Maria Martins no seu atelier, em Paris, 1950, cercada das esculturas O Impossível (a mais famosa, à esq. da artista, na foto), However, Pourquoi Toujours e Saudade

However

Maria Martins esculpiu pelo menos três versões de However, que apareceram publicamente, pela primeira vez, na exposição individual realizada na Julien Levy Gallery, em Nova York, entre 25 de novembro de 1947 e 2 de janeiro de 1948. As três peças apresentam uma mulher nua, de pé, com as pernas juntas e os braços esticados ao longo do corpo, em torno do qual se enroscam uma ou duas serpentes. As configurações formais e figurais desses trabalhos podem ser vistas como efeitos de uma espécie de depuração de aspectos decisivos de esculturas exibidas em exposições anteriores e pertencentes à série Amazônia ou que, posteriores, também evocam a selva: a expressão do desejo e da sedução no mito fálico da Cobra grande e, de outra parte, a força erótica envolvente da representação dos braços e das pernas da figura feminina em forma de lianas, como se vê em Sans écho

Na However exibida recentemente na segunda edição da plataforma Aberto, uma das duas serpentes que abraça o corpo feminino provém do alto da cabeça, como se fosse um prolongamento desta, e volteia o tronco até um ponto entre o umbigo e a vulva. A outra serpente sai dos pés, enrodilhando-os, sobe pelas pernas e chega até a coxa. O rosto da mulher não tem nariz ou olhos definidos. Apenas a boca é marcada e esta está aberta, mas não muito, a emitir, talvez, um grito tímido, como o de Laocoonte no célebre conjunto escultórico da arte romana antiga, pertencente hoje à coleção dos Museus Vaticanos. Contudo, ao contrário de Laocoonte, que, na escultura, luta para se desvencilhar das serpentes marinhas que estrangulam a ele e a seus filhos, em However, a mulher parece se resignar ao enrodilhar da serpente. O que explica essa diferença decisiva entre as duas figurações?

Meses depois do encerramento da exposição na Julien Levy Gallery, Maria Martins inaugurou outra individual, desta vez, em Paris, para onde havia se mudado recentemente, em função da transferência do marido, o diplomata Carlos Martins, que havia assumido o posto de embaixador na embaixada do Brasil na França. No catálogo desta nova exposição, a artista apresentou a lista de obras expostas seguida de uma espécie de legenda poética para cada uma delas. Sobre uma das However ali elencadas, escreveu, originalmente em francês: “Recherche de la libération: j’espère qu’elle ne se libèrera jamais, ce serait trop triste” (“Busca pela libertação: espero que ela nunca se liberte, seria muito triste”). O que, à primeira vista, parece uma contradição em se tratando de uma artista que sempre prezou a liberdade acima de tudo, olhando com mais atenção, percebemos que não é. 

Em However, Maria Martins retoma um tema bíblico com o qual já havia trabalhado, o de Eva. Em sua primeira exposição individual, na Corcoran Gallery, em Washington, em 1941, apresentou uma Eva em terracota (grafada em inglês no catálogo, Eve, vocábulo que, não percamos de vista, está contido na palavra However[1]), representada sentada, com cerca de 40 centímetros de altura, trazendo, numa das mãos, um pequeno Adão. Se, nesse primeiro momento, Maria Martins sugeria uma inversão na relação de precedência (e, por extensão, de poder) entre Eva e Adão, nas However, realizadas apenas alguns anos depois, o foco migra da relação entre os gêneros para a relação entre Eva e a serpente, isto é, entre Eva e aquela que a tenta, levando o casal à expulsão do Paraíso. Na tentação, Maria Martins vê um motivo que se torna, nos anos seguintes a Eve, central em suas obras: o desejo. 

Em However, a serpente é a própria figuração do desejo. Daí, ser “muito triste” imaginar uma libertação completa daquilo que enrosca a figura feminina. A serpente não a estrangula, como no Laocoonte, mas, conforme a narrativa bíblica, lhe ensina a desejar o que está além do que lhe é facultado, afinal, é experimentando do fruto proibido que se atinge o conhecimento: “Deus bem sabe que, no dia em que comerdes do fruto, vossos olhos se abrirão e sereis como deuses, conhecedores do bem e do mal”, diz a serpente no capítulo 3 do Gênesis. Libertar-se da serpente é libertar-se do desejo, é recusá-lo – o que, no preceituário de Maria Martins, é pecado capital. Talvez por isso a mulher ali não lute, mas apenas emita um grito tímido, um “grito de alarme de estar viva”, para tomarmos emprestada uma expressão de Clarice Lispector, por meio da qual a escritora, em A paixão segundo G.H., definiu o grito daqueles que “saem para fora do mundo possível”, isto é, “o ser excepcional”, “o ser gritante”; grito este que desencadeia a própria “existência do mundo”. 


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[1]  Jogo de palavras de caráter duchampiano, o que faz todo sentido se lembrarmos que Maria Martins era muito próxima a Duchamp por esta época e, a partir de 1946, passou a se corresponder assiduamente com ele, numa troca de cartas não apenas amorosa, mas principalmente intelectual.

However

However, Maria Martins, 1944. Foto de Ruy Teixeira.

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Imagem do cabeçalho: Maria Martins no seu atelier, em Paris, 1950, cercada das esculturas O Impossível (a mais famosa, à esq. da artista, na foto), However, Pourquoi Toujours e Saudade. (Imagem retirada daqui.)

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