Nuvem, de Lia Ferreira

Isto anda tudo ligado #7

 A democracia está em crise, viva a democracia

 

Vivemos em democracia. Podemos escrever esta frase sem hesitar. Dizemo-la sem reflectir sobre ela. A ideia de que as democracias liberais de tipo ocidental são uma espécie de zénite da política instalou-se nos últimos cinquenta anos. Usamo-la ainda para justificar invasões, golpes e guerras, mas são já demasiado visíveis as brechas que apresenta. É cedo para saber se estamos perante as ruínas de um sistema que servirá de fundação a algo novo ou se ainda haverá forma de reconstruir o que se começou a partir. Em qualquer caso, é impossível ignorar o problema.

Vejamos os resultados de um estudo da Open Society Foundations, que inquiriu pessoas de 30 países e foi publicado em Setembro, e encontraremos com que nos inquietar. Só 57% dos jovens (entre os 18 e os 36 anos) acreditam que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo. Nesta faixa etária, 42% prefeririam um regime militar e 35% um líder forte que descarte o parlamento e as eleições.

A constatação arrepia. Mas as causas não surpreendem. Quando se pergunta a estes jovens o que os leva a desacreditar a democracia, a resposta está na pobreza, na desigualdade e nas alterações climáticas. A insatisfação está, portanto, na forma como este regime que tudo promete tem falhado em responder àquelas que são as maiores crises do nosso tempo e que o breve período do pós-guerra tinha iludido no mundo ocidental através de um Estado de Bem-Estar que produziu avanços em termos de igualdade e justiça social.

A frustração democrática

Exigimos tudo à democracia e ela está a falhar-nos. O filósofo francês Jacques Rancière explica bem este ódio no seu livro La haine de la démocratie, que contém uma definição interessante deste regime enquanto “o reinado dos desejos ilimitados dos indivíduos da sociedade de massas”. A insatisfação e a exigência constante fazem parte daquilo a que chamamos o conflito democrático.

Vemos este jogo democrático como uma arena na qual as várias forças se batem para satisfazer as suas exigências. O primado da igualdade perante a lei dá-nos a ilusão de que cada homem vale um voto e, portanto, todos os indivíduos valem o mesmo num regime democrático. Este é o primeiro equívoco que ajuda a aumentar a frustração.

Na verdade, a fundação da democracia tem pouco ou nada que ver com esta ideia de igualdade. Nos primórdios da democracia na Grécia Antiga e mais tarde quando ela ressurgiu nos Estados Unidos da América, em França ou em Inglaterra, o voto era censitário. Os pais fundadores da democracia americana deixaram claro na Constituição de 1787 que só homens, brancos e ricos poderiam votar. Ser cidadão começou por ser um direito de classe.

Esta é uma concepção que foi desaparecendo da lei, mas que de alguma forma continua a vigorar tacitamente. Ninguém é impedido de votar por ser mulher, negro ou pobre (apesar de vários estados dos EUA retirarem o direito de voto a pessoas encarceradas), mas as condições materiais parecem não ser indiferentes ao exercício pleno da democracia.

Veja-se a análise que o El Diário publicou nas últimas eleições espanholas, num mapa que ajuda a mostrar que “as zonas pobres votam menos, excepto para eleger os autarcas”. A pobreza e a exclusão social fazem com que as eleições nacionais pareçam distantes. E é nesse ponto que os discursos populistas, que embarcam no refrão do “eles são todos iguais”, ganham eco. De facto, quem faz parte da camada mais frágil da população não vê na política (e na democracia) respostas para os problemas que os afligem.

“É muito difícil ter pessoas do povo aqui”

A ideia de proximidade parece ser essencial para a democracia. E não é por isso de estranhar que as eleições europeias sejam, em regra, aquelas em que as taxas de abstenção são mais altas. É difícil mobilizar-nos para intervir no que nos parece distante.

A distância que afasta da democracia tem que ver com a ideia, que Jacques Rancière explora bem no seu livro, de que este regime é muitas vezes um “governo de oligarquias”. O termo pode chocar, mas não tanto se substituirmos a palavra “oligarquias” por “elites”. A expressão pode ser mais aceitável, mas o princípio não é muito diferente. 

Na verdade, este “governo dos melhores” (como lhes chamavam os fundadores da democracia americana) é uma governação exercida por uma classe burguesa, que tem assim ferramentas para impor as suas políticas à maioria, ainda que consiga o apoio popular através de eleições independentes e livres. Não é o exercício do voto que está em causa, mas o próprio caldo em que acontece, com políticas apresentadas como inevitáveis e conduzidas para proteger interesses económicos com mais força e poder para fazer passar as suas mensagens.

Esse é um dos problemas da democracia representativa. A dedicação à política exige condições de disponibilidade e, cada vez mais, competências técnicas, que condicionam à partida aqueles que fazem parte do contingente de entre o qual serão escolhidos os eleitos para nos representar. Nos últimos cinquenta anos, um certo triunfo da tecnocracia tem acentuado este aspecto é feito recuar a hipótese de termos um corpo de governantes que seja o espelho da composição dos governados.

Olhemos para os dados recolhidos pelo antropólogo João Mineiro, no seu livro Fazer Política: “Na Assembleia Constituinte e na I Legislatura, entre 75% e 80% dos deputados não eram dirigentes partidários, percentagem que se manteve sempre acima dos 50% até à IV Legislatura (1985). Nas legislaturas seguintes a percentagem de deputados sem cargos partidários desceu para valores de cerca de 40% ou menos que isso (Freire 2002), ao mesmo tempo que a esmagadora maioria dos parlamentares eleitos desde essa data (por vezes mais de 80%), já tinha tido experiência num cargo eletivo anterior. Simultaneamente, ganharam maior representatividade as pessoas qualificadas (por exemplo, parlamentares com ensino universitário passaram de 62% na Constituinte para 75% na VII Legislatura), identificando-se igualmente um predomínio de grupos profissionais socioprofissionais como os advogados/juristas, os dirigentes da função pública e empresarial e os docentes”. Os operários desapareceram do hemiciclo.

Mineiro, que esteve nos bastidores da Assembleia da República entre 2015 e 2018, para fazer uma etnografia parlamentar, ouviu este desabafo de um chefe de gabinete de uma das bancadas. “Isto é a elite, não é? É a elite política e social. É óbvio que essa imagem se está a desgastar bastante na sociedade. Algum dia isto tem de levar uma adaptação porque qualquer dia ninguém respeita ninguém aqui. A única coisa que [os deputados] têm a mais que as outras é que foram colocados numa lista e que alguém votou nelas. É a elite. Neste país em que toda a gente se trata por doutores e engenheiros, dá muita importância a que a sua elite seja uma elite com conhecimentos, nomeadamente com conhecimentos mais técnicos. E cada vez mais isso vai estreitando [o Parlamento], ao ponto, de facto, de não teres aqui nenhuma margem para pessoas que não tenham conhecimentos técnicos, que não têm determinado tipo de comportamento social. É muito difícil ter pessoas do povo aqui”.

O “povo”, essa entidade abstracta fundacional para a ideia de democracia, desapareceu das bancadas parlamentares, onde apenas se sentou brevemente após a euforia da revolução do 25 de Abril, numa época em que quase todos os partidos eleitos se afirmavam marxistas e as baixas qualificações da população abriam a porta a que se fossem buscar mesmo os que não tinham uma educação formal.

O aumento das qualificações ajudará por certo a explicar esta mudança de perfil dos deputados, mas não explica a ainda tão reduzida presença de pessoas não brancas ou até de mulheres, que apesar de ter vindo a aumentar devido às leis da paridade (eram 6% em 1980, 20% em 2002 e 34% em 2015) continua a não reflectir a composição da sociedade portuguesa.

O triunfo da tecnocracia

A transformação da política num assunto técnico não pode, penso eu, ser desligada de um triunfo da tecnocracia. Ou seja, de uma tentativa de afastar o cidadão comum da intervenção política, reservando-a para os que serão supostamente mais formados para intervir e que quase sempre acabam por cristalizar um sentido político que privilegia os interesses de uns poucos contra os da maioria.

A democracia é perigosa. As escolhas da maioria podem pôr em perigo os privilégios de uma elite. A democracia é conflituosa. Ela implica que não há apenas uma visão possível do mundo e que todos se sentem no direito de fazer exigências. A democracia dá trabalho. Ela não é uma ditadura da maioria, tem de ser construída sobre bases legais que preservem os direitos das minorias, e implica um trabalho de aproximação e consensos.

A tecnocracia tem sido uma forma usada pelo neoliberalismo para afastar as massas da intervenção política e preservar um certo status quo, criando um cordão sanitário em torno de alguns privilégios, sob a ideia de que “não há alternativa”. Mais: de que a economia (pilar essencial da política) obedece a leis naturais, apolíticas e incontestáveis.

“Quando os termos básicos da vida económica são vistos como a factos inalteráveis da natureza, então, o âmbito do autogoverno fica radicalmente limitado. A política é reduzida à condição de se vergar à necessidade (…). Quando a política é principalmente uma adaptação aos imperativos fixos da vida económica, torna-se numa actividade mais adequada aos especialistas e tecnocratas do que aos cidadãos democráticos”, avisa o filósofo americano Michael Sandel em O Descontentamento da Democracia.

O economista João Rodrigues explica, no livro O neoliberalismo não é um slogan, como a construção europeia foi de alguma forma uma maneira de as elites se protegerem da ameaça das exigências democráticas do povo. “Desconfiados das massas e dos efeitos potencialmente totalitários da sua entrada irrestrita na política nacional, a integração europeia foi desde o início pensada (…) como ‘uma forma de colocar barreiras às democracias nacionais através de instituições não eleitas’”. Instituições como o Banco Central Europeu, fruto de uma decisão política mas não democraticamente eleito, têm hoje um peso muito mais determinante nas nossas vidas colectivas do que os governos que elegemos.

Esta limitação do poder dos votos transforma-se na “impotência democrática” de que fala o politólogo espanhol Ignacio Sánchez-Cuenca em La Impotencia Democrática e que se consubstancia no trilema apresentado por Dani Rodrik sobre a impossibilidade de existirem em simultâneo globalização, soberania nacional e democracia.

Esta análise é interessante porque desloca a discussão sobre a ameaça à democracia dos perigos da tecnologia para a economia. Por muito que os dispositivos tecnológicos exerçam influência sobre os regimes políticos (e os riscos das fake news são ilustrativos disso), é o sistema económico que acaba por condicionar os usos da tecnologia.

A shareholder democracy

De resto, a própria economia tenta usar a forma democrática para se legitimar e não apenas nos sistemas políticos. Uma das maiores e mais poderosas empresas de fundos de investimento a nível mundial, a Black Rock, lançou um programa chamado Voting Choice, que faz com que os investidores possam votar para escolher as áreas em que os fundos em que participam devem ou não investir. 

A empresa chama-lhe “shareholder democracy” e faz parte de uma abordagem cada vez mais comum no mundo dos negócios, que relaciona as escolhas políticas às de investimento, num “shareholder activism”, no qual os accionistas (que têm tantos mais votos quanto mais capital controlam) tentam influenciar escolhas empresariais para beneficiar políticas que podem ser pró-vida ou feministas, conservadoras ou pró-LGBTQIA+, negacionistas das alterações climáticas ou verdes ou pró-blue lives matter ou anti-racistas. 

Se pensarmos – como normalmente pensamos – na democracia como uma forma de autogoverno, este é um simulacro democrático, mas é também o reconhecimento pelo sistema financeiro do poder político real que detém e que até agora preferia manter na sombra.

“Vem aí o lobo”, gritam os políticos

Na última sessão solene do 25 de Abril, no Parlamento, impressionou-me a forma como quase todos os partidos fizeram da festa da democracia um momento de alerta para a crise da democracia. 

“A nossa democracia não só não está garantida como vive o momento de maior risco na sua existência desde o 25 de Abril”, disse Rui Tavares, deputado eleito pelo Livre. “A democracia está sob ameaça”, avisou o deputado comunista Manuel Loff, falando num perigo que se sente “em todos os lugares, a começar por Portugal onde reiteradamente se não cumprem as naturais, justíssimas expectativas de quem espera que a democracia seja sempre acompanhada de bem-estar e de justiça social”.

Os avisos não vêm só da esquerda. A ideia de que a democracia está em crise é muitas vezes o mote para os discursos de Marcelo Rebelo de Sousa. “É um problema real a ideia de que a liberdade e o pluralismo são irreversíveis e que a democracia é irreversível, é uma ideia ilusória e que pode ser perigosa. É uma construção de todos os dias, mesmo onde pensamos que está adquirida, não está adquirida”, avisou o Presidente da República num discurso a 31 de Agosto.

O discurso político tem incorporado o tema da crise da democracia, umas vezes como vacina contra o populismo, outras como o próprio combustível que faz avançar a deriva populista. A forma como os avisos sobre os riscos que pairam sobre o regime são usados, de acordo com os interesses de quem os profere, tem um efeito perigoso: o de se anularem a si próprios.

Como no conto infantil sobre o Pedro e o Lobo, tendemos a ignorar estes apelos sobre a democracia. Acredito que é um erro fazê-lo.

A alternativa parece bem pior

Talvez seja impossível que a democracia se mantenha. “Nenhum regime político dura eternamente”, frisa Sanchéz-Cuenca, que acredita que “o mais provável é que se produza uma evolução lenta em direcção a outras formas de organização”. Talvez já estejamos a viver agora essa mudança, sem nos apercebermos dela, como não sentimos os movimentos das placas tectónicas, a menos que elas produzam um terramoto.

É um jargão estafado dizer que “a democracia é o pior dos sistemas com excepção de todos os outros”. Essa será, contudo, a sua melhor defesa. A sua maior qualidade é ser um regime capaz de se auto-regenerar. É o único que permite o escrutínio e a intervenção pública e é o mais eficaz para preservar as liberdades individuais e permitir a organização de colectivos que lutem pelos seus direitos.

A democracia está em crise. E talvez essa seja, como defende Giorgio Agamben, a sua nova natureza, numa fase em que os governos usam cada vez mais as crises para legitimar escolhas que dificilmente uma maioria democrática poderia aceitar. Talvez seja apenas o estado de excepção, a que tantas vezes os políticos têm recorrido nos regimes democráticos para manter um certo estado das coisas, que mantém viva a possibilidade democrática.

Devemos agarrar-nos a essa possibilidade. Garantir direitos de igualdade perante a lei, de defesa das minorias, de liberdades individuais é uma necessidade. Lutar pelo combate às desigualdades e por uma mais justa distribuição da riqueza é uma emergência. Se a democracia não for capaz de dar as respostas que dela se esperam, os povos desistirão dela. Sabemos, pela experiência de 48 anos de trevas, o que pode o medo e a fome.

Lutemos, pois, para tornar democrática a democracia. Mas façamo-lo de olhos abertos, sem ignorar os enganos em que ela nos enreda e os perigos que oculta. Sim, por agora, a alternativa parece bem pior.


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Ilustração de Lia Ferreira

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