Fotografia_Alvaro_Domingues

Farol

Farol
Fotografia de Álvaro Domingues

Estamos fartas de enviar postais às nossas amigas explicando que nada temos a ver com aquele gigantesco lampadário que está ali atrás no meio das oliveiras. É tão alto que seria preciso empilhar oitenta vacas adultas e escorreitas para que os chifres da última tocassem o topo daquela lanterna que se vê mais ao longe do que um farol na costa. Apesar das limitações de raciocínio que dizem que temos, do olhar pouco expressivo e desta pastelada de convivência monótona a dormir, ruminar, comer e enxotar moscas, sabemos que a realidade varia segundo a sua representação e que dos infinitos modos de organizar essa representação, existem agora muitos em que na mesma imagem se colam coisas que nem sempre são aquelas que aparecem na frente das máquinas fotográficas, e que até não são precisas tais máquinas para compor imagens que vai a ver-se são engendradas por um animal desconhecido chamado inteligência artificial. Não conhecemos. Aqui tudo é natural, artificial e sintético ao mesmo tempo e se essas palavras não existissem até se poupava muita conversa e mugido que não dão em nada. Resumindo, estava a dizer que aquela tocha esquisita lá atrás é um artefacto que está mesmo lá. É enorme, silencioso, enigmático e perturbador dos padrões habituais de beleza das paisagens rurais, mas está lá e até contribui para animar um bocado esta pasmaceira pecuária em primeiro plano.

Agora veio cá este fotografar. Normalmente, quem cá vem, ou é para trazer ração, palha ou água, ou é para levar uma ou duas de nós sabe-se lá para onde. Acontece com frequência. Qualquer dia não sobra nenhuma. No meio deste descampado seco onde não se vê erva verde há meses, somos um colectivo precário, rigorosamente vegetariano, domesticado, desinformado, pacífico e de coloração bovina praticamente homogénea. Será isso fotografável? Talvez. O grande mamífero ruminante possui tanto interesse estético como qualquer outro dispositivo animado ou desanimado. Fossem outras a geografia e a crença daqueles que de nós se ocupam, e seríamos sagradas, vacas sagradas com toda a majestade e distinção que tal estatuto implica. Também para o sobrenatural é preciso ter sorte. 

Entre nós e as oliveiras não existe qualquer nexo. Não comemos azeitonas e a folha não tem qualquer préstimo: tão dura, desagradável e azeda que nem com cinco ou seis ruminações seguidas poderia satisfazer a mínima vontade de comer. Como somos muito esquecidas, volta e meia vai uma ao olival verificar se houve novidade botânica no entretanto. É uma frustração. A toda a volta do arvoredo há uma cerca com fios electrificados que produzem ferroadas como se fossem moscardos assanhados. Depois de uns coices e uns pinotes, volta tudo ao normal.

Claro que se não houvesse cercas e fios, podíamos ir pelo meio das oliveiras investigar a grande tocha que parece um sol engarrafado. Naqueles dias de céu coberto por negrumes que ameaçam trovões e trombas d’água, quando a luz rompe pelo meio dos castelos de nuvens, acontece o sublime arrebatador com o sol engarrafado a faiscar raios a toda a volta. Uma aparição tão forte que parece cópia da descrição daquela outra em que uma figura sobrenatural apareceu no cimo de uma árvore a uns pastores por razões ainda mal explicadas mas que também tinham que ver com a conversão da Rússia, assunto tenebroso que está novamente ensarilhado sem final à vista. Já me ia perdendo. Voltemos ao lampadário.

Tanto quanto nos é dado entender da linguagem dos humanos, dizem que é uma central solar de produção de energia eléctrica. O chão está coberto de espelhos a toda a volta que focam e concentram a luz do sol na grande garrafa que contém uma mistela salina que aquece até atingir quinhentos graus. Esse calor intenso move uma engrenagem instalada numa central termoeléctrica e o resto é o que sabeis. Dizem que é por via da descarbonização e do efeito de estufa. Disso não sabemos nada. Aqui não há estufas. É só olival e girassol, mas como a água escasseia o girassol secou e as oliveiras entraram em modo de alimentação gota a gota.

Que sossegado que era o campo! O sol alimentava a fotossíntese, chovia de vez em quando, a erva crescia, nós comíamos, as oliveiras medravam e assim por diante. Não havendo chuva e estando a terra gretada até ao osso, plantam-se os tais espelhos em volta dos lampadários e organiza-se outra indústria. Depois de tudo devidamente avaliado, fica aquela que der mais lucro, coisa que no meio desta barafunda constante é aquilo que permanece desde o início ao fim do mundo.

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