Fotografia de Gonçalo Calado

Magníficos dias atlânticos

Viver numa ilha não é para todos. Muito menos para quem não nasceu lá ou noutra ilha. Gosto de visitar ilhas. As com pessoas e as sem pessoas. Frequentemente, as ilhas com pessoas têm histórias mais interessantes, ou pelo menos que interessam a mais gente, que não é o mesmo.

Um grande amigo estabeleceu-se numa ilha dos Açores há mais de trinta anos. Adaptou-se bastante bem. É mais açoriano do que muitos de berço que conheço. Mas vejo-o como uma exceção. Visito-o menos vezes do que gostaria. Quando chego é um pico de alegria. Passada a parte do “venham de lá esses ossos” e demais cumprimentos sentidos, vem a parte por que tanto anseio: a história da ilha desde a última vez que lá estive numa viagem de carro de meia hora, do aeroporto a casa dele. É um momento único, que vive de pretextos, à medida que aos meus olhos chegam imagens que espoletam recordações. Começa logo no átrio das chegadas do aeroporto em que se conhece uma parte interessante das pessoas, sobretudo se a visita for fora do verão. De vista, do café, de um serviço, de onde seja. Reza assim:

– Aquele ali não trabalhava na TAP na cidade?

– Sim, o Remígio. Mas quando aquilo fechou deram-lhe a possibilidade de ir para a pré-reforma ou mudar de ilha. Aceitou a primeira e abriu um café que já fechou. Não correu bem. Agora está a reconstruir a casa dos pais com os apoios do terramoto para arrendar a turistas e parece que vai concorrer à junta de freguesia. A mulher deixou-o há coisa de dois anos e a filha foi estudar para o continente e só vem nas férias. Anda aí embeiçado por uma brasileira que trabalha no restaurante ali do canto, mas não sei se tem sorte… já sabes como é… isto é um meio pequeno…

– E este carro, há quanto tempo tens? Ainda não conhecia.

-– Claro que não. Tenho-o há dois meses. O motor do meu Datsun colou e o Zacarias da oficina quis ficar com ele para peças. Tinha lá este a funcionar e disse que lhe podia pagar metade em dinheiro, metade em lapas quando apanhasse. Era do Sousa da retrosaria e na estrada ainda me apitam ou fazem sinais de luzes pensando que é o Sousa que lá vai. Outro dia na bomba de gasolina, estava a chover muito e vem uma senhora e põe o saco de compras no banco de trás. Quando abre a porta do pendura para se sentar apanha um susto. Era a Otília, comadre do Sousa que esperava boleia para casa. Claro que a levei. Divertido.

Cinco minutos de caminho e os meus olhos vão refrescando a memória. A quantidade de verde, a estrada exígua, os carros estacionados no meio da estrada, até que vejo uma novidade:

– Esta rotunda é nova.

– Sim, vai dar ali acima à variante. Foi promessa das últimas eleições. A variante ainda não está acabada, mas já tiveram de pôr um radar de velocidade que a malta vinha para aqui já com os copos esticar os carros e espetava-se. Ainda não estamos habituados. Quando estiver terminada, certamente antes das próximas eleições, não precisamos de passar pela cidade para ir para casa.

Entramos na cidade. Tudo muito parecido. Caras conhecidas na rua principal. Daquelas caras que fazem parte da rua principal. Das que quando morrerem terão lá uma estátua ou um banco com o seu nome. Mais velhos, como nós. Mas eternos naquele contexto.

O carro para no trânsito por uns segundos. Ao meu lado no passeio reparo que está a passar alguém que conheço de visitas anteriores à ilha. Abro o vidro, cumprimento, mas sinto alguma frieza na resposta. O meu amigo nem olha.

– O Jonas… Ainda tem a loja?

– Sim, mas está lá pouco. Faz mais serviços de manutenção por fora. Também agora sei pouco dele. Não nos damos desde que ele foi falar mal de mim ao Ilídio do supermercado. O gajo sempre teve inveja de o Ilídio me vender fiado e a ele não. Ele sempre foi um macaco com as contas, e o Ilídio não está para o aturar. Também agora tem a mania de que é importante só porque anda com uma alemã que é estagiária no Instituto.

– A sério!? Então e a Márcia? Eles estavam juntos desde o liceu. Ainda bem que não lhe perguntei pela Márcia…

– Não sabes? Pensei que da outra vez que cá estiveste já te tinha contado. Afinal, há quantos anos é que cá não vens, porra?

– Ias dizer da Márcia.

– Ah… sim, desculpa. A Márcia queria ser mãe e o Jonas não estava para aí virado. E pô-lo entre a espada e a parede. Disse que não queria ser mãe aos quarenta. Deixou-o, arranjou um polícia marítimo que tinha acabado de vir do continente, casaram e já têm uma menina. Ele até é porreiro, mas a malta aqui fez-lhe a vida negra e não vai renovar a comissão. Acho que vão para a Madeira no final do verão. Já sabes como isto é.

– Para mim é só novidades!

O carro sai da cidade, subindo em segunda até ao alto do monte, antes de seguir o que falta da estrada até casa. O meu amigo para o carro no miradouro e tiramos a foto da praxe. Temos uma boa coleção delas, desde a primeira visita há mais de trinta anos em que estou com um fato de treino azul e roxo tão típico da época que hoje valeria bom dinheiro numa loja vintage. E ele com o seu blusão de ganga eterno. Porra. Grande pinta! Aqui estamos. Amigos como dantes. Mais amigos do que antes.

Chegamos a casa. Beijos e abraços ao resto da família. Pousar as coisas, vestir o fato de banho e ir dar um mergulho ao porto como há trinta anos. Nos dias seguintes desfrutarei da ilha e da amizade sem grande preocupação em saber a sua história recente. Quase tudo ficou tratado numa viagem de carro de meia hora.

Como gosto de visitar ilhas.

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Fotografia de Gonçalo Calado

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