O fim da imaginação
A imaginação é essencial à política. Só faz sentido agir politicamente quando se acredita que há a possibilidade de mudar o mundo. A ideologia é, em certo sentido, um mapa para se chegar a uma forma de sociedade imaginada que acreditamos ser a melhor. Mesmo os mais conservadores estão agarrados a uma ideia imaginária sobre outro mundo possível que pode ou não ter já existido. Não faz sentido desligar o exercício político das ideias que o sustentam, acreditando que uma política esvaziada de crenças produziria uma prática técnica, burocrática e neutra de gestão do bem comum. Em política, não há neutros.
Não é essa, contudo, a história que nos tem sido contada nos últimos 40 anos. Quando William Davies procurou definir o neoliberalismo chamou-lhe “o desencantamento da política pela economia”. James Buchanan já tinha falado numa “política sem romance”. Sejamos ou não adeptos rendidos à tese de que “não há alternativa”, o discurso político tem sido dominado nas últimas décadas por uma discussão em torno da desideologização.
Foi-nos vendida a ideia de que a economia não conhece ideologias e de que o mercado na sua forma mais pura (seja lá o que isso for) acabará por reger todos os aspectos da nossa vida. Não chegámos aqui por acaso. Este “desencantamento da política pela economia” nasceu dos escombros das experiências das grandes ideologias. Chegámos aos anos 80, em cima dos pedaços do muro de Berlim, ele próprio já erguido sobre as ruínas das ditaduras fascistas.
Os últimos 40 anos foram vividos como se a História tivesse chegado ao seu fim, um final glorioso, com uma democracia liberal espalhando-se ao ritmo da livre circulação de capitais e da globalização.
Havia bastante ingenuidade nesta ideia. Cioran já tinha escrito em 1957 que “a longo prazo, a vida sem utopia torna-se irrespirável, pelo menos para a multidão: para evitar a petrificação, o mundo sente a falta de um delírio novo”. Esse delírio, vemo-lo agora, chegou sob a forma de um regresso à tríade extremista do “Deus, Pátria e Família” nas suas várias declinações, mais ou menos inovadoras, apresentadas como modelos de “democracia iliberal”, porque as ditaduras dificilmente conseguem hoje excitar as massas.
A direita, na sua versão mais extrema, encontrou assim um novo modelo aspiracional. Um modelo que raras vezes apresenta de forma clara e declarada ao que vem, mas que usa formas simplistas que se tornam sedutoras num mundo dominado pelo cepticismo e pela descrença. Podemos não saber em que mundo queremos viver, mas encontramos inimigos que nos ajudam a rejeitar o que não queremos.
À esquerda, as coisas têm sido mais complicadas. Göran Therborn, na revista New Left Review, admite o falhanço de um projecto político que viu erodida a sua utopia. “Trata-se de uma perda histórica de visão: a perda de um futuro imaginário inspirador. É certo que as vigorosas ondas de oposição anti neoliberal da nova esquerda e a inventiva da sua prática demonstraram que esta perda não é fatal. Existem visões de vários tipos. A História do século XX também nos mostrou que as transformações sociais raras vezes se fazem segundo modelos preestabelecidos. No entanto, uma longa marcha necessita de uma direcção”.
Essa direcção ficou prejudicada pelos falhanços das revoluções do século XX. Asad Haider, editor da Viewpoint, fala-nos sobre como “é impossível agir genuinamente dentro desta condição de despolitização” a que nos trouxe a ideia de que só há uma forma de organização social: aquela que se estabeleceu nos (agora frágeis) estados sociais construídos no pós-guerra no mundo ocidental.
Estaremos, por isso, paralisados? Pensar que sim é uma desistência inaceitável para quem vê a política como instrumento de produção de uma comunidade mais justa. O problema está em saber em que consistirá essa sociedade que queremos construir.
A imaginação é a argamassa que falta
Quando em 2018 os franceses vestiram os seus gilets jaunes e saíram para as ruas, os mais incautos acreditaram estar a assistir ao germinar de uma revolução. Aquela massa de protestantes não tinha, contudo, nada que os agregasse além de uma ideia de ressentimento e frustração. Não havia um projecto comum. Havia um somatório de descontentamentos que, em alguns casos, serviam para estabelecer pontes entre quem protestava, mas que não tinham a solidez necessária para erguer uma alternativa.
Em 2023 assistimos novamente a uma onda de fúria em França. Desta vez, o objecto inicial da rejeição é menos difuso: os protestantes querem garantir o direito à reforma aos 62 anos, claro, mas percebem também que o que está em causa são os próprios fundamentos da democracia como um sistema político que depende do apoio popular.
Quando Macron decidiu accionar o artigo 49.3 da Constituição para forçar a reforma que quer impor, pôs em causa esses fundamentos. Não foi a primeira vez que esta possibilidade legal foi usada, mas poucas vezes terá servido para fazer passar uma medida cuja taxa de rejeição está, segundo uma sondagem do IFOP publicada em Março, perto dos 80%.
O grau de mobilização conseguido em França pode ser entusiasmante para quem espera mudanças políticas, mas é aconselhável olhar com cautela para uma multidão que, mais do que uma reivindicação positiva, se une em torno de uma rejeição.
A argamassa capaz de unir politicamente uma multidão em torno de um projecto político alternativo faz-se de imaginação. É preciso acreditar que é possível construir algo diferente. E essa imaginação tem estado em falta, soterrada pelo peso de uma ideia de pragmatismo dos mercados que nos faz aceitar como vontades divinas situações de desigualdade que, em tempos, pusemos em causa.
Essa desesperança está a ser aproveitada por quem quer não só manter esses níveis de desigualdade, como agravá-los. Na sombra destes protestos em França, espreita Le Pen e o seu projecto de extrema-direita. Da mesma forma, em Portugal, o descontentamento crescente com a crise na habitação ou o aumento da inflação parece ter como único efeito prático o crescimento do Chega nas sondagens.
Marcelo Rebelo de Sousa sabe-o e tem usado esse argumento para dizer que “há uma alternativa aritmética ao Governo, mas não uma alternativa política”. Na verdade, o Presidente da República está também a falar de matemática, porque o seu raciocínio assenta na ideia de que a direita só terá deputados suficientes para somar uma maioria no Parlamento juntando-se ao Chega.
Essa impossibilidade aritmética tem garantido que o Governo de António Costa – cuja maioria absoluta foi conquistada nas urnas há pouco mais de um ano – vá somando descontentamentos sem que isso pareça (para já) abrir espaço à possibilidade da dissolução do Parlamento.
O país político vive, assim, na discussão constante e bastante estéril sobre se deverá ou não haver eleições antecipadas. Um debate que parece tanto mais abstruso quanto foi iniciado quase após a vitória clara que o PS teve em Janeiro de 2022.
Um voto de esperança ou um voto zangado de protesto?
Enquanto políticos, comentadores e jornalistas se entretêm com essa discussão, os portugueses têm cada vez mais dificuldades no acesso à habitação, desesperam pelas dificuldades no acesso à saúde, exasperam-se com a degradação da escola pública e empobrecem sob o peso da subida dos preços e dos juros. E o calendário avança.
Independentemente de elas serem ou não antecipadas, as eleições chegarão. E, quando chegarem, os portugueses terão duas opções: um voto de esperança numa alternativa ou um voto zangado de protesto. As várias forças políticas em disputa, de esquerda ou de direita, têm de ter isso em mente. Porque um voto que só rejeita nunca será capaz de construir. E um país que precisa tanto de soluções só poderá degradar-se ainda mais se as urnas servirem para expressar raiva e não para imaginar um futuro melhor.
Dir-se-ia que há algum lirismo em quem ainda acredita num futuro melhor. Está fora de moda exaltar as qualidades da democracia e afirmar a crença numa sociedade mais decente. Mas a quem escarnece dos que insistem em não desistir, deve-se perguntar de frente: qual é a alternativa? Qual é a alternativa a uma democracia que tenha como objectivo o ataque à desigualdade?
Há um trabalho de desconstrução que tem de ser feito em relação à ideia de que a desigualdade é natural, porque ela é hoje a maior ameaça à coesão nas nossas sociedades. Uma sociedade que aceita como natural que haja quem fique com tudo enquanto outros estão destinados à miséria e à quase escravatura não poderá oferecer um projecto de esperança nem terá, no longo prazo, bases para garantir a paz e a prosperidade sociais.
A desigualdade não é natural e a igualdade é essencial à liberdade
A desigualdade não é natural nem é inerente à condição humana. Na verdade, não há nenhuma predisposição genética ou biológica que faça com que o ser humano tenha necessariamente de se organizar de uma determinada forma.
David Graeber e David Wengrow mostram-nos claramente isso em “O Princípio de Tudo, Uma Nova História da Humanidade”, com exemplos de várias civilizações que, em diversos momentos da História, encontraram formas diferentes de se organizar. Rousseau estava errado quando acreditou que seria possível encontrar o momento fundador da desigualdade na criação da propriedade privada.
A ideia de que existiu uma forma original de sociedade humana e que essa forma era “fundamentalmente boa ou má”, de que “existiu um tempo antes da consciência política”, de que “a civilização e a sociedade surgem sempre às custas das liberdades humanas” e de que “a democracia participativa é natural em pequenos grupos, mas não consegue transitar para a escala maior de uma cidade ou de um Estado-Nação” são, comprovam estes autores, “mitos”.
A política é, em qualquer das suas formas, uma prática de organização da sociedade e o Homem é um animal político. A Humanidade conseguirá (re)encontrar novas formas de se organizar politicamente quando se afastar destes mitos e da ideia de que está presa no fim da História, sem possibilidades de se reinventar.
Para isso, precisamos de voltar a colocar a igualdade como hipótese, mas precisamos também de desfazer a ideia de que essa igualdade é incompatível com a liberdade individual. Mais: temos de perceber que só há liberdade, quando se verificam pressupostos de bem-estar individual e colectivo baseados numa ideia de igualdade, que não pode ser apenas de oportunidades nos termos abstractos de uma meritocracia competitiva, mas de condições materiais básicas. E, sim, vamos precisar de muita imaginação para o conseguir.
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Ilustração de Lia Ferreira