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Inteligência Artificial: Passado e Presente

O que é inteligência artificial (IA)? De facto, nem mesmo o termo “inteligência” tem uma definição consensual entre filósofos, neurocientistas, ou outros pensadores sobre o assunto. Para evitar mergulhar na proverbial “toca de coelho” filosófica, usemos a sigla IA simplesmente para referir sistemas artificiais capazes de exibir comportamentos que um ser humano informado interpretaria como inteligentes.

As primeiras estratégias para construir sistemas de IA consistiam em tentar replicar em computadores os processos de raciocínio e os conhecimentos dos peritos de uma dada área (por exemplo, jogadores de xadrez ou médicos). Este tipo de abordagem, conhecida como “sistemas periciais”, falhou ao subestimar a dificuldade na aquisição e formalização dos processos mentais dos humanos: a explicitação dos nossos processos de inferência e decisão nem sempre é fácil ou sequer possível. Isto é particularmente verdade em funções que os humanos fazem sem esforço, como reconhecer uma cara familiar, mais do que em tarefas que habitualmente associamos a inteligência humana, como jogar xadrez. Este contraste ficou conhecido como paradoxo de Moravec.

A chamada aprendizagem automática (AA) ataca directamente o problema da aquisição de conhecimento, elevando-o à categoria de “o” problema central da IA. Em vez de tentar replicar os processos de inferência humanos, um sistema de AA aprende (é “treinado”) em muitos exemplos (os dados de “treino”). O objectivo central é que consiga generalizar, isto é, tomar decisões “parecidas” para novas observações “parecidas” com as dos exemplos de treino. Pode dizer-se que a AA retirou a IA do beco sem saída em que tinha entrado com os sistemas periciais.

Na última década, uma classe de métodos de AA vagamente inspirada na arquitectura neuronal do cérebro, conhecida como “aprendizagem profunda” (AP, deep learning) ou “redes neuronais”, tornou-se o paradigma dominante. Este paradigma permitiu obter sistemas de IA com desempenhos anteriormente considerados inatingíveis, em certos casos ultrapassando os humanos. Embora estas abordagens tenham raízes antigas de décadas, o seu elevado custo computacional e as grandes quantidades de dados necessárias não permitiam, com os computadores de então, atacar problemas de dimensões relevante. A AP esteve confinada a meios académicos até que o enorme poder de cálculo do presente, a capacidade de armazenamento e acesso eficiente a grandes quantidades de dados, em conjunto com um imenso investimento em investigação e desenvolvimento, permitissem que exibisse o seu extraordinário potencial e impacto actuais.

Um dos factores mais importantes para o desenvolvimento da AA e da IA é de natureza económica. Até ao final do século XX, o desenvolvimento da Internet focava-se na disponibilização de conteúdos, sendo o acesso pago a estes conteúdos o principal modelo de negócio. Na primeira década deste século, a superabundância de conteúdos (em parte provocada pela disseminação explosiva do acesso à Internet e do uso de “smartphones”) retirou valor ao acesso transferindo-o para a procura e recomendação. O modelo de negócio passou a basear-se, não no acesso pago a conteúdos, mas sim na publicidade correlacionada com as procuras ou nas redes sociais, personalizada para cada utilizador. Em particular, as redes sociais são sofisticados sistemas baseados em IA que capturam, influenciam e convertem atenção humana num bem transaccionável de grande valor. Foi nesta competição comercial pela atenção e pela informação acerca das preferências de cada um que se expandiram as tecnologias que permitem realizar estas tarefas, estimuladas por avultadíssimos investimentos em infra-estruturas e recursos humanos e tecnológicos para investigação e desenvolvimento em IA.

Contrariamente ao que é tradicional noutras indústrias, estas empresas têm sido muito abertas no acesso às ferramentas e aos recursos que desenvolvem. Ainda há 10 anos, as ferramentas de AP mais sofisticadas estavam apenas ao alcance de especialistas, maioritariamente em ambiente académico. Hoje, as grandes empresas que dominam tecnologicamente a área (nomeadamente a Alphabet/Google, a Meta/Facebook, a Amazon e outras) disponibilizam publicamente várias das suas ferramentas de programação e desenvolvimento, havendo também várias empresas que fornecem acesso às suas poderosas infra-estruturas computacionais a custos modestos. É hoje fácil aceder gratuitamente aos mais avançados métodos de AP e usá-los, explorando a enorme quantidade de recursos disponíveis na Internet. Há nesta área também uma forte cultura de software aberto: a maioria dos investigadores académicos e empresariais disponibilizam os seus modelos e, frequentemente, também os dados com os quais são treinados.

A IA tem hoje enorme presença nas sociedades desenvolvidas. As omnipresentes redes sociais, as ferramentas de busca, os sistemas de recomendação, os dispositivos móveis, cujo modelo de negócio se suporta em larga medida em IA/AA, tornam evidente o seu enorme peso na vida moderna. A IA/AA têm também presença relevantíssima em outras áreas da sociedade. Desde o final do século XX que se tem verificado um crescimento exponencial da utilização de IA/AA para abordar problemas de análise de informação e dados. Esta tendência iniciou-se em algumas ciências tradicionais (por exemplo, na biologia, onde levou ao aparecimento da bioinformática), mas rapidamente alastrou a outras áreas, incluindo as ciências sociais e humanas, a medicina, a política, a economia e finanças, a gestão, a agricultura, a história e mesmo as artes.

A IA/AA tem-se espalhado pelo mundo académico e de investigação como um incêndio em eucaliptos secos, havendo hoje poucas áreas científicas/tecnológicas ainda imunes a esta influência. O impacto na sociedade em geral é amplamente discutido, desde a explosiva expansão das redes sociais, impulsionadas e suportadas pela IA/AA, até às preocupações éticas sobre a automatização de decisões que afectam pessoas. O que não é tão conhecido é o enorme impacto da IA/AA na ciência e na tecnologia. A IA/AA pode ser vista como uma nova e poderosa caixa de ferramentas que complementa e expande as tradicionais, nomeadamente os modelos matemáticos e computacionais, expandindo grandemente a gama de problemas que podem ser eficientemente abordados. Em vez de substituir as ferramentas clássicas da ciência e tecnologia, a IA/AA está a ser combinada de forma sinérgica com essas ferramentas.

A penetração da IA/AA em muitas áreas de actividade, tomando – ou participando em – decisões que têm impacto em seres humanos, torna urgente dotar a sociedade de “literacia” suficiente nessas técnicas para que a população (não só os especialistas) possa entender as suas consequências. Tal como não é necessário ser profundo conhecedor de mecânica e termodinâmica para conduzir automóveis e ser consciente de todo o impacto que têm na sociedade, não é necessário que todos conheçam em detalhe o funcionamento dos métodos de IA/AA. No entanto, é crucial que a sociedade esteja informada e consciente, não só do enorme potencial positivo, mas também dos riscos que o seu uso generalizado pode acarretar.

Para além das questões de privacidade, para as quais começa a ver-se uma consciencialização pública, a utilização generalizada de técnicas de IA/AA para capturar a atenção das pessoas e influenciar as suas decisões (não só comerciais, mas também políticas e outras) pode ter consequências difíceis de prever e que requerem reflexão. O uso generalizado de IA/AA para tomar decisões automáticas e para guiar decisões humanas tem efeitos complexos e imprevisíveis sobre a sociedade. A compreensão destes efeitos não deve ser da responsabilidade exclusiva de um conjunto de especialistas, mas sim da sociedade, nomeadamente dos seus líderes políticos.

No final de 2022 e início de 2023 verificou-se um enorme aumento da excitação em torno dos últimos avanços da IA/AA. Neste período, foram disponibilizados os mais recentes e sofisticados grandes modelos de linguagem (large language models): modelos treinados para aprender a prever padrões linguísticos a partir de astronómicos volumes de dados textuais.

Os sistemas de diálogo (vulgo chatbots – robôs de conversa) suportados nestes modelos de linguagem recentes (dos quais o ChatGPT é o mais famoso e utilizado) são capazes de estabelecer diálogos longos e complexos com utilizadores humanos, exibindo competências que podem ser interpretadas como compreensão, raciocínio e mesmo criatividade, consideradas como exclusivas dos seres humanos. Estas observações têm estimulado enorme controvérsia e debate, não só técnico, mas também filosófico, trazendo para primeiro plano discussões sobre a noção de inteligência e mesmo de consciência.

Estas capacidades emergentes[1] dos mais recentes sistemas de IA/AA têm gerado uma complexa mistura de entusiasmo e preocupação, atingindo os meios de comunicação social de grande público e até mesmo os governos de muitos países. No extremo desta preocupação, várias personalidades do mundo da IA (incluindo da OpenAI, talvez ironicamente, a própria empresa que criou o ChatGPT) afirmaram que a IA representa um riscoexistencial para a humanidade, ao nível de pandemias e de guerras nucleares, risco esse que não está a receber a devida atenção. Este foco na ameaça existencial da IA tem também levantado fortes críticas: por um lado, é vista por muitos especialistas (nos quais me incluo) como irrealista no futuro de curto ou médio prazo; por outro lado, esta atenção selectiva ofusca outros riscos significativos, minimizando a urgência de questões globais, como os impactos das alterações climáticas, e os riscos actuais já criados pela IA.

Em vez de se concentrar em riscos futuros incertos, a atenção deve ser dada aos problemas prementes que o uso da IA de forma irresponsável pode já estar a causar: amplificação de desigualdades e preconceitos, limitação de liberdade e de privacidade, perturbação dos mercados de trabalho, produção de grandes quantidades de desinformação que podem desestabilizar as sociedades democráticas, para mencionar apenas os mais óbvios e evidentes. Estas questões exigem soluções políticas e regulatórias, mas também apresentam muitos desafios técnicos e científicos na procura de uma utilização responsável da IA.


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[1] Uma capacidade (ou comportamento) emergente resulta da interacção entre os componentes de um sistema complexo, manifestando-se de forma não facilmente  previsível (ou mesmo completamente imprevisível) a partir das propriedades e interacções individuais desses componentes. Uma capacidade emergente surge a nível global do sistema, como famosamente capturado na expressão “more is different” (“mais é diferente”), título de um famoso artigo de Philip Anderson, de 1972, no qual argumenta que, “a cada nível de complexidade, surgem propriedades inteiramente novas”.


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Imagem gerada por IA.

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