Ilustração de Júlia Barata

Insónia, a casa de sempre

Eu vi-me exausta e exangue, põe-te em guarda.

Sérgio Godinho, Balada da Rita

 

 

1. Tomo o comprimido. Bocejo, os olhos pesam na mais excitante cena do filme. A elucubração do podcast passa a ser um zum zum. Fecho o computador, troco os fones por tampões, venda nos olhos. Viro-me, afundada nas penas do edredão, almofada ergonómica em forma de coração entre as pernas. Quente, escuro, expressão infantil de quem se abandona ao sono.

Concentro-me, prestes a atingir o ponto sagrado em que talvez consiga adormecer e tudo se apaga para só regressar amanhã. Tudo, quer dizer, as impressões da existência, o mundo e as suas tragédias, o lastro – horrendo e subtil – de cada dia. De repente, o companheiro de cama mexe-se. Ao fundo, o ranger de uma porta. O estridente motor de arranque da caixa do elevador. Um ping no telemóvel, um leve pesadelo de criança. Uma vontade súbita de fazer xixi. Ou nada disso. Normalmente, nada disso: a cabeça simplesmente desperta como que atingida por um clarão.

Não cheguei a dormir ou, se aconteceu, nem um ciclo de sono se cumpriu.

2. Todos dormem. Imagino que todos no mundo devem dormir. Cidades que não dormem ainda vá, mas pessoas, todas hão de dormir. Invejo o ressonar e os sonhos deleitosos de todos os que dormem sem dores ou culpas. Cybercriminosos, políticos, assassinos, pessoas da ribalta, profissionais de alto risco, CEO de multinacionais… consciências leves como um sopro.

Menos eu, vigilante de uma causa perdida – o nada.

3. Vamos lá aos truques básicos:

Evitar conversas tensas antes de dormir, só amor e carinho. Fazer da cama um lugar de paz. Barriga para cima e mãos pousadas no ventre. Afastar memórias conflituosas. Pensar em coisas calmas. Vaquinhas e ovelhinhas nos prados. Melhor, pensar só nos prados. Uma paisagem lisa de neve. Um mergulho de mar. Os prazeres da infância, a minha mãe numa gruta qualquer a explicar a diferença entre estalactites e estalagmites. Os prazeres das festas suadas. Os prazeres dos lugares. Miradouro da Lua, praia Morena, praia da Laginha, serra da Lousã. Alinhar a respiração. Inspirar quatro segundos, reter o ar sete e expirar oito. Manter a posição, zerar, reiniciar. O embarcadouro de Urok, um mergulho no Índico, outro na Baía das Gatas.

Reinicio. Nada acontece.

Quer dizer, desviar-me do sono é já um acontecer.

Quão bela, mole e almejada é a palavra sono.

4. O relógio do telemóvel avança nos números. Olhos secos assistem ao desfile de inquietações. Faço contas e listas para resolver problemas que passam a ser o problema. Relembro momentos soltos noutras casas, com outras pessoas dentro, e outros skylines fora. Fragmentos de épocas e estados totalmente autónomos que o meu inconsciente reúne como se desse sentido ao caos que é viver. Faço planos a curto, médio e longo prazo, como se a opressiva matemática desse forma ao caos que é viver. Teoricamente tudo parece caber na cabeça eufórica de uma pessoa insone. Ideias, projetos, mudanças, tarefas. Roupa de verão para debaixo da cama, pôr a de inverno a arejar. Fazer pagamentos, eliminar todas as dívidas. Fazer exercício, eliminar dores e gorduras. Entregar trabalhos, eliminar os pendentes.

Sou um conjunto de preocupações raquíticas, o desfasamento incurável do presente. Uma tonelada de culpas agregadas. Um dever megalómano de tudo encorpar. Pesa-me uma amiga assombrada por um cancro, para quem queria ter disponibilidade fora do tempo acelerado. Pesam-me os familiares doentes, envelhecidos, crianças e amigos que precisam da nossa atenção, a quem devemos cuidados, presença, telefonemas. Pesam-me todos os que já morreram e os livros que faltam ler. Pesam-me as asneiras que fiz. Pesam-me os que magoei e nem reparei.

Pesa-me o nunca mais de tudo.

Ponho-me a elencar pessoas concretas a manter. As que merecem intercâmbio de alegria e de aprendizagem. Despeço os prevaricadores e os oportunistas da generosidade e entrega, esmiuçando arrependimentos: situações em que fui conciliadora quando devia ter batido com a porta. Outras em que desertei sem enfrentar o bisonte na sala.

Revejo compromissos das próximas semanas, que exigem disciplina e exposição. Um sem fim de minudências sobrepostas, nunca o grande fôlego. Vou aprender de vez a dizer Não, em prol da sanidade mental. Priorizar, não esgotar horas com o trabalho para outros, como se estivesse sempre em dívida.

5. À medida que a noite avança, estas e outras decisões vão-se esboroando, assim como as frases mentais de aparente sapiência para situações existentes, passadas, ultrapassadas. Uma cabeça exausta e delirante confunde realidade e ficção, acontecido e desejado, confunde temores e alegrias. À medida que o tempo passa, o cérebro tanto produz clarividentes como assustadoras perspetivas. O cérebro cria um dragão corpulento, cujos membros me empurram e viram do avesso. Mas não preciso de psicoanálise, não sou deprimida, sou apolínea e exercito a felicidade. A felicidade aciona-se na memória de se ser feliz.

Diagnósticos rasteiros e pequenas aflições traduzem o privilégio de quem tem salário, casa e cama quente. Lá vem a má consciência de esquerda.

O que será a vida para a minha filha daqui a uns anos? Que chão vai pisar, que ar vai respirar, de que catástrofes vai fugir, que trabalho será possível? Que cheiro terá a guerra interminável? Neste minuto, pessoas são bombardeadas e violadas. A falta de água, o aquecimento global, a seca, as pandemias. Torturas, violações, decapitações, estilhaços infiltrados na carne, ruínas e guetos de seres humanos. Mortes programadas, golpes militares, mortes por incapacidade social. Em todos os lugares (tenha sido ou não feliz) acontecem coisas terríveis. Lugares da televisão, onde morrem pessoas reais. Neste longo convívio com a violência, ainda falamos de «acontecimentos mediáticos» ou «disputas geopolíticas».

E regresso à escala de minúsculos problemas, ampliados pela lupa da insónia.

Por exemplo, de que me esqueci de comprar café. Perco a ilusão feliz de uma cafeteira a fumegar.

6. A insónia, «doença» invisível e irreconhecível para os outros, vem de longe e perdura desde que me conheço. Na infância obcecava-me a morte durante as horas insones. No início fantasiava que milhares de cobras entravam na minha cama. Tapava os orifícios do corpo não fossem as cobras entrarem por mim adentro. Seguiu-se o medo de que caísse um avião mesmo em cima da nossa casa. Ficava a imaginar se rebentaria o meu quarto ou o do meu irmão, qual de nós morreria primeiro. Depois, o pânico de mirrar o ar nos pulmões, deixando subitamente de respirar.

Com o tempo, a insónia ajuda a aceitar a morte. A desejá-la, inclusive. Deseja-se avidamente pôr fim à tortura. Suplica-se pelo momento em que questões existenciais e problemas mais ou menos fantasiosos, acumulados em horas de vigília, se reduzam à expressão «restos mortais».

7. Dormir é a hora das tréguas de todas as guerras. É desligar a luzinha verde do filme «existir» no descanso merecido. É ter acesso direto aos sonhos e às visões oníricas de salvação num mundo capitalista que capturou o sono para a indústria farmacêutica. Dormir também é morrer um bocadinho. Todas as noites, ao não dormir, adio o momento de morrer. No entanto, morro.

Sofro muito quando o dia chega.

8. Alguém dorme ao meu lado enquanto este processo infernal acontece. Assim me reconheço: a pessoa que sofre ao lado de uma pessoa que dorme. Partilhar quarto com o irmão, com as primas, colchão no chão entre as suas camas individuais, com a avó alentejana –  ouvi-la ressonar na cama de gavetão embaixo. Os segredos das amigas, dormir em casa umas das outras, não me deixavam adormecer. Faço vigílias prolongadas aos sonos cândidos de bebés em vez de aproveitar para descansar. Ou ao sono de um rapaz a meter inveja com os seus roncos, temores, sonhos, bruxismo, esticões, pontapés. Ao meu lado há sempre alguém a dormir, e passo a conhecer a fundo no seu abandono e indiferença ao meu desespero. Acumulo milhares de horas como vigilante e guardadora de sonos alheios. A verdade é que o descanso coletivo dos outros contribuiu para a minha insónia.

Morrer ao lado de um belo adormecido, não seria tão trágico.

9. Saio da cama. Dou início às errâncias noturnas. Os fantasmas dos livros nas estantes sopram-me em coro, e à vez, histórias desconexas. Uma casa silenciosa e adormecida, de objetos apagados, é triste apesar de cinematográfica. Já eu só quero sair deste filme.

Aconselham os insones a fazer desporto durante o dia para reciclar a energia. O certo é que o mal-estar diurno não me deixa fazer desporto. Só o défice de sono se recicla a si próprio: quanto menos durmo hoje, menos dormirei amanhã.

Também aconselham os gestos mecânicos, que não obriguem a pensar. Muito menos emoções, como esvaziar a banheira depois de as crianças brincarem. Tiro a louça da máquina, limpo a bancada, o fogão, os puxadores dos armários, despejo as migalhas da tábua do pão. Agito a torradeira até à última migalha carbonizada. Ataco o frigorífico, queijo e azeitonas em abundância, fruta, e já agora um Nestum. Sinto-me uma dessas almas inquietas (ou apenas mimada) que se arrastam pela casa e tentam acalmar-se na cozinha bebendo chá para afagar a excitação, lendo palavrinhas de outra alma inquieta, ousada o suficiente para as publicar. Sentindo muito as suas coisas através de palavras dos outros. Ponho uma máquina a funcionar, o som das máquinas de lavar louça ou roupa é reconfortante. Aqueço um saco de água quente. Vejo junk TV e programas que não prendam à narrativa. Scrolo o Instagram e o Facebook. Zoom in, zoom out, estamos numa sala vazia e, de repente, deparamos connosco no meio de uma multidão ruidosa. Os últimos posts já têm várias horas, até os maluquinhos das redes sociais dormem. Estranho o silêncio, e as zero notificações, devo estar a desaparecer. Tento novo filme. Mais um corpo despenhado num penhasco, mais uma investigação criminal. Tédio!

O vinho tinto ajuda a acalmar, bebo um trago. Um comprimido, muitas vezes aspirina, porque até ao ansiolítico, tomado no início da noite, a minha fúria de viver resiste.

Prossigo, corpo acometido e equivocado. A roupa está seca, dobro t-shirts, cuecas e meias de todos. Espreito no espelho, tiro um pelo ou dois isolados debaixo do queixo. Podia escrever poemas, mas a ternura é-me blindada nesta hora. Para quê acrescentar penas ao mundo? Ainda que decassílabos sem lei ecoem dentro de mim, nada sairá para o exterior.

10. Regresso à cama. Penso vagamente em fazer sexo. Talvez ajude. Mas dá trabalho masturbar um pénis adormecido. E acender o corpo, em lugar de o cansar, excita o córtex cerebral do meu animal-vertebrado e as hormonas emocionais do meu animal-mulher.

De novo, os olhos mergulham num vazio tão absurdo como escrever cartas aos mortos. A cada minuto, o peso de cada minuto. A cabeça é empurrada para o fundo do poço. Adivinho a presença do plástico montado numa árvore ali perto. O vento continua a soprar da janela. Sobe-me o frio que vem do manto sem fundo do rio lá fora, e o absurdo de estar ancorada. Bem que o rio me podia levar num sonho húmido. Sei de cor os ruídos da rua à noite, o passar do camião do lixo, um assobio diletante.

Começam a anunciar-se os ruídos da madrugada, e a luz avança branca.

11. Nestas longas noites, uma parte de mim boicota a outra parte de mim, num ciclo autodestrutivo.

Num vídeo que não devia ter visto explica-se que, com a falta de sono, o cérebro começa a auto devorar-se. Em testes com ratos de laboratório está comprovado, no caso dos humanos estão a averiguar. Prefiro não saber a resposta.

Leio sobre os sintomas e causas da insónia: stress, problemas de coração, hipertiroidismo, menopausa, cafeína a mais, energia em excesso, ansiedade. Os sintomas de depressão: incapacidade de sentir prazer com as atividades do quotidiano e um sentimento de tristeza profunda e prolongada.

Há mais mulheres insones do que homens. Sempre alerta com a nossa vida e a vida dos outros, carregando o mundo até ao mais ínfimo osso. Não nos permitimos o bem primário do descanso.

Depois de Pedrógão, dos despejos generalizados, do desemprego, de uma pandemia global como teste apocalíptico, da precariedade, da pobreza, da crise da habitação, das guerras e das crises nos governos, há mais de 700 mil portugueses ansiosos e/ou deprimidos. A esta hora, do Japão à Patagónia, de Cabinda a Helsínquia, há tanta gente movida a ansiolíticos. Aprisionadas num exíguo quarto de medos, mentes esfumadas e bestas inaptas para a domesticação ensaiam fórmulas para lidar com a ansiedade. Mãe implacável que não ouve o choro dos filhos, não consola as suas dores, sabota o discernimento. Crosta enrijecendo que continua a contagiar. Por mais fármacos e apps de mindfulness, a vida não se redime, mesmo quando imaginámos possível tudo regulamentar.

Não somos totalmente monitorizados, nem podemos ainda contar com o soma do Admirável Mundo Novo.

Esta podia ser uma perspetiva otimista.

12. Não queria pensar na ansiedade, muito menos vivê-la, mas já me apanhou. Brota de coisas pequenas, inquietações que passam a catástrofe. Dores proeminentes. Peito apertado comprimindo o ar com dificuldade para entrar e sair, mãos transpiradas, dedos e perna tremelicosos sob a mesa ou edredão. Como se estivesse num desses momentos last last call. O suspiro moribundo de um parente, o momento pré-expulsão do parto, o instante em que não se vê saída alguma, a última freguesia a apurar votos, a ruptura com o pai, o bebé doente, a amarga falta de dinheiro, o estagnar na relação destrutiva, as ações que descem na bolsa, o som seco do acidente, a derradeira palavra num julgamento, largar o filho pela primeira vez, conhecer alguém que nos põe a vida do avesso.

13. Todas as noites, ao não dormir, a ideia de começar o dia parece-me longínqua. Mas subitamente, ele, o dia cruel e impiedoso já está aí. E entre o início e o fim da insónia não consegui agarrar absolutamente nada.

Diz o Pavese em Ofício de Viver: “A única alegria neste mundo é a de começar. É belo viver, porque viver é começar, sempre, a cada instante. Quando esta sensação desaparece – prisão, doença, hábito, estupidez – deseja-se morrer.”

Trágico e belo o momento que antecede a manhã e o começar.

Seguir a toque de caixa. Disfarçar as olheiras, mergulhar no fluxo de funções, ações, de ciclos que obedecem à ordem e ao imprevisto dos dias. Cumprir papéis sociais, burocracias, calar insatisfações, manifestar pequenas querelas, reais, inventadas, equívocos verbais e existenciais, coisas que não dão calo. A mansidão da voz e o estado zombie do dia denunciam-me, contrariam a postura hiperativa que, por defesa, cultivei. 

O nervo é teso, o entusiasmo refreia, a concentração é esforço. Agarro a ponta da frase, acedo a um pedaço tardio da realidade.

14. Vem de longe este estado meio zombie e extenuado. Talvez seja o meu estado natural, embora camuflado e negligenciado com as tantas coisas que me obrigo a fazer e prática da felicidade e do desejo. Todos os gestos repassados entre dois momentos de fazer xixi, de manhã e de noite. Café com leite e torradas ao levantar, creme hidratante em círculos na cara ao deitar. O desgaste que nos atinge diariamente, a pílula do envelhecimento. O  dia a repetir-se num guião de orientação ilusória.

O que se leva para o dia das viagens dementes e epifânicas, dos terrores noturnos e privados? O que resta de um corpo minado por uma mente autoritária que não se cansa de si própria? As reservas de energia são recursos perecíveis e não é possível fazer revoluções com corpos tristes e cansados. Trocaria todas as horas desperta em pensamentos erróneos por uma noite de sono.

Insónia, a casa de sempre
Ilustração de Júlia Barata

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