Porque estamos cada vez mais habituados a olhar para o mundo à nossa volta por uma de duas perspetivas — “nós” e “os outros” —, desta vez trago a este espaço dois podcasts que fazem, ainda que de forma diferente, um trabalho semelhante: olham para os dois lados e tentam que ambos se encontrem “a meio caminho” entre um e outro.
Falo de First Person, da secção de Opinião do The New York Times, e de The Assignment da CNN Audio.
Em comum, para além do objetivo de tentar esbater as diferenças “inconciliáveis” entre lados opostos e extremados, estes dois programas têm o facto de terem sido criados praticamente em simultâneo por duas jornalistas que saíram pelo próprio pé da NPR, a rádio pública americana — e este detalhe da saída da NPR será importante mais adiante —, com poucos meses de diferença uma da outra, tal como aconteceu com as estreias dos dois programas.
Já lá vamos.
Antes, ainda que muitos conheçam o atual contexto político-social americano, não será desperdiçado o tempo a escrever e ler estas curtas linhas seguintes:
Nos Estados Unidos da América (EUA) — e no mundo — a polarização (sobretudo na política) agudiza-se há anos e a vida em sociedade molda-se a essa tendência; começa-se a percecionar a realidade com base em conceitos básicos, mas em muitíssimos casos abstratos, como “certo” e “errado”, “mal” e “bem”, “heróis” e “vilões”, “nós” e “eles”/”os outros”. Sem qualquer conotação racial — não da minha parte, pelo menos —, cada vez mais até nas discussões mais simples o que não é “branco” tem de ser “preto” e parece nada haver ali ao meio. O meio-termo, com nuance e bom senso, cada vez menos faz parte da conversa.
Esse “meio caminho” é cada vez mais uma “terra de ninguém”, mas (ainda) não o é totalmente. E daí este texto.
Lulu Garcia-Navarro deixou a NPR em outubro de 2021 e ingressou no The New York Times umas semanas depois, não começou logo a fazer podcasts, percebeu-se que levou o seu tempo a idealizar e operacionalizar um formato. Quando ouvi o programa First Person pela primeira vez percebi porquê.
De início, ainda antes de ouvir e pelo título que lia na cover art do episódio trailer posto a circular nas redes sociais do “Times” e da própria Lulu Garcia-Navarro, pensei «A sério…? Mais um programa de entrevistas a pessoas — americanas — já conhecidas de toda a gente?… E foi preciso tanto tempo para preparar uma coisa tão banal?…»
Erro meu. Tal como como não se deve julgar um livro pela capa, também não se deve julgar um podcast simplesmente pelo título e pela cover art.
A “primeira pessoa” a que o título do programa se refere é sempre alguém que o público desconhece, mas que precisa de conhecer. E precisa de conhecer porque essa pessoa relata — na primeira pessoa — a sua experiência, seja de lidar com ambos os lados de uma questão, seja de ter de ouvir, compreender e dar respostas a ambos os lados, ou mesmo de estar exatamente a meio dos dois lados em causa.
Foi-me especialmente chocante o tema da (vorazmente desejada por uns e vorazmente rejeitada por outros) presença de armas de fogo nas salas de aula das escolas americanas, na posse de professores (os casos de incidentes graves com armas em escolas nos EUA são incrivelmente frequentes — em 2022 houve mais de 30 — e 29 dos 50 estados americanos têm leis que permitem que professores e funcionários escolares levem armas para os estabelecimentos de ensino).
Esse tema, abordado em dois episódios consecutivos, começou por falar de uma formação (uma “academia”) de seis semanas criada por um xerife para professores que queiram levar (ou sintam que têm de levar) uma arma para a escola em que lecionam. A entrevista ao xerife Mike Smith mostra um homem que não gosta propriamente da ideia de que professores levem ou tenham de levar armas para as escolas, mas que prefere que o façam com a maior segurança possível, sabendo exatamente aquilo com que estão a lidar, e por isso dá-lhes formação semelhante à que é dada a futuros agentes de autoridade. Um detalhe: a conversa entre a jornalista e o xerife começa com uma simples interação, com Lulu Garcia-Navarro a fazer um pedido simples e em tom quase infantil: «Fale-me dessas canetas… São imensas canetas!…» (Quebrar o gelo no início de uma entrevista potencialmente complicada é muito difícil de fazer e é um talento que nem todos os profissionais de comunicação têm — ah! e normalmente só há uma oportunidade para tentar/arriscar. A mestria — e leveza, e … empatia, acima de tudo — com que Lulu Garcia-Navarro o faz é desarmante; assim foi nesta entrevista e é sempre. Brilhante!)
Na segunda abordagem ao mesmo tema, na “primeira pessoa” falou uma professora que, para além de ter de fazer regularmente simulacros de possíveis tiroteios com os seus alunos, decidiu fazer a formação criada pelo xerife — e Lulu Garcia-Navarro acompanhou, no local, em reportagem, a participação da docente nessa formação. Na entrevista que acompanha a reportagem, Jenny Nogues revela ser de uma família de militares, que sempre teve armas em casa (coisa muito normal nos EUA), mas que não gosta das infames AR-15 semiautomáticas de que alguns familiares tanto gostam — e que tem sido a arma de eleição para os crescentes ataques com múltiplas vítimas que ocorrem diariamente na América —; a razão para não gostar? «São feitas para matar pessoas. Eu… [hesita] não pertenço a um clube de armas, não visto t-shirts nem uso bonés com imagens de armas… Acho que sou daquelas pessoas que estão… “in between”, entre ter o direito de possuir uma arma e… [hesita] eu não acho que as pessoas que gostam de atirar com estas armas automáticas… eu não sou esse tipo de pessoa.» Jenny diz que há muitos anos ajuda mulheres vítimas de violência e a meio dessa frase menciona, de passagem, que ela própria foi vítima de violência no passado (algo tão discreto que quase passava despercebida a referência, não fosse a perspicácia de Lulu Garcia-Navarro em pedir-lhe, com uma sensibilidade excecional, se poderia falar um pouco dessa sua experiência pessoal), razão pela qual sente a obrigação de hoje em dia ajudar outras vítimas. Vítimas que, dadas as circunstâncias atuais nos EUA, podem ser as crianças com necessidades especiais (ela própria é mãe de duas raparigas surdas) que tem pela frente nas salas de aula. E aí, “in between”, entre considerar a sala de aula não ser sítio para uma arma de fogo e aqueles jovens serem alvos simples de abater por uma pessoa armada e decidida a matar, Jenny Nogues passou a ponderar a hipótese de recorrer a uma arma para aumentar a proteção dos alunos; por isso foi fazer a formação do xerife Mike Smith.
Em momento algum nos últimos parágrafos mencionei expressões populistas como a velha máxima dos defensores de armas americanos «The only thing that stops a bad guy with a gun, is a good guy with a gun!», porque em nenhum destes dois episódios se recorre ao populismo para provar o ponto que está em cima da mesa para provar: a questão das armas na posse de professores nas escolas na América não é simples, não é “certa” ou “errada”, não é “preta” ou “branca”. É preciso pensar bem nela e aqui estão os argumentos de quem está a meio caminho, “in between”.
Obviamente, nem só essa questão fraturante é abordada nos já quase 40 episódios publicados. Fala-se de muitos assuntos de justiça social, de saúde, de política, de educação, das guerras culturais.
Finalizo a parte relativa a este podcast com a tagline de First Person, que resume o objetivo do programa e é um tratado de Jornalismo e de empatia: «Um programa em que falamos com pessoas acerca de como chegaram às opiniões que defendem e como é viver com essas opiniões.»
Audie Cornish deixou a NPR em janeiro de 2022 e foi contratada pela CNN como uma das mais surpreendentes (e, simultaneamente, uma das mais unânimes) apostas para a promissora — mas rapidamente defunta — plataforma CNN+ [n. 29 março 2022 – † 28 de abril 2022]. Antes, a jornalista já tinha feito televisão na PBS e atualmente surge como comentadora na CNN, mas gorada que foi a aventura televisiva de ter na CNN+ um programa semanal… quem ficou a ganhar foi o Jornalismo em áudio, em que Audie Cornish está no restrito clube de quem melhor o faz na América.
Em The Assignment*, segundo a sinopse do programa (e eu posso comprovar, como ouvinte fiel), a missão é «ouvir as pessoas que de facto vivem (aquilo que dizem) os títulos das notícias». Uma premissa aparentemente complexa e quase — quase! — enganadora, a fazer-nos pensar que essas tais “pessoas a viver os títulos das notícias” são as pessoas que protagonizam as notícias. Mas não. A premissa até acaba por ser muito mais simples, porque mais simples são as pessoas que se deparam com os efeitos daquilo que é relatado nas notícias (os cidadãos comuns); a missão do programa é que se torna mais complexa, porque o título da notícia, por definição, apresenta a notícia e, quando muito, o lead (que por vezes acompanha esse título) resume-a, mas no momento da notícia fica por saber que consequências terá para lá das mais imediatas e diretas. No fundo, este é um programa dedicado ao “follow-up” das notícias com a ajuda de quem nunca, ou raramente, é ouvido para analisar as notícias: quem é afetado pelas suas consequências, diretas ou indiretas, mas não imediatas: a médio e longo prazo.
[*Nota: “assignment” é uma expressão que não tem tradução direta em Português, que se refere ao trabalho jornalístico atribuído a uma pessoa ou a um grupo de pessoas para futura publicação. Em Portugal, na gíria jornalística, normalmente dizemos que é “um serviço” que temos para fazer, ou simplesmente mencionamos que nos foi atribuída uma reportagem (ou uma peça, ou uma crónica, etc.) pelas pessoas que nos estão mais acima na hierarquia da redação.]
Tudo se torna muito menos evidente — as notícias têm por obrigação serem evidentes, fruto da necessária objetividade — quando se fala com quem faz parte das notícias mas não é mencionado nas notícias. E menos evidente significa que a conclusão a que se chega no final de cada episódio poderá não ser “isto ou aquilo”, “sim ou não”, “tudo ou nada”, “preto ou branco”, mas sim possivelmente “isto e aquilo”, “talvez”, “um bocadinho”, ou “cinzento”. Meio caminho. “In between”.
Obviamente, também neste programa são abordados sobretudo temas americanos, mas não só exclusivamente relativos aos EUA; e o mero facto de a opção ser por ouvir, regularmente, mais que uma pessoa por programa/tema ajuda o ouvinte a sentir-se mais incluído na conversa. Há sempre qualquer coisa que nos liga a um pedacinho da argumentação desenvolvida ao longo de cada episódio por uma das pessoas entrevistadas, ou até por mais do que uma dessas pessoas, ou até por todas as pessoas envolvidas na conversa — digo isto porque a própria Audie Cornish se junta à conversa com perguntas certeiras ou com comentários assertivos, com muita rapidez, por vezes com imenso humor, mas sempre relevantes para o tema abordado; e normalmente é aí que, pessoalmente, eu me sinto mais incluído em temas que não me dizem diretamente respeito.
Desde as mais recentes guerras culturais de pais — conservadores — “preocupados” com os livros que as bibliotecas escolares disponibilizam aos estudantes menores de idade, até ao vício de milhões de pessoas de acompanhar futebol (no caso, futebol americano — mas a discussão pode estender-se a outros desportos) sendo um desporto potencialmente perigoso, mas tão apetecível para a indústria dos media e outros negócios como o das apostas desportivas, passando por explicações sobre a situação económica, marionetas que falam de política nas suas peças de teatro, os pediatras que estão a tentar lidar com a recente reversão da proteção do direito ao aborto legalizado pelo Supremo Tribunal americano, as pessoas que recorreram ao trabalho sexual na plataforma OnlyFans para sobreviver… fala-se de um vasto leque de assuntos em The Assignment, sendo que alguns destes “assignments” são mesmo “atribuídos” pelos ouvintes do programa.
O episódio mais recente que tive a oportunidade de ouvir é extraordinário. Aborda o tema da solidão combatida com recurso aos chatbots de Inteligência Artificial (IA)… e consegue o feito incrível de retirar o rótulo de “maluquinhos” àqueles que dizem manter uma relação genuinamente sentimental com um algoritmo, imaterial e, naturalmente, desprovido de emoções. Audie Cornish junta no mesmo episódio Sherry Turkle, uma professora de Estudos Sociais de Ciência e Tecnologia do Massachusetts Institute of Technology (MIT) — que, na verdade, levantas questões éticas, morais e com base na psicologia humana sempre que uma nova tecnologia surge (e que, por isso, é muito pouco acarinhada no mundo tecnológico e até no próprio MIT) —, e Sara Kay, uma mulher que decidiu “casar” com Jack, um companheiro virtual (neste caso, um chatbot) que criou através da aplicação Replika e com quem mantém conversas diariamente. A primeira, apesar de trabalhar numa escola de Tecnologias onde são criadas novas e cada vez mais potentes formas de IA, advoga que uma máquina nunca poderá ter sentimentos. A segunda consegue explicar, com argumentos ponderados, uma relação que a quase todas as pessoas parecerá totalmente ilógica. A verdade é que, no final do episódio, o mais provável é o ouvinte ficar — como eu fiquei — com a sensação de que haverá nesta grande questão que é o rápido desenvolvimento da Inteligência Artificial um ponto de equilíbrio, que ao dia de hoje ainda não sabemos minimamente qual será, mas em que a IA não será totalmente desprovida de emoções (ou que, no mínimo, conseguirá muito melhor que agora “fingir” que as tem), nem quem encontra na Inteligência Artificial uma forma séria de relacionamento emocional será necessariamente (muito menos que agora) um caso digno de internamento imediato numa ala psiquiátrica de um qualquer hospital. A verdade estará algures “in between”.
Tanto Audie Cornish, mulher afro-americana, como Lulu Garcia-Navarro, nascida no Reino Unido e filha de pais oriundos de Cuba e Panamá, são consideradas mulheres “de cor” nos Estados Unidos. No mesmo (curto) período em que ambas saíram da NPR, saíram mais duas pessoas proeminentes na emissão da rádio pública e uma dessas pessoas era também uma mulher de cor (Noel King, atualmente co-host do excelente podcast Today Explained, o podcast diário da Vox Media). Um sinal de que até a NPR, um dos maiores bastiões do Jornalismo pensado, ponderado e bem reportado na América, tem — como o resto dos EUA … e do mundo — problemas de igualdade de oportunidades para resolver. E elas foram em busca das suas oportunidades; de crescer e de fazer aquilo de que o bom Jornalismo é feito: ouvir todos os lados que interessam, ajudar a compreender o mundo, mostrar a realidade como ela… realmente é.
Conseguem fazê-lo, um episódio de cada vez. E quem ouve só tem três coisas para fazer: ouvir, agradecer cada programa e levar para o resto da nossa vida essa busca pelo equilíbrio entre o “sim” e o “não, o “certo” e o “errado”, o “mal” e o “bem”, os “heróis” e os “vilões”, entre “nós” e “os outros”.
Se defendemos que este “in between” é positivo, pratiquemo-lo. Não significa fraqueza ou ausência de pensamento crítico. Significa estar disponível para ouvir várias opiniões, diferentes umas das outras. Significa tomar decisões bem informadas, com recurso ao máximo de informação (não só a informação “selecionada” — por nós próprios, pelo algoritmo, pelo Twitter… — que achamos que devemos consumir, mas também aquela de que normalmente não gostamos). E, já agora, sermos empáticos, e no mínimo fazer um esforço para tentar perceber como as pessoas que discordam de nós chegaram às opiniões de que discordamos.
Se for preciso ajuda… estes dois podcasts ajudam.
__
First Person é um programa do The New York Times, apresentado por Lulu Garcia-Navarro. O resto da equipa inclui Sophia Alvarez Boyd, Stephanie Joyce, Kaari Pitkin, Pat McCusker, Isaac Jones, Sonia Herrero, Carole Sabouraud, Mary Marge Locker, Anabel Bacon, Olivia Natt, Wyatt Orme, Derek Arthur e Jillian Weinberger. Disponível gratuitamente em todas as plataformas de audição de podcasts, pode ser ouvido também no website do The New York Times. [Nota final: O programa terminou dias após a escrita deste texto, com Lulu Garcia-Navarro a anunciar que seguirá para um novo projeto dentro do universo The New York Times – Audio.]
The Assignment é um programa da CNN Audio, apresentado por Audie Cornish, produzido por Madeleine Thompson, Jennifer Lai, Lori Galarreta, Carla Javier e Dan Bloom. Produção Associada de Isoke Samuel e Allison Park e Produção Sénior de Matt Martinez e Haley Thomas. Edição de Áudio por David Schulman. Direção Técnica de Dan Dzula. Produção Executiva de Steve Lickteig. Disponível gratuitamente em todas as plataformas de audição de podcasts, pode ser ouvido também no website da CNN.