30 anos
Por volta das onze da noite de 17 de dezembro de 2017, perante um Sebastián Piñera sorridente, um grupo de chilenos entoava o hino do Chile: “Puro, Chile, es tu cielo azulado; puras brisas te cruzan también; y tu campo de flores bordado; es la copia feliz del Edén…”. Seria agora que o Chile se tornaria no paraíso, na cópia perfeita do Éden, que os políticos chilenos queriam alcançar em meados do século XIX? Era a segunda vez, desde 1989 (data das primeiras eleições democráticas após a ditadura de Augusto Pinochet), que a direita era eleita, tinha-o sido anteriormente há quatro anos, sempre com Piñera: empresário de sucesso, conhecido por ter votado contra a continuidade de Pinochet, pelas suas ideias liberais (apreciadas no país dos Chicago Boys[1]) e pela sua vontade de palco. Esta vitória soube melhor que a anterior, sobretudo porque o bloco de direita, conhecido por Chile Vamos (que agrupava partidos conservadores e liberais do ponto de vista económico), tinha conseguido vencer com uma vantagem de dez pontos percentuais, e contra uma coligação maior à esquerda que, a partir da segunda eleição de Michelle Bachelet, em 2013, para além dos tradicionais partidos de centro-esquerda da Concertación (Partido Socialista de Chile, Partido Radical, Partido Por la Democracia e Democracia Cristiana), passou também a incluir o Partido Comunista, este novo bloco denominava-se agora de Nueva Mayoria (Nova Maioria).
Passados dois anos, o cenário era o oposto, e os sorrisos, se os havia, eram falsos. O governo de Piñera já era considerado o “pior da história contemporânea”, com a região da Araucanía (no sul do país) a ferro e fogo, com casas a serem queimadas por movimentos terroristas mapuche[2]; com uma emigração descontrolada, sobretudo venezuelana[3], e com o aumento do preço do metro, em finais de 2019, que viria a desencadear uma forte onda de protestos[4], materializando-se na destruição de vários edifícios públicos, igrejas e estações de metro, com o centro de Santiago tomado por manifestantes durante meses. Os militares voltaram às ruas, como em 1973, e só a pandemia de COVID-19 veio a apaziguar os conflitos nas ruas de Santiago e Valparaíso. Começou a ser questionado todo o modelo político chileno, estabelecido na constituição implementada em 1980, em ditadura, que basicamente consagrava o papel subsidiário do Estado chileno. Assim, e muito sucintamente, a constituição chilena defendia que o Estado só intervém na vida social e económica quando a iniciativa privada não tem interesse em fazê-lo. Isto significa que direitos sociais como a saúde, a educação e as pensões são em grande medida proporcionados pelo setor privado e sob as regras do mercado. As constantes críticas a este modelo subiram de tom em outubro de 2019 (o principal slogan dos manifestantes era precisamente “no fueron 30 pesos, fueron 30 años”), com massivas manifestações e exageros, levando Piñera a aprovar um plebiscito nacional e perguntando aos cidadãos se queriam mudar a constituição, e criar uma convenção constitucional, o que viria a ocorrer em outubro de 2020. Os resultados foram esmagadores em ambos os casos, tanto na resposta a se desejavam uma nova constituição, como se queriam uma convenção constitucional (equivalente a uma assembleia constituinte) para redigir uma nova constituição – foi alcançada uma votação de 79%, resultados nunca antes vistos no Chile em eleições, nem mesmo na segunda eleição presidencial de Bachelet. Apenas votaram contra as três comunas (municípios, são 36 só em Santiago) do setor oriental de Santiago (Vitacura, Las Condes e Lo Barnechea), que concentram a maior riqueza do país[5], Colchane, na fronteira com a Bolívia (local de enormes tensões migratórias) e a base militar chilena na Antártida.
Nas sondagens começava a aparecer o impensável: o famoso alcalde comunista Daniel Jadue, presidente de uma das comunas mais humildes de Santiago, liderava nas intenções de voto para as eleições presidenciais de 2021, mas a segunda alternativa, nas intenções de voto era José António Kast, ex-militante do partido mais à direita no Chile até 2017, a UDI (Unión Democrática Independiente). Partido liberal no económico, ultraconservador nos costumes, com várias ligações a setores católicos mais conservadores como o Opus Dei ou os Legionários de Cristo, assim como a setores evangélicos. Kast fundara, em 2019, o Partido Republicano, ainda mais à direita que a UDI, e contava nas suas fileiras com vários saudosistas do regime de Pinochet, como Rojo Edwards e Gonzalo de la Carrera, bem como com suprematistas brancos e misóginos, como Johannes Kaizer e Sebastián Izquierdo. Os blocos tradicionais dos partidos de centro-esquerda e centro-direita, a Concertación e o Chile Vamos, que durante praticamente 40 anos dominaram o sistema político binominal do Chile[6], não apresentavam candidatos nos primeiros lugares das sondagens, o que depois se veio efetivamente a verificar nas eleições presidenciais.
A surpresa Boric
Para além destes dois blocos tradicionais, surgia um terceiro bloco também à esquerda que se começara a constituir para as eleições presidenciais de 2017, trata-se da Frente Ampla (em castelhano Frente Amplio[7]), agrupamento que se mostrava como a nova esquerda e que era composta por partidos que se definiam como social-democratas, eco-socialistas e regionalistas de esquerda. Os frentistas viriam mais tarde a fazer parte da Internacional Progressista de Bernie Sanders e Yanis Varoufakis. Seria esta força que apoiaria a eleição de Boric, vencendo nas primárias da esquerda a Daniel Jadue, o candidato do PC (que, entretanto, já tinha abandonado a sua ligação ao bloco da Nova Maioria para participar nas primárias do bloco mais à esquerda com a Frente Ampla). Ficando em segundo lugar na primeira volta nas eleições presidenciais, mas derrotando, na segunda volta, com relativa vantagem, José Antonio Kast, numa segunda volta que ficaria para a história por apresentar dois candidatos considerados extremistas. Mas como é que este jovem, Boric, chega à presidência com 36 anos (a idade mínima no Chile para apresentar uma candidatura presidencial é de 35 anos), sem apresentar grande experiência política para além de dois mandatos de deputado, sendo que, inclusivamente, o último mandato não foi completado, pois renunciou ao cargo para tratar o seu público Transtorno Obsessivo Compulsivo que o atormentava desde a infância?
Na apresentação da candidatura de Boric, a 18 de maio de 2021, a sala estava vazia, havia pouca expectativa de que um candidato da Frente Ampla pudesse vir a derrotar Jadue, mas entre os poucos presentes estava Giorgio Kenneth Jackson, também na casa dos 35 anos como Boric, ambos tinham sido destacados líderes estudantis da emblemática mobilização de estudantes universitários e do ensino secundário que, em abril de 2011, criticaram o modelo educativo do país e paralisaram, por cerca de dois meses, as universidades e escolas públicas. Os estudantes questionavam sobretudo o facto de as universidades tanto públicas como privadas apresentarem propinas bastante elevadas (em média entre 400 e 500 euros por mês, isto é, mais elevadas que o salário mínimo do país). Além disso, o Estado chileno, de acordo também com a constituição de 1980, apenas prestava, no caso de bolsas de estudo, um apoio de 25% sendo os restantes 75% pagos pelos estudantes através de empréstimos bancários. Resultando assim que, apenas uma minoria de alunos de escolas públicas conseguia atingir as universidades, e apenas aproximadamente 1% dos alunos de conseguiam entrar nas duas principais universidades: a Pontificia Universidad Católica de Chile e a Universidad de Chile[8]. Os grandes destaques destas manifestações foram os presidentes das Associações de Estudantes destas duas universidades, Jackson, pela Católica, e Camila Vallejo Dowling[9] pela U. Chile, ambos acabando por vir a fazer parte do governo de Boric. No entanto, a meio deste processo de manifestações (que, no caso da Universidade do Chile chegou a ter paralisações e manifestações de abril até dezembro), Gabriel Boric ganhou as eleições para a Federação de Estudantes da Universidade do Chile substituindo assim Vallejo (que o The Times, em tempos, chegou a catalogar como a revolucionária mais glamorosa do mundo), e o comunismo pelo socialismo. Boric e Jackson acabariam por se entender bem.
Neste processo a grande surpresa foi sem dúvida Jackson. A Universidade do Chile sempre teve associações de estudantes de esquerda, mas na Católica era raríssimo, e Jackson juntamente com o NAU (Nueva Acción Universitaria), lista de centro-esquerda que viria a controlar a Associação de Estudantes da Católica por seis anos consecutivos – feito único para uma lista de centro-esquerda que nunca tinha conseguido mais de dois anos seguidos naquela universidade – viria a mudar completamente o panorama político chileno dos últimos anos, atraindo os jovens de elite da Católica para a esquerda (muitas estruturas católicas no Chile já eram sensíveis às questões sociais; nos colégios jesuítas, a maioria de elite, era comum os alunos fazerem trabalho comunitário em bairros sociais), para uma nova esquerda, menos ligada ao passado, ecologista e apologista da democracia participativa, que tinha como modelo o estado-social europeu, e não a esquerda cubana ou mexicana (a primeira, fonte de inspiração para o PC e a segunda, para o PS e para o Partido Radical).
Jackson, em conjunto com outros fundadores do NAU, lança, em 2012, o movimento político Revolución Democrática com a finalidade de criar um novo partido político chileno, o que viria a suceder mais tarde. Em 2013, é eleito deputado por Santiago (Jackson é de Viña del Mar) com quase 50%, ainda sem o apoio oficial de nenhum partido. Em 2017, com 30 anos, torna-se o deputado eleito com maior número de votos de todo país, indício da sua grande popularidade, sendo reconhecido pela opinião pública como “um dos deputados mais responsáveis e trabalhadores”. No ano anterior teve um papel preponderante na criação da Frente Ampla, agrupamento de partidos que visava ser uma alternativa ao bloco de partidos de direita, Chile Vamos, e do bloco de esquerda, a Nova Maioria. O partido de Jackson, Revolución Democrática, era o grande motor dos frentistas e o próprio deputado a sua figura maior, provavelmente a grande esperança para substituir os candidatos da Concertación na segunda volta presidencial de 2026. Boric, que se tornara muito próximo de Jackson, inscreveria também o seu pequeno partido (com características regionalistas, Boric é natural da região de Magalhães[10]) Movimiento Autonomista, na Frente Ampla – mais tarde, ainda antes das primárias e agrupando outros pequenos partidos de esquerda, mudaria o nome para Convergencia Social.
Como resultado do esgotamento dos chilenos em relação aos exageros cometidos nos protestos de 2019, e do discurso agressivo de Jadue e Kast, as pessoas valorizaram aquele candidato inesperado que defendia mudança, mas através de um discurso positivo e humanista. Boric usava muitas vezes as expressões: “ser mais humanos”, “temos direito a viver melhor”, “proteger a natureza e os nosso povos originários” e “respeitar a diferença”. Essa proposta teve os seus frutos e Boric, contra as expetativas iniciais, seria eleito.
Um novo Allende?
Durante os três meses de transição (no Chile o presidente é eleito em dezembro, mas só toma posse em março), houve um certo temor por parte das empresas estrangeiras, algumas famílias de maior riqueza deixaram o país com o temor de que se repetissem os momentos vividos no período 1971-1973. Jackson nunca escondera a sua admiração por Allende, mas Boric quando confrontado, em 2022, pelo famoso jornalista Jon Lee Anderson para o The New Yorker sobre se iria seguir o modelo de Allende, mostrou-se desconfortável, afirmando, sem grande convicção, que o admirava, mas que não tinha modelos estáticos. Os temores das empresas e das elites revelaram-se infundados e, de facto, passados os três meses, Boric apresentou um governo de tendência social-democrata. Note-se que chamou para ministros mais elementos dos seus rivais da Concertación do que propriamente do PC que o apoiou na candidatura desde a derrota nas primárias, e agora passado um ano, mantém um apoio dividido por parte desse partido, sobretudo depois de ter classificado o regime da Venezuela como pouco democrático e ter sido o único presidente latino-americano de esquerda a questionar a legitimidade das eleições na Nicarágua. Tendo em conta a juventude dos quadros da Frente Ampla, Boric recorreu a nomes fortes da Concertación (que o apoiaram na segunda volta) para lugares chave do governo, como Carolina Tohá para o Interior, ou Alberto van Klaveren para os Negócios Estrangeiros (ambos do social-democrata Partido pela Democracia), o moderado socialista Mario Marcel para as Finanças ou a radical Marcela Hernando, para o ministério de Minas (os minérios, sobretudo, cobre e lítio, são uma importante fonte de riqueza do Chile). Para o PC entregou a Secretaria-geral do governo (uma espécie de porta-voz do governo) a Camila Vallejo, o Ministério do Trabalho e o Ministério da Ciência (entretanto entregue a um independente), contudo, dos 35 ministérios, destacam-se os três ministros do partido Revolución Democrática de Giorgio Jackson a principal força da Frente Ampla. Apesar de a experiência governativa não estar a correr muito bem a Jackson, contrariando o sucesso que teve enquanto líder estudantil e deputado, depois de lhe ter corrido mal a experiência enquanto ministro de Estado, salvando-se por pouco de um processo por incumprimento da Constituição por parte da Câmara de Deputados, foi recolocado como ministro do Desenvolvimento Social e da Família.
Não tem, portanto, a mesma metodologia que Allende, pois este, em 1970, negou qualquer aproximação à Democracia Cristã de Radomiro Tomic (na altura bem mais de centro-esquerda que a atual Democracia Cristã que faz parte da Concertación), e que, em determinado momento, começou a perder os seus apoios moderados dentro da Unidad Popular, como o Partido Radical ou o Partido Social Democrático. Eram tempos de Guerra Fria e foram tomadas opções. A visita de Fidel Castro ao país em finais de 1971 caiu mal a muita gente, sobretudo porque o líder cubano prolongou a sua visita de 10 dias para um mês e abusou um pouco da sua estadia, permitindo-se viajar por todo o país e inclusivamente realizar comícios em universidades, fábricas e entre os agricultores. Allende estava a escolher um caminho. A partir de 1972, deixou que movimentos minoritários como o MIR (Movimiento de Izquierda Revolucionaria) ou o MAPU (Movimiento de Acción Popular Unitaria) assumissem um papel mais ativo, permitindo inclusivamente que andassem com armas. De modo que, em 1973, o governo de Allende tinha um apoio minoritário no âmbito parlamentar e não era apenas criticado pelas elites, mas também pela classe média (que tinha sido fulcral para a sua eleição em 1970). Assim se explica que o Golpe Militar de 1973, numa primeira fase, tenha sido apreciado pelos partidos do centro, apesar de ter acabado por ser um desastre para as aspirações futuras dos políticos centristas, inclusivamente para algumas figuras que poderíamos incluir no centro-direita, como o ex-presidente Eduardo Frei, que viria a ser envenenado pelo regime de Pinochet. Para esta brutal ditadura qualquer figura (de esquerda ou de direita) que demostrasse abertamente uma defesa dos interesses democráticos acabava assassinada; nisso Frei não foi diferente do comunista Pablo Neruda, ambos morreriam da mesma maneira e no mesmo hospital, a Clínica de Santa Maria.
Gabriel Boric também tem um projeto de certa forma revolucionário (aos olhos dos interesses das elites), tal como Allende. Quer acabar com o atual sistema privado de pensões (que permite que os acionistas destas empresas de gestão de fundos tenham lucros com o dinheiro dos pensionistas), quer também dar mais força ao setor público na saúde e na educação, mas até agora ainda não conseguiu cumprir nenhuma dessas suas promessas eleitorais – nisso Allende era mais reformador. Boric não apresenta também os dotes de oratória do antigo presidente de origem flamenga, mas aparenta ser mais humano, mais sensível, e isso no Chile parece ser um fator fundamental, veja-se o caso da presidente Michelle Bachelet: muitos beijinhos, muitos abraços, piadas simples, dançar cueca[11] com a população, mas os seus dois governos (2006-2010 e 2014-2018) foram dos menos reformistas que existiram no pós-ditadura, mesmo no segundo mandato com um apoio massivo que ia desde a Democracia Cristã até ao Partido Comunista. Bachelet continua a ser uma das políticas mais populares no Chile.
Em setembro de 2022 (no mês da pátria, como dizem os chilenos), Boric sofre a sua primeira derrota. Os chilenos que dois anos antes tinham votado esmagadoramente a favor de uma nova Constituição e tinham, um ano mais tarde, eleito uma assembleia constituinte, com muitos constituintes sem ligação partidária, que se tornaram famosos por aparecerem na televisão e nas redes sociais durante as manifestações de 2019, votaram com a maior participação de sempre (por ser de voto obrigatório) contra essa nova constituição, com o resultado de 62% contra e 38% a favor. Boric fez campanha pela implementação desta nova constituição, saiu claramente derrotado, poderia aqui, tal como Allende na crise de 1972, acantonar-se na extrema-esquerda, implementando políticas mais radicais, mas decidiu fazer o oposto, tornou-se centrista e, de certa forma, letárgico. Passou a redação da nova constituição para o politburo, sendo que agora o processo constituinte, já não surgiriam candidatos independentes, mas sim inscritos nos partidos que recomendariam os seus especialistas (conselheiros constitucionais) e proporiam as suas candidaturas. Boric mantém o seu princípio de nunca usar gravata, continua a viver no centro de Santiago, no bairro Yungay[12], um setor trendy da cidade, e tem um discurso inclusivo, mas as ações práticas, de mudança na sociedade chilena, não têm existido.
Essa letargia de Boric tem, apesar de tudo, sido bastante útil no panorama atual. Na minha última visita ao Chile, em finais de 2022, muitos chilenos de idade mais avançada confidenciaram-me que os últimos anos tinham sido difíceis com a crise social e com a pandemia, que as pessoas andavam violentas, que o ódio entre classes sociais estava visceral e parecia que tinham voltado a 1973, aos meses anteriores ao Golpe. Não obstante, apesar de ver alguns dos locais, onde gostava de passear no centro de Santiago, destruídos e vandalizados, senti que a “tempestade já tinha passado”, as pessoas estavam mais alegres, havia, isso sim, mais vendedores de rua que antes. Podia, por exemplo, comprar, em pleno centro, numa banca desmontável, aspirinas, antidepressivos, pílulas anticoncetivas e antialérgicos a preços bem mais reduzidos que nas farmácias. Os próprios jornais indicavam que o país estava mais calmo e isso deve-se, em meu entender, à moderação de Boric e à sua capacidade de manter sempre um discurso amigável e positivo (apesar de uma certa inoperância governativa). Neste momento, qualquer discurso ou ação mais agressivos poderiam detonar novamente a conflitualidade na sociedade chilena.
Uma experiência fracassada: um eventual regresso ao centro-direita, e a manutenção do modelo?
O fervor primaveril de 2019 (no hemisfério sul, a primavera começa entre finais de setembro e inícios de outubro), a vontade de mudança, a ideia de que os índices de riqueza que o Chile tinha apresentado nos últimos anos iriam ser redistribuídos pela população ou a suposta maturidade democrática, após 30 anos de democracia, não deram os seus frutos. Parece que foi mais uma tentativa progressista falhada, tal como a experiência de González Videla nos anos 40, ou a Unidad Popular nos anos 70. Em ambos os casos a resposta foi dura, dando origem a algumas das experiências mais conservadoras e repressoras – os chilenos parecem passar de um extremo ao outro muito facilmente, talvez por isso os políticos mais letárgicos sejam os mais eficientes. Agora, ninguém parece querer ouvir falar da experiência da assembleia constituinte, da “Tia Pikachu”, ou do “Pelao Vade”[13]. Este defraudar de expectativas parece ser uma constante nos Estados latino-americanos, algo que Nicanor Parra, o autodenominado anti-poeta e nome maior da poesia chilena após Neruda, resume com a seguinte frase: “Bien, y ahora ¿quién nos liberará de nuestros libertadores?”. As últimas sondagens, realizadas em março de 2023, indicavam já essa mudança. Para as presidenciais de novembro de 2025, Evelyn Matthei, a “alcaldesa” de Providencia, encabeçava as sondagens. Pertencendo ao partido conservador UDI, esta filha do General Matthei (o orgulhoso e conservador militar que obrigou Pinochet a reconhecer os resultados do plebiscito para a sua destituição) está nas antípodas das políticas propostas pela Frente Ampla, pertence a outra geração de políticos (fará 70 anos em novembro), à geração dos últimos 30 anos que foi tão duramente criticada em 2019, seria provavelmente uma regresso a esse passado e certamente implicaria a manutenção do “modelo neoliberal chileno”. Mas as recentes as eleições de 7 de maio para os conselheiros constitucionais – que irão redigir a nova constituição – deram já um sinal efetivo de que o país (que em 2020 estava completamente à esquerda, elegendo conselheiros maioritariamente de extrema-esquerda) mudou. Não eram apenas sondagens, mas a realidade. O partido mais votado foi o Partido Republicano que, como vimos anteriormente, é um partido de extrema-direita, muito próximo do VOX de Espanha, por exemplo. O medo e a sensação de insegurança, real e também exacerbada pelos media, levaram a que crença em Boric se esvaziasse.
O país já não é o mesmo em relação àquele panorama que foi apresentado pela televisão francesa nos anos 60, para mostrar aos franceses como era aquela “República do Fim do Mundo” onde se iria realizar o Mundial de Futebol de 1962, no qual a palavra de ordem foi: “Este país precisa de uma reforma agrária”. A riqueza do cobre e do lítio (que tornaria a China no seu maior parceiro comercial), parece agora dar outra estabilidade ao Chile – o país é também agora essencialmente urbano, mas as marcas do modelo da encomienda no Chile foram muito fortes. Até à Segunda Guerra Mundial o país, sobretudo nos Vales Centrais[14], e com exceção das áreas das grandes cidades, estava dividido numa dúzia de grandes propriedades e por um número similar de famílias. Na hacienda ou fundo, havia de tudo, escolas, igrejas, médicos, mercearias; os trabalhadores (quase todos eles descendentes dos povos originários do Chile ou mestiços) eram pagos com fichas que depois usavam para pagar serviços, praticamente não circulava dinheiro, os trabalhadores viviam nestas propriedades por várias gerações: uma espécie de esclavagismo ou feudalismo encapotado.
Apesar da mudança, o Chile continua a ser um país centralizado tanto em termos governativos como populacionais. Um país muito comprido e estreito, uma autêntica ilha separada do resto do continente sul-americano pela cordilheira dos Andes, a oriente; pelo deserto, mais seco do mundo, o Atacama, a norte e a ocidente; e a sul pelo oceano Pacífico e pelo oceano Antártico; onde aproximadamente 70% da população vive no centro, entre as cidades de Concepción e La Serena. A concentração é ainda maior no raio de 100 quilómetros que liga as áreas metropolitanas das cidades de Santiago (capital) e Valparaíso (sede do parlamento e do senado), onde vivem, entre as duas áreas metropolitanas, aproximadamente 10 milhões de pessoas, sendo que a população total atinge cerca de 20 milhões de habitantes numa superfície de 760 000 km2.
No atual modelo chileno que impede que um presidente se volte a candidatar para a legislatura seguinte, é provável que Boric venha a ser novamente presidente em 2030, capitalizando algum descontentamento que o governo conservador de Matthei venha a gerar. Já Jackson, o grande ideólogo da mudança, aquele jovem promissor que liderava a juventude de boas famílias nos voluntariados da Católica pelos bairros sociais de todo país, ajudando a construir casas para os mais desfavorecidos (no âmbito do programa Un Techo para Chile), provavelmente nunca será presidente. As lideranças têm ciclos e o de Jackson parece ter acabado, ao contrário do ciclo do seu camarada que veio do fim do mundo, onde o amarelo, branco e azul das bandeiras da “República Independiente de Magallanes”, fazem recordar a primeira bandeira do Chile[15]. A aurora austral e o isolamento de Punta Arenas, a educação católica do movimento schoenstattiano e as viagens à Croácia na juventude certamente moldaram este presidente, cujos modelos de esquerda não parecem ser os latino-americanos e que, inclusivamente, afirmou durante a campanha que “a possibilidade de dialogar com quem pensa diferente não é um património exclusivo de nenhum setor político”: terá sido esta uma frase de circunstância, para ganhar votos, ou será uma convicção profunda? Terão sido os resultados de 7 de maio um voto de protesto pelo aumento do custo de vida e a sensação de insegurança, ou um sinal antecipado de fim de ciclo? A prudência sugere-nos que devemos esperar mais algum tempo, antes de sermos mais afirmativos sobre as características deste presidente que, como todos os outros que chegam ao Palácio de La Moneda, tem o peso de tentar que a “cópia feliz do Éden” não se materialize apenas na beleza natural do território, mas também na vida das pessoas.
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Sobre o autor:
Nasceu em Lisboa mas foi criado na Raia, num território incerto entre Marvão e La Fontañera. Licenciou-se em Lisboa (história), doutorou-se em Madrid (arqueologia) e andou por várias universidades em Santiago do Chile, onde deu aulas sobre cultura material, regressou a Portugal.
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[1] Esta denominação foi associada a um conjunto de estudantes chilenos que, nos anos 70, foram formados na Universidade de Chicago, por Milton Friedman, viriam mais tarde a influenciar Pinochet e ter um papel na inscrição do modelo liberal na constituição de 1980.
[2] Mapuche, sem plural, os homens da terra, povo indígena da região sul do Chile, representam cerca de 8% da população total do Chile, estão sobretudo concentrados na região da Araucanía.
[3] O próprio presidente Piñera incentivou a vinda de venezuelanos para o Chile, com as seguintes palavras: “Vénganse a Chile, ¡tenemos trabajo para todos ustedes!” (venham para o Chile, temos trabalho para todos) e com a criação do visto “responsabilidade democrática” para cidadãos desse país, o Chile terá recebido durante o ano de 2019 quase 500 mil venezuelanos.
[4] Existem várias razões para esta onda de protestos, para lá do aumento do preço dos bilhetes do metro (30 pesos chilenos, na altura aproximadamente 5 cêntimos), contudo, é importante precisar a relevância do metro no caso de Santiago do Chile, cidade muito dividida por bairros de acordo com a capacidade socioeconómica de cada família. O metro era o ponto de ligação entre os trabalhadores das classes mais baixas, para os setores acomodados, onde se situavam os condomínios e as sedes das grandes empresas. Convém referir que o Chile, apesar do seu crescimento económico das últimas duas décadas, em 2019, entre os 20 países da América Latina, era o 13.º país mais desigual e com o custo de vida mais alto da América do Sul. O metro tem um grande impacto na vida das pessoas, recordamos que não existem passes sociais no Chile, apenas existem variações entre horas de ponta (mais caro) e horas de menor circulação (mais barato) e que a desculpa do ministro dos transportes foi: “querem pagar menos, levantem-se mais cedo”
[5] Cerca de 400 mil habitantes, que em conjunto com os municípios de La Reina, Nuñoa e Providencia (com cerca 450 mil) representam os bairros de melhor situação económica de Santiago e, de certa forma, do país, albergando as classes altas e médias. La Reina, Nuñoa e Providencia tendencialmente votam ao centro, apesar de, desde o regresso à democracia terem apresentado alcaldes ligados ao bloco da direita, atualmente Nuñoa conseguiu eleger uma presidente de um terceiro bloco, supostamente mais à esquerda que o bloco da Concertación.
[6] O sistema eleitoral binominal chileno foi instituído em 1989 e manteve-se vigente até 2018, basicamente apenas permitia que as duas forças políticas mais votadas (as duas primeiras maiorias) elegessem representantes, de modo que o sistema político chileno estava orientado por coligações de partidos.
[7] A denominação foi inspirada no movimento com o mesmo nome criado no Uruguai em 1971, grande coligação de partidos, fundamentalmente de esquerda, mas que também chegou a incluir movimentos católicos e liberais, que viria a eleger presidentes a partir de 2005, como Tabaré Vásquez ou José Mujica.
[8] São duas das universidades mais relevantes do contexto latino-americano, a Católica tem inclusivamente liderado o ranking na última década. Estas duas universidades funcionam um pouco com uma espécie de mini Ivy League à chilena. São caras, exclusivas, de difícil ingresso e garantem logo trabalho após o fim do curso. Existem algumas diferenças entre as duas universidades. A Universidade do Chile tende a receber as elites de esquerda e liberais, a Católica as elites da direita e o centro católico. Apesar de a Universidade do Chile ser pública, as diferenças em termos de preços de propinas comparativamente à universidade Católica não são muito evidentes, apresentando ambas propinas mensais elevadas.
[9] Como é fácil de notar, trata-se de apelidos um pouco estranhos, e mesmo raros, para um país latino-americano, o que se explica pelo facto de o Chile ser sobretudo um país mestiço constituído maioritariamente por uma população composta por descendentes dos vários povos ibéricos e pelas comunidades indígenas que viviam no território chileno antes da chegada de Pedro de Valdivia em 1540. No entanto, como se pode verificar a partir dos anos 60, o Chile tem apresentado presidentes e ministros com apelidos fora do contexto ibérico, veja-se por exemplo o livro editado pela cientista Soledad Berrios, El ADN de los chilenos y sus Orígenes Genéticos, o que retrata bem o conceito de minoria e da diferenciação dos dirigentes políticos chilenos, cujo modelo educativo atual parece perpetuar.
[10] Cidade ventosa e fria perto da Antártida e da Terra do Fogo, localizada no estreito do mesmo nome, em território ameno, tendo em conta o facto de se localizar no extremo sul do país, está relativamente isolada do país e tem um forte sentimento de autonomia.
[11] Dança nacional do Chile, que também tem variantes no Peru e na Bolívia. É dançada com lenços em constante movimento e o par anda em constantes rodopios, simulando o cortejo do galo à galinha. Geralmente é dançada no mês de setembro, nas celebrações da independência do país que se realizam durante todo o mês.
[12] Não é comum os políticos chilenos viverem no centro. Como já referi anteriormente, as classes sociais estão divididas por setores. O setor oriente, isto é, em direção à cordilheira dos Andes, alberga as famílias mais ricas. Outra das características de Santiago parece ser a mudança das elites quando os seus bairros deixam de ser exclusivos. Aconteceu assim com o bairro Yungay e República, bairros de elite até aos anos 40, que depois foram gradualmente sendo abandonados. Os trabalhos do geógrafo Rodrigo Hidalgo Dattwyler explicam bem os processos evolutivos da cidade de Santiago e também a estruturação da cidade de acordo com as classes sociais. Em inícios de 2000, por serem dos poucos bairros em Santiago com casas com mais de 100 anos, começaram a ser restaurados e ocupados por artistas, perderam-se muitas casas devido ao abandono e também aos sismos que frequentemente assolam o Chile.
[13] Figuras emblemáticas das manifestações de 2019, eleitos constituintes, em 2021, falsos profetas que provaram ser incomensuráveis charlatães, contribuíram para a descrença da população relativamente ao processo constituinte.
[14] O coração do Chile, entre as cidades de La Serena e Concepción, praticamente as duas cidades que limitavam a capitania do Chile durante o período colonial. Só em finais do século XIX, já com a República mais ou menos consolidada se dá a expansão para a região de Atacama através da guerra contra a Bolívia e o Peru (1879-1883) e com a expansão para sul, para lá do rio Bio-Bio, que marcava a fronteira do império espanhol com os territórios mapuche, com a chamada ocupação da Araucanía (1860-1883), acrescentando, deste modo, o dobro do território para a recente república chilena. Assim, como nos indicam vários autores (ver sobretudo os trabalhos do antropólogo José Bengoa ou do historiador Gabriel Salazar), seriam estes vales o berço do país, o território onde se consolidaram as tradições (basicamente a cultura da hacienda) e mesmo o dialeto chileno (que se estenderia depois por todo o país).
[15] Conhecida como a bandeira dos Carrera. Uma das famílias mais aristocratas do Chile colonial, liderada por José Miguel de la Carrera que estabeleceria no país, através de um Golpe de Estado, e numa altura em que o governo espanhol estava enfraquecido (devido à abdicação de Fernando VII perante Napoleão), uma junta de governo independentista. Carrera foi derrotado em 1814 pelas forças espanholas, esteve exilado alguns anos nos Estados Unidos da América; quando regressou, a liderança do movimento independentista estava a cargo da aliança entre os maçons Bernardo O’Higgins (chileno) e San Martín (argentino). Caiu em desgraça e foi considerado um traidor, sendo fuzilado em 1819. Com O’Higgins, o amarelo (no Chile o amarelo é associado àqueles que não têm grande consistência ideológica, um ‘amarillo’ tanto pode ser um cobarde como um moderado) foi substituído pelo vermelho.