Paul Fischer,I dagligstuen,1887

Em Terra Queimada, KonMari

É bonito, o armário que vejo na sala de estar. Domina o espaço, centrado na parede, ladeado por portas que me levarão até à sala de jantar, quando me decidir a dar um passo em frente. Não sei descrever o armário, mas mais tarde tentarei que o Google o faça por mim, atirando-lhe palavras soltas que talvez, em conjunto, o ajudem a ver aquilo que eu vejo. Deve ser do século XIX. É feito de madeira enegrecida e decorado, na face, com uma placa de porcelana pintada à mão. Não sei descrever a pintura. Vamos fingir que é chinoiserie.

Para cá da porta, na sala de estar, sofás de veludo e candelabros com estalactites de cristal. Espelhos em pesadíssimas molduras douradas. Para lá da porta, mais veludo, e uma mesa de jantar que daria facilmente para umas oito pessoas, dez, até, se fossem comedidas com os cotovelos. Penso nas nossas botas de biqueira de aço, nas nossas luvas de nitrilo, e concluo que não viemos vestidos para jantar.

Dentro do armário, objetos vários. Memorizo um: um macaquinho de lata mascarado de domador de leões. Consigo imaginar o estalo de um chicote, mas a casa está em silêncio.

O incêndio ainda vem longe.

Dada a temperatura certa, tudo arde. Madeira. Roupas. Pessoas.

É assim que Simon Beckett abre o seu thriller Escrito nos Ossos, originalmente Written in Bone, uma daquelas histórias detetivescas em que um antropólogo forense assombrado por um passado traumático não só desvenda um mórbido crime, como ultrapassa traumas pessoais e profissionais numa obra eficiente, de leitura fluida, recheada de suplícios corporais que não perturbam em nada o leitor estival, estendido ao sol com uma bola de Berlim. Não julgo. Também eu consumi este cocktail de miséria de ombrinho ao sol, provavelmente no Algarve, provavelmente usando um biquíni de corte demasiado alto e um protetor solar de SPF demasiado baixo, cumprindo assim todos os requisitos desta típica atividade de verão. 

Outra típica atividade de verão é, claro, o incêndio florestal. Embora o português comum não tenha por hábito atear incêndios, conhece bem a plataforma fogos.pt. Sabe como é fazer longos troços de autoestrada entre eucaliptais ebanizados. Identifica facilmente as notas aromáticas de um incêndio—é um autêntico cão pisteiro da piromania. Se tiver a sorte ou o azar de habitar aquele Portugal profundo de que só há notícia durante romarias ou desgraças, já andou de mangueirinha de jardim a tentar apoquentar um incêndio. Já perdeu terras e animais, casas e pessoas.

Só em 2017, pior ano da história dos incêndios florestais em Portugal, arderam mais de 500 mil hectares. Ardeu, parafraseando Simon Beckett, um pouco de tudo. Morreram 100 pessoas.

Aqui, o incêndio ainda vem longe. Temos tempo. Saímos da sala de estar e atravessamos um corredor forrado a papel, nas estantes e nas paredes, uma autêntica acendalha no coração desta casa. Passamos pela casa de banho, onde a banheira tem pés mas não tem água canalizada. Entramos no quarto. A cama está feita com precisão hospitalar, o roupeiro é um arquivo morto de camisas brancas. Imagino um carafe e copo de água em cada mesa de cabeceira.

Pergunto-me se o guru da organização que arrumou este quarto o fez antes ou depois de decidir que o ia abandonar. Se o fez por rotina, como eu teoricamente o faço todos os dias, ou se o fez em despedida, sabendo que não voltaria a ver as suas camisas (~15), a sua colcha rendada (1), o seu carafe (0, imaginado apenas para os propósitos deste texto).

Nesta casa não vive ninguém. Não se usam os sofás de veludo, não se janta na sala de jantar, não se dorme no aconchego das colchas. É uma cápsula do tempo. Hoje estamos cá nós, de biqueira de aço e nitrilo, mas é mera coincidência.

Atravessamos outro corredor, ziguezagueando, entre cadeiras e pedaços de gesso do teto que agora é gesso do chão.

É mais ou menos este o ponto do personal essay, aquele ponto altamente ridicularizado, em que o autor, entediado pela sua própria narrativa, ansioso por legitimar o seu pensamento, se costuma lançar em exercícios taxonómicos, numa tentativa de definir aquilo de que efetivamente está a falar.

Longe de mim querer cortar com a tradição.

A saber: a Wikipédia define “exploração urbana”, ou “urbex”, como a “exploração de estruturas construídas pelo homem, geralmente realizada em ruínas abandonadas e ambientes não frequentados no quotidiano.” É quase como se estivesse a falar de mim, de nós, e da casa do armário.

A enciclopédia da internet não se alonga sobre as razões que levam alguém—alguém como eu, por exemplo—a querer passar tempo numa ruína. Há toda a questão da adrenalina, é claro: há excursões de urbex tão arriscadas que são autênticos desportos radicais, só que ilegais. Há quem explore para poder tirar fotografias que mais ninguém tirou, e há quem explore para poder ver o que poucos viram, ou voltarão a ver.

Eu descreveria a urbex como—calma—uma experiência de mindfulness. Na casa abandonada, na fábrica, no sanatório, estou alinhadíssima com o meu corpo, perfeitamente consciente da distribuição do meu peso nas tábuas do chão. Avalio cada passo antes de o dar. Conheço bem o som das minhas botas sobre estilhaços, sobre madeiras secas e madeiras húmidas, sobre betão, sobre entulho. Registo as mudanças de temperatura e de humidade, catalogo a progressão de aromas: madeiras, mofos, naftalinas, água estagnada, urina, cão molhado, putrefação. Evito vidros e pregos nas mãos e nos braços, teias de aranha no rosto. Mosquitos nos ouvidos.

Há quem explore parques aquáticos abandonados, bunkers nucleares, torres de comunicações, escolas e hospitais, asilos e clínicas. Eu gosto de casas. Gosto da domesticidade, da intimidade, da narrativa familiar. 

Gosto do piano. Gosto das partituras. Gosto da fila perfeitinha de frasquinhos de tinta, marca L’Artisan Pratique, ainda selados. (As cores são Ébène, Vert Olive, Palissandre, Brun Van Dyck.) Gosto do mobiliário de vime na galeria envidraçada. Gosto das Bíblias e dos jornais, e gosto especialmente do jornal bilingue The Anglo-Portuguese News. Gosto das porcelanas, das chávenas e pires e terrinas que, ocasionalmente, muito ocasionalmente, viro de papo para o ar à procura do carimbo de quem as fez. 

Gosto de contemplar a morte a partir da perspetiva destes objetos. Dizem que, no fim, não podemos levar nada connosco. No fim, perdemos as nossas coisas, mas não estarão elas também a perder-nos a nós? De que vale uma Bíblia sem crente? De que vale uma chávena vazia, imaculada, pendurada num ganchinho numa copa onde ninguém entra? Há uma certa melancolia num objeto que ninguém usa.

Este é um pensamento perigoso para o explorador urbano. Se o explorador urbano resgatasse—ou, por outras palavras, subtraísse, desviasse, furtasse—todo o objeto que, quando abandonado pelo proprietário, ficou condenado a uma existência inútil, estaria a comprometer a integridade dos espaços que explora.

Existe um código de conduta. O explorador urbano tira fotografias e deixa pegadas. Nem mais, nem menos. Há quem nem toque em nada—mas na porcelana eu toco, nesta casa toco, só para concluir que foi feita mais ou menos quando a Revolução matou o penúltimo rei de Portugal. Já sobreviveu a duas repúblicas.

Veremos se resiste ao incêndio.

Na noite em que pensei que a minha própria casa ia pegar fogo—na noite em que a típica atividade de verão que é o incêndio florestal se apresentou à nossa porta—, preparei uma mochila. Enfiei lá dentro o meu computador, a minha máquina fotográfica, uma pen. Um lenço para cobrir o nariz e a boca, porque ia precisar de respirar, e um tubo de Oreos, porque ia precisar de comer. 

Nunca tinha dado grande importância àquela questão que motiva projetos como o já defunto The Burning House: se a tua casa estivesse a arder, o que levarias contigo? Naquela noite, percebi que mais depressa se prepara a mochila do que se pensa no assunto.

O incêndio poupou-nos, e às nossas coisas. A outros, e às suas, consumiu. Pouco a pouco—e depois de repente, implacavelmente, quando nos afastámos de casa pela primeira vez—, fomos processando a dimensão da perda. Casas destruídas, colapsadas, aplanadas. Quintas desertas, estábulos e currais e poleiros silenciosos. Terra queimada, como se diz na guerra. 

Lamentámos os mortos. Estendemos as mãos aos desalojados. Focámo-nos, acima de tudo, porque pouco mais nos era possível, em coisas—não no sentido lato, mas no sentido prático, objetivo. Objetos. Focámo-nos em objetos. 

Na nossa comunidade, tanta gente sem casa, sem nada. E na nossa memória, no nosso arquivo de urbex, tanta casa sem gente, mas com tudo. Banheiras com pés, sofás de veludo. Difícil não pensar nisso sempre que, no armazém de donativos para as vítimas, onde fomos voluntários, aparecia o milionésimo serviço de chá Vista Alegre, doado “em perfeito estado” com 3 chávenas, 5 pires, e um bule rachado de alto a baixo.

No armazém, como nas casas abandonadas, virava automaticamente as porcelanas para lhes espreitar os carimbos. A certa altura cansei-me. Nunca vira tanta porcelana junta.

Pode ser difícil de acreditar—mas porcelana Vista Alegre doada por Marie Kondos da comunidade que aproveitam a catástrofe natural para destralhar os louceiros das mães e avós não é uma tipologia de objeto muito requisitada por quem acaba de perder tudo.

Tachos e panelas, sim. Roupa de cama, sim. Colchões. Pequenos eletrodomésticos, como chaleiras e micro-ondas, e depois os grandes, como frigoríficos. Brinquedos para os miúdos. Fraldas para os bebés. Leite em pó. Mantas para os cães, ração para os gatos. Vista Alegre, com bules e terrinas e açucareiros e leiteiras e três tamanhos de chávena, não.

Pensei muito sobre coisas, no rescaldo do incêndio. Pensei em como uns perderam tudo numa catástrofe que outros usaram como pretexto para se desfazer de tudo. Pensei nos fluxos migratórios dos objetos através do espaço liminar comunitário, terra de ninguém, que era o armazém de donativos. 

Pensei no quão ténue é o fio que nos liga às coisas que possuímos, pelas quais trabalhamos, que trocamos pelo dinheiro que antes trocámos por tempo.

Quando voltamos à casa do armário, é por acidente. Estamos de passagem e por lá paramos. Não estamos prontos para a encontrar aplanada, compactada sob o seu próprio peso. Penso naqueles esmagadores hidráulicos que transformam carros em cubinhos de sucata. Esta casa, e tudo o que nela existia, é um cubo de sucata.

Não trouxemos botas nem luvas, mas avançamos sobre os escombros. Não sei dizer se estou a caminhar sobre chão, ou sobre teto, ou sobre telhado. Verticalmente, não sei onde estou. Horizontalmente, estou mais ou menos onde comecei. Sala de estar, ali a sala de jantar, prensadas ambas sob os meus pés.

O chão, negro de cinzas, está salpicado de fragmentos de cor clara. Dobro os joelhos e tento capturar um entre o polegar e o indicador. Porcelana. Será bule ou terrina, açucareiro ou leiteira? Capturo outro fragmento, e depois outro, e depois outro, só para ver, só porque sim, e só quando começo a vê-los lado a lado é que identifico a peça que tenho nas mãos.

Era bonito, o armário que vi na sala de estar. Ainda é, mas de forma diferente. O que resta dele—ou, mais especificamente, da sua placa de porcelana pintada—, cabe agora nas minhas mãos.

Eucaliptal ou “móvel Napoleão III de madeira ebanizada com placa de porcelana pintada”, é tudo madeira. E tudo arde.


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Imagem do cabeçalho: Paul Fischer, I dagligstuen – ((N)A Sala de Estar), 1887

 

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