As guerras culturais e o romance sobre o século XVIII
I – O Estado da Arte
1.
A revolta contra a domesticação do género masculino foi uma das obsessões do romantismo. Ao longo do século XX, por razões evidentes, mas pouco exploradas, a esmagadora maioria dos especialistas – historiadores, sociológicos, antropólogos, filósofos – chegaram tarde ao debate sobre os modelos de género. Inebriados por barricadas, disparos de artilharia e discursos revolucionários, deixaram cair no esquecimento toda a literatura de costumes, publicada pelos grandes poetas da Corte de Luís XIV (1638-1715) e Jorge II (1683-1760). A verdade é que os salões atapetados, por onde andaram mulheres aristocratas (excelentes escritoras, eruditas e interessadas na ciência mais avançada), deram origem a alguns dos mais profundos discursos sobre a relação entre sexo, natureza e género. Mas todo esse debate foi apagado das atas, para salvar a legitimidade da guilhotina. No século seguinte, a primeira geração de moralistas pós-revolucionários, oriunda em grande parte das novas fortunas, mergulhou no ódio típico da psicologia inversa. É por demais conhecido o papel da inveja neste processo. A baixa fidalguia e os filhos dos burgueses ricos foram dos mais ativos na fúria contra o Antigo Regime. Mas está por fazer a história do ressentimento contra as grandes aristocratas, marquesas, duquesas e até as amantes dos reis. No final do século XVIII, uma perigosa linha unia a ascese política e o ódio às grandes Damas de Corte, com a sua autonomia, cultura, elegância e poder. As sátiras pornográficas das mulheres aristocratas (a maior parte das vezes injustas e caluniosas) onde se confundia um incomportável desejo mal reprimido e o ódio a um prazer inalcançável, foram talvez mais eficazes a derrubar o regime do que os discursos de Saint-Just, Marat e Robespierre. Mais tarde, quando os intelectuais da revolução produziram a sua versão da História, opuseram-se tanto à aristocracia como aos sofisticados burgueses, proprietários da indústria e magos da finança. Mas esta era uma guerra entre homens, onde as mulheres foram impedidas de encontrar o seu lugar, pois a Liberdade capaz de guiar o povo levava os seios nus, em parte símbolo de libertação, em parte sinal de uma necessidade. Como se fosse imperioso colocar a mulher ao serviço da política, pois a máquina de produzir cidadãos, destinados às guerras revolucionárias, devia continuar a produzi-los.
2.
Desde o século XVI, foi evidente o esforço para banir da educação masculina o treino com a espada. Enquanto para um autor como Castiglione (1478-1529) as proezas marciais e o adestramento nos torneios eram incontornáveis, para muitos dos humanistas ingleses, a honra não se ganhava no campo de batalha, mas no serviço público. Claro que Shakespeare tinha uma visão mais soturna da condição humana. As suas peças estão enxameadas de erupções vertiginosas de violência e ambição cruel. Por isso, o estudo da filosofia moral pretendia cultivar a virtude e tornar dominante a «polícia civil», a educação política destinada ao governo da cidade. Mas esta era uma filosofia do príncipe e dos cortesãos, não dos soldados, recrutados entre a gente bruta do campo, uma das nossas continuidades civilizacionais, in saecula saeculorum. A chacina dos homens no campo da batalha mereceu o repúdio de um intelectual corajoso como Erasmo, embora não associasse à cavalaria todos os males do mundo. Cervantes, com o privilégio de ter visto naufragar, em algumas das mais violentas guerras religiosas, a promessa da pax humanitas, viu ainda mais longe e percebeu que a morte da cavalaria podia ser também a morte de um programa (um pouco louco, é certo) muito eficaz no controlo da violência legítima e no uso da força bruta ao serviço dos mais frágeis.
A estrutura trágica da história, como os iluministas bem sabiam, tem o condão de nos acordar quando dormitamos durante o turno. Contra a violência brutal dos homens, que outra solução dispomos a não ser a violência de outros homens, mas movidos pela justiça, a coragem, a igualdade e o respeito pelos direitos das mulheres e das crianças? Este é um problema difícil. Nos nossos dias, mesmo em tempo de sofisticação tecnológica (e quando a força se tornou menos decisiva na remuneração do trabalho), veja-se a súbita emergência de uma guerra na Europa, com a brutal violência masculina contra mulheres e crianças desprotegidas. Como se fosse preciso (não era) a brutal invasão da Ucrânia pela Rússia veio relembrar o caráter irracional e monstruoso do soldado em campanha ofensiva. Do mesmo modo, também veio recordar como numa situação de guerra cruel, a esmagadora maioria dos indivíduos dispostos a sacrificar a vida, para protegerem as suas cidades e famílias, são homens. Tal como são homens os soldados dispostos a matar e a torturar com uma violência capaz de desafiar os nossos conceitos de equilíbrio psicológico.
3.
A partir dos anos 80 foram publicadas diversas refutações das teorias sociobiológicas acerca da origem dos géneros. Curiosamente, a refutação do determinismo biológico destapou uma realidade controversa. A dominação masculina não foi omnipotente, em todas as épocas e latitudes, como se demonstrou num excelente livro dirigido por duas mulheres, Stephanie Coontz e Peta Henderson, Women’s Work, Men’s Property, The Origins of Gender and Class (1986). A refutação da base natural para a dominação masculina assentou numa revisão da importância do uso da força nas sociedades arcaicas: 1) eram as mulheres a desempenhar os principais trabalhos em muitas sociedades; 2) nesses casos não eram recompensadas com vantagens materiais e prestígio; 3) não existia uma relação clara entre o nível de contribuição para a subsistência e a extensão do poder e estatuto feminino; 4) as atividades tipicamente associadas ao masculino (caçar) não eram uma consequência de capacidades físicas e de resistência com base sexual. Muitos estudos defenderam que o dimorfismo sexual não explica o domínio masculino. Mas dificilmente se consegue ultrapassar a ideia de que a divisão dos géneros terá sido potenciada por uma tendência biológica, definida pela reprodução e a seleção sexual, na articulação com o estado da tecnologia de cada época. Ao adicionar o problema social, o fenómeno torna-se muito difícil de descrever. Na verdade, muitas das refutações da base sociobiológica da origem dos géneros acabam na tautologia: o domínio masculino decorreu do acesso masculino aos sistemas de constrangimento da sociedade, não sendo consequência da sua importância funcional. Isto, como é evidente, implica colocar fora da importância funcional o mecanismo dos sistemas de constrangimento, onde a força e a violência sempre desempenharam um papel decisivo. Claro que a Biologia não é destino. Nem uma suposta base biológica na origem de uma dada forma de autoridade serve para fundamentar a sua utilidade ou aceitação moral. O humano possui instintos agressivos e muita da história mais fascinante e bela da humanidade implica o controlo desses mesmos instintos. Como sempre, a realidade é multifacetada e é preciso um enorme esforço para compreender (sempre precariamente) o seu funcionamento.
Um extraordinário especialista da mitologia grega, Walter Burkert, em Structure and History in Greek Mythology and Ritual (1982) lembrou como nos primórdios – e falamos de milhares de anos de exposição a este dilema – a humanidade foi salva de um beco sem saída, em climas extraordinariamente adversos, pelo uso de tecnologia violenta (armas de ferro e pedra) na caça de animais selvagens e agressivos. A espécie humana sobreviveu, mas permanece ameaçada pela maldição da natureza violenta. A antítese entre natureza e cultura, disse Burkert, «é mais do que um jogo lógico: pode ser fatal». De qualquer forma, a tendência para naturalizar a violência é perigosa, tal como é arriscado utilizar conceitos das sociedades medievais e renascentistas ou mesmo burguesas oitocentistas para falar de problemas contemporâneos. Temo que os fenómenos sociais sejam ainda mais difíceis de explicar nas nossas sociedades cada vez mais complexas, pois há coisas que mudam e há coisas que teimam em não mudar, como já prevenia o escritor Jorge Amado. Nem sempre é fácil definir o que se deve a tendências biológicas profundas (ditadas por limites físicos) e o que se deve a tendências culturais conscientes (mais flexíveis), embora por vezes estas características de limitação ou flexibilidade se possam inverter. Por isso os economistas roubaram aos historiadores do Direito essa entidade metafísica, as instituições. Sobretudo quando pretendem falar de tendências sociais, cuja origem e funcionamento não compreendem ou têm dificuldade em controlar.
No caso das mudanças recentes quanto ao protagonismo dos géneros masculino e feminino (e sem entrar em outras formas de género) a complexidade do problema é evidente. Pensemos em algumas tendências estatísticas. Em 1960 os homens portugueses com curso superior completo eram 38.345 e as mulheres apenas 10.720. Mas em 1991 os números de licenciados dos dois sexos eram já idênticos. No ano de 2001 as mulheres já suplantavam os homens: 390.977 mulheres licenciadas contra apenas 283.117 homens. E em 2011 as mulheres licenciadas lideravam já de forma muito clara esta estatística: 754.337 mulheres contra apenas 490.405 homens licenciados (Pordata). Da mesma forma, segundo os dados da União Europeia (2020) em 17 dos 27 países, as mulheres professoras ultrapassam os 70% do universo docente, sendo historicamente uma profissão aberta às mulheres. Por outro lado, se olharmos para os dados sobre prisões, encontramos maioritariamente homens. Nas prisões portuguesas em 1960 cerca de 7708 reclusos eram homens e apenas 710 mulheres? Na verdade, enquanto o número de reclusas se mantém até aos dias de hoje, num intervalo relativamente estável, em torno deste valor (700) existem em 2020 mais de 10 000 homens reclusos (Pordata).
Esta tendência muito mais elevada para os homens acabarem no interior do sistema prisional corresponde também à continuidade da violência masculina contra mulheres. Os casos de violência doméstica parecem aumentar a cada ano, apesar das campanhas publicitárias, teses académicas e programas do governo. Talvez esta ideia do aumento dos casos se deva apenas a uma maior consciência política (oxalá esta hipótese se concretize) devido à luta das mulheres para serem respeitadas e à maior (e justificada) sensibilidade das nossas sociedades perante o terrível problema da violência doméstica. Podemos até estar perante uma diminuição desse tipo de violência, em termos de longo prazo, se pudéssemos comparar os números recentes com os números verificados nos séculos XVIII, XIX e XX. Sem dados históricos quantitativos, restam-nos suposições. Em todo o caso, vejam-se os números assustadores, sobre o efeito provocado pela redução das diferenças salariais entre homens e mulheres, no aumento ou diminuição da violência doméstica, com resultados contraditórios entre, por exemplo, Suécia, Espanha e os EUA. Porém, a tentativa de encontrar explicações para este fenómeno pode confundir-se com a sua naturalização e reforçar o problema. Embora muitos estudos apontem nesse sentido, não sabemos que parte da associação entre género masculino e violência se deve a modelos arcaicos, a uma cultura assente na ligação entre masculinidade e o exercício da força, ou a elementos mais profundos da constituição psicológica. Por isso, mais do que especular sobre as condições sociais da violência, importa agir no plano da responsabilidade individual dos agressores e da proteção das potenciais vítimas. No caso da violência doméstica, talvez seja o momento de exigir, com urgência, melhor legislação preventiva contra homens agressores, nos casos de denúncia por violência doméstica, exigindo maior rapidez e agilidade na prisão preventiva – e outras medidas severas como tratamento psiquiátrico obrigatório – logo aos primeiros sinais de potencial agressão. Isto implica, claro, ainda mais empenho da polícia, dos tribunais e da escola.
4.
No caso mais geral da evolução dos modelos de género ao longo dos séculos, a prova da complexidade do assunto está na dificuldade em encontrar conceitos adequados para caraterizar as diferentes fases históricas ou modelos de sociedade. Não foi por acaso que a historiografia profissional abandonou a muito promissora «História das Mentalidades». Caracterizar grandes modelos sociais, mantendo a identidade de grupos humanos, classes sociais, géneros, obriga a um contorcionismo exigente e ao controlo de conhecimentos enciclopédicos ou mesmo virtualmente infinitos. Hoje falamos do Patriarcado – fruto da internacionalização académica – mas durante muito tempo, em Portugal, a responsabilidade do arcaísmo social recaiu sobre a figura do Marialva. Sobre este último problema, o escritor José Cardoso Pires publicou em 1960 um estranho livro, A Cartilha do Marialva. Numa edição de 400 exemplares, lançados em plena ditadura do Estado Novo, a obra pretendia discutir a difícil questão social do país. Arranjou-se um culpado. Era o Marialva. No fundo, o ideal masculino português tinha oscilado, secularmente, entre dois eixos, dois modelos, duas personas, nascidas no século XVIII: o Marialva e o Libertino. O Libertino seria o estrangeirado, inconformado, citadino, irónico, revoltado, conspirador. O seu arquirrival, o Marialva, seria ignorante, rural, bruto, campestre, agrário, conservador, apaixonado pela asneira letrada. Segundo Cardoso Pires, o Marialva dominara sempre e dominava ainda o panorama, em meados do século XX. Mas dominava como e através de que instrumentos?
No fundo, a ideia dominante no livro A Cartilha do Marialva, ao gosto da época (anos 60), assentava sobre a maquinaria tenebrosa dos meios de produção. Neste caso, meios de produção pré-industrial. O problema de Portugal seria a sobrevivência do modo de produção feudal, prestes a ser destroçado pelo rolo compressor da industrialização, sobre o qual se ergueria nova maquinaria, mais de acordo com a engenharia moderna. Em suma, tudo não passaria de um atavismo económico, a resolver quando os processos mecânicos afastassem definitivamente «o camponês dos mitos da terra, quando o esforço do braço sobre o arado, durante meses, anos e gerações for substituído por umas horas de trator e a folhinha de todo o ano der lugar à orientação meteorológica, às chuvas artificiais e às radiações».
No fundo, tratava-se de uma luta entre a cidade e o campo. De um lado, formas medievais de produção, a versão lusitana da nobreza feudal, agrária, resistindo à industrialização, à difusão da cultura e das Luzes. Do outro, sofisticação urbana, com o seu modo de produção avançado, a frequência dos salões, a gente da finança e o espírito da burocracia. O Marialva, como era ignorante, nada sabia disto, mas um instinto histórico ensinava quem era o seu inimigo: o libertino, homem de espírito urbano, atento à novidade, economista apaixonado pelo comércio. O libertino era o destruidor da velha ordem, de sangue judeu, logo, perseguido pelo Marialva. O Marialva, beneficiando da extorsão dos bens dos judeus, com os pés bem assentes na Casa e no Sangue, estava interessado numa política assente no irracionalismo, ou seja, na religião católica. O Marialva era o campeão dos privilégios, adepto fanático do imobilismo. Resultava daí o velho tema, acerca da educação arcaica da mulher, fechada em casa a cuidar dos filhos, enquanto o tronco da família se divertia com a amante. Mas não é difícil encontrar aristocratas setecentistas conservadores e com amantes, mas respeitadores das suas mulheres emancipadas, prodígios de cultura e ciência. Tal como não seria difícil encontrar mais tarde, em pleno modo de produção industrial, burgueses britânicos, cosmopolitas, leitores de Horácio, Shakespeare e Goethe, génios do cálculo financeiro, mas repressores dos direitos da mulher.
5.
Segundo a crítica da Seara Nova, o Marialva, durante o governo do marquês de Pombal, longe de recolher à toca, como supunha Cardoso Pires, estivera vivo e bem vivo. Bastaria pensar nos tradicionais pecados do pombalismo: a Real Mesa Censória expurgando a circulação de livros, a envergonhada reforma universitária, a ferocidade dos tumultos aristocráticos contra os professores, a repressão da burguesia e o processo dos Távoras (curiosamente, uma embrulhada de contornos libertinos, violentamente reprimida pelos poderes judiciais da Coroa). Com efeito, tudo somado, as costas do Marialva assumiam aqui proporções de cachaço taurino. Poderia mesmo falar-se de um autêntico minotauro, encerrado no seu labirinto.
Mas um outro crítico, Óscar Lopes, no Comércio do Porto, a 11 de julho de 1961, ao fugir ao problema político imediato, ia mais fundo. Identificava «o atrofiamento secular da personalidade feminina portuguesa por uma mentalidade particularmente retrógrada, mesmo em relação à cultura espanhola». Sendo um historiador da literatura, Lopes intuía um lodaçal de problemas. E desconfiava da apologia do racionalismo urbano e libertino contra o irracionalismo rural e Marialva. Mas como bom marxista do século XX, metia pelo caminho errado. E desconfiava do racionalismo capitalista, horrorizado diante da industrialização, do luxo e do comércio. Com efeito, não era fácil engolir a aristocrática elegância de libertinos satíricos como Diderot ou Voltaire. Constituindo ambos, como sabemos, um flagelo dos justiceiros políticos e troçando, também ambos, dos reformistas ingénuos. Mas Óscar Lopes tinha consciência da dificuldade do problema e dava exemplos: «as cantigas de amigo de origem rural, cujo significado tem sido mistificado por interpretações histórico-literárias puritano-burguesas ainda constituem a nossa mais livre tradição literária feminina; e a história contemporânea deve certamente mais a milhões de camponesas esclarecidas, do que a uma tradição libertina e stendhaliana». Com efeito, apesar da persona rural ser «tradicionalmente improgressiva», a mentalidade rural seria dinâmica, na visão de Óscar Lopes. Este elogio da eficácia da oralidade popular, ao menos na produção de mecanismos narrativos – onde o nosso único nobel da Literatura, José Saramago, foi beber muito do seu estilo – aparecia aqui em alternativa aos génios, como era o caso de Stendhal, educados nos salões e na literatura clássica. Mas uma coisa não exclui necessariamente a outra, como bem demonstrou Italo Calvino. O que diz muito sobre as dificuldades do romance português, um subgénero cuja característica dominante parece ser o apagamento da mulher como figura complexa ou a sua condução a uma variável binária: para o Marialva a mulher vítima condenada às circunstâncias do seu dever, para o Libertino a mulher fatal, sedutora e muitas vezes na fronteira da vilania.
Se damos esta importância a obscuros críticos (correndo o risco de perder leitores e leitoras) é por serem representativos do sucesso do Marialva como bode expiatório para todos os males do mundo, no imaginário letrado em Portugal. No fundo, o livro de Cardoso Pires correspondia – e corresponde ainda – a um sentimento bem enraizado na crítica cultural. Por ser um daqueles esquemas simples, capaz de reduzir um problema complicado a uma solução fácil de decorar. De um lado, urbanos, educados, sensíveis, viajados, modernos. Do outro, rurais, brutos, privilegiados, ignorantes, imobilistas, arcaicos. No imaginário latino, o isolamento português produzira um modelo masculino, sem que se percebesse bem a razão. Está certo, a cavalaria produzira os seus monstros. Mas não era Montaigne (1532-1592) um aristocrata empanturrado de cultura clássica, ética rural, cavalaria e filosofia estóica? Não fora o grande Lord Chesterfield (1694-1773), educado em Cambridge, jogador inveterado, mas amante irreformável de cavalos? Sendo assim, qual a especificidade do caso português?
6.
Como se saltou do pobre marquês de Marialva, estribeiro-mor de D. João V e do seu filho, estribeiro-mor de D. José – fumador de cachimbos holandeses, homem culto e letrado, com vasta biblioteca e conhecimentos sólidos de aritmética, precedido pelos heróis da guerra da Restauração e sucedido por elegantes cavaleiros de gosto sóbrio, exímios praticantes da equitação académica francesa, construtores do requintado Palácio de Seteais – enfim, como se saltou dos Marialvas para o estroina e playboy alcoolizado, descrito por Cardoso Pires, a acelerar pela Gafeira, frequentador de mulheres públicas e boîtes, é um mistério a pedir investigação. Quanto mais não seja, pela simples razão de a aristocracia estar praticamente morta e enterrada e o homem torturador e violento, muitas vezes culto e cosmopolita, outras vezes operário e pouco escolarizado, estar infelizmente vivo e bem vivo.
Na verdade, os aristocratas portugueses do século XVIII, sendo conservadores, e em alguns casos, delinquentes e marginais (sobretudo na sua juventude, vamos admitir), não eram, em geral, estúpidos ou abrutalhados. O terceiro marquês de Marialva e pai do famoso toureiro, D. Pedro Coutinho (já voltaremos a esta figura), era D. Diogo de Noronha (1688-1759). Tornou-se Marialva por casamento, pois era filho do 3º Marquês de Angeja, Pedro José de Noronha Camões de Albuquerque Moniz e Sousa (1716-1788). No palácio em que habitava, na Rua da Junqueira, em Lisboa, o marquês de Angeja construiu, ao gosto da época, um excelente Gabinete de Curiosidades, e deu origem a um luxuriante jardim botânico, acumulando coleções de história natural e uma famosa múmia egípcia, único exemplar, cujo paradeiro, segundo o site do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, se desconhece atualmente. O filho de D. Diogo, portanto, o 4º marquês de Marialva (1713-1799), D. Pedro Coutinho, foi deputado da Junta dos Três Estados, um dos órgãos responsáveis pela cobrança de impostos, demonstrando conhecimentos matemáticos avançados e destreza contabilística. Tornou-se famoso pelo desenvolvimento da Arte Equestre, foi mestre de Picaria (equitação) da rainha D. Maria I. Especialistas estrangeiros de arte equestre e do treino dos cavalos dedicaram obras a este 4º marquês de Marialva, numa internacionalização que hoje contaria como critério de progressão académica.
Contudo, em geral, as palavras vão perdendo o seu significado inicial, grande tragédia da humanidade e das ciências sociais, segundo Marc Bloch. A verdade é que o marialvismo se tornou um conceito funcional pela mão de uma figura fascinante: William Beckford. Este excêntrico inglês escreveu muito e de forma irónica, fornecendo um manancial para citações ao gosto do freguês. Por vezes destaca-se a sua crítica da aristocracia portuguesa, que seria pouco dada a leituras. O que não era verdade, se considerarmos o panorama geral. Se as leituras eram as mais populares no norte da Europa, isso é outra conversa. Mas diria que um dos mais reacionários aristocratas portugueses, o marquês de Valença, atingiria hoje uma cátedra de Humanidades, com uma mão no bolso e outra a bebericar uma taça de vinho verde, tal era o seu conhecimento da História e Literatura Clássicas, ou mesmo da extensa tradição filosófica escolástica. Na maior parte das vezes, as descrições contemporâneas dessa aristocracia – e veja-se o Memorial do Convento, de José Saramago – suprime «a urbanidade, o bom humor e o trato sempre afável» desses setecentistas, segundo Beckford. O mesmo Beckford contou como o palácio Marialva, em Belém, era um centro de reuniões da Lisboa de então, «onde se acotovelavam músicos, poetas, toureiros, lacaios, macacos, anões, crianças de ambos os sexos fantasiosamente vestidos de anjinhos com asas cor-de-rosa». E que um outro palácio, o do Loreto, no Bairro Alto, desaparecido no Terramoto de 1755, continha inúmeras pinturas de Rubens, primitivos flamengos e portugueses, tapeçarias e tapetes persas dos mais raros. De resto, foi por intermédio dos Marialvas que Beckford conheceu a orquestra da capela da Rainha, considerando-a a melhor da Europa.
Por ironia, as relações familiares confirmam o caráter «progressista» da família Marialva, no contexto da época. D. João Carlos de Bragança, 2º Duque de Lafões, e fundador da Academia das Ciências, foi cunhado do 6º marquês de Marialva (1775-1823), também chamado D. Pedro Coutinho, diplomata com conhecimentos sólidos de cartografia, melómano, parisiense convicto, ambientado em Viena, capaz de discutir com um dos maiores cientistas europeus da época, Alexander Von Humboldt, o envio de missões científicas ao Brasil. É certo que caiu do lado errado da revolução liberal, mas reabilitado, prestou os seus serviços à família real, já em período Constitucional, e morreu em Paris, em clima estrangeirado.
A verdade é que na hora de fazer triunfar o regime liberal, foi tudo corrido pelo mesmo diapasão e o Marialva deu entrada no imaginário livresco como bode expiatório. Isto enquanto as aristocracias burguesas saídas do Vintismo e mais tarde da Regeneração, se banqueteavam com as propriedades vendidas por dois tostões, no momento de reformar conventos e forais. Sabemos que o mais famoso caso de brutal violência contra mulheres durante o século XIX, o assassínio de Claudina Guimarães pelo marido José Vieira de Castro, não alterou a ideia de que o problema se devia à figura do Marialva, mesmo sendo Vieira de Castro um intelectual viajado, biógrafo e amigo de Camilo Castelo Branco, Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, parlamentar prestigiado e sócio da Academia das Ciências. De resto, a repressão violenta da mulher foi fenómeno passível de ser observado, com meridiana claridade, nos meios operários dos séculos XIX e XX, por onde nunca passou um aristocrata de cabeleira, sequer um Marialva no seu cavalo lusitano.
7.
A verdade é que bem entrado o século XIX, o processo contra o Marialva estava em fase adiantada. Eça de Queiroz, escritor genial e com uma cultura muito acima da média, não hesitou em repisar o problema. Mas fê-lo, como não podia deixar de ser, com muito mais ironia (e já agora conhecimento histórico) do que José Cardoso Pires. Em Os Maias, Eça de Queiroz coloca o varão Afonso da Maia, farol da edução progressista e defensor inequívoco da causa liberal, a defender a tourada, contra a mania ridícula das corridas de cavalos, para escândalo dos ouvintes: «O Sr. Afonso da Maia, um inglês!» não podia dizer tal coisa, era um escândalo para os ouvidos da época. Mas o avô de Carlos da Maia fazia questão de clarificar o seu raciocínio: «Pois é verdade, tenho esse fraco português, prefiro touros». Cada país devia possuir o seu «sport, e o nosso é o touro: o touro com muito sol, ar de dia santo, água fresca, e foguetes». A vantagem da tourada? «É ser uma grande escola de força, de coragem e de destreza». E aqui, como tantas vezes em Eça de Queiroz, emerge o conservador reprimido. E o leitor hesita se isto resulta de uma brilhante ironia ou de uma convicção secretamente escondida. A filosofia do touro era única coisa que os portugueses teriam para oferecer no conserto das nações, contra o cricket, o football, o running dos ingleses. «Tirem a tourada, e não ficam senão badamecos derreados da espinha, a melarem-se pelo Chiado! Pois você não acha, Craft?» E o pobre Craft, do canto do sofá, foi obrigado a concordar: «O quê, o touro? Está claro! O touro devia ser neste país como o ensino é lá fora: gratuito e obrigatório».
No entanto, também o problema da tauromaquia é bicudo. É precisamente no Sul que se expande a área do touro – sem uma sobreposição evidente com a tipologia aristocrática do Marialva – o mesmo território onde os duques do Cadaval ou os duques de Bragança possuíam (e possuem) extensas propriedades. A título de curiosidade estatística, talvez fosse de pedir a um desses especialistas na história das lutas camponesas no sul global, para explicar como foi possível que o Alentejo se tornasse no bastião do partido comunista, na região com maior número de praças de touros por metro quadrado, em toda a Península Ibérica. Se a explicação nos fugir para a desigualdade na posse da terra, fica por explicar a sobrevivência da tourada, como fenómeno que ultrapassa em muito as meras clientelas das famílias aristocratas e latifundiárias. Tal como ficam por explicar as razões da não existência da tourada em outras regiões a sul da Europa, com igual desigualdade na posse da terra.
A sobrevivência do mito do Marialva é um fenómeno de explicação mais simples, por ser o fruto de um conflito no âmbito da cultura livresca, sempre mais fácil de documentar. Na verdade, a sobrevivência do mito do Marialva prende-se com a sua utilidade junto dos intelectuais, fossem urbanos e progressistas ou rurais e conservadores. É escusado procurar a sua origem em aldeias ribatejanas ou no montado alentejano. A literatura especializada nas relações entre Fado e Tauromaquia criou o Marialva, primeiro como mito favorável a ser salvo contra a decadência do progresso. O mito foi depois repescado pela oposição às filosofias tradicionais, para servir de bode expiatório, perante problemas difíceis de enfrentar. Na verdade, a antropologia portuguesa – que não se caracteriza pelo estudo aplicado, salvo duas ou três exceções – ajudou a perpetuar o mito, ou pela defesa da tradição Marialva – um frankenstein freudiano com pouca base empírica – ou pela oposição precisamente a esse espantalho marialvista, muito fácil de derrotar, dada a sua inexistência.
Num interessante artigo de Miguel Vale de Almeida, publicado em 1997, «Marialvismo. Fado, touros e saudade como discursos da masculinidade, da hierarquia social e da identidade nacional» confirma-se mais uma vez a complexidade do problema. De forma perspicaz, o autor arruma a casa em três domínios: a) hierarquia social, b) imagens da nacionalidade e c) temas histórico-mitológicos». Há uma pista deixada por Miguel Vale de Almeida que me parece um desenvolvimento muito competente, face ao livro de José Cardoso Pires, no tratamento do último ponto (os temas histórico-mitológicos): o ideal (neste caso, o Marialva) funcionaria como modelo. No fundo, estamos a falar de uma pequena variação do velho conceito de nobreza (que aparece na literatura crítica do século XX como um supremo pecado) mas que foi durante séculos um modelo funcional. Ser nobre é ser racional, corajoso, forte, leal, honrado. Um conceito antigo, mas não necessariamente criado apenas por pessoas do sexo masculino, nem destinado apenas aos homens, como veremos ao longo deste ensaio. Na verdade, Miguel Vale de Almeida demonstra ao longo do artigo como o assunto é muito mais complexo. O cavaleiro não é necessariamente ignorante e abrutalhado. Nem o ideal masculino é definido de forma competente neste conceito (hegemónico) na sua relação com a força, a racionalidade ou a coragem. As relações entre nobreza e hegemonia social não se deveram apenas ao monopólio, exercido pela força, do sexo masculino, nem implicaram (mesmo depois do século XVIII) uma visão sobre o masculino fácil de circunscrever. Ao adicionar a tourada, a complexidade é ainda maior. Também aqui, as palavras poder, domínio, hegemonia servem muitas vezes para agregar problemas muito difíceis de explicar. Será que a competição entre rapazes tinha como recompensa essa suposta hegemonia? Mas sendo assim, os perdedores cairiam para os níveis mais baixos da hierarquia. Nesse sentido não faria sentido falar em hegemonia masculina, pois mesmo dentro do género masculino as diferenças de estatuto seriam maiores do que entre alguns homens e algumas mulheres, caso das marquesas de Marialva e suas parentes. Contudo, haverá uma relação direta entre aristocracia, masculinidade e competição? Ou o problema foi sempre muito mais profundo, com raízes biológicas, culturais e uma extensão social muito alargada? Pensemos nos perturbadores acidentes em demonstrações de força tauromáquica ou, mais de acordo com o século XXI, nas proezas motorizadas ou nos desafios digitais, continuando a vitimar jovens e adolescentes. Suspeito que a esmagadora maioria nunca ouviu falar do Marialva. E que os diferentes marqueses de Marialva ficariam horrorizado com a brutalidade de uma larga fatia de comportamentos masculinos, com livro curso seguindo debaixo do seu distinto nome.
8.
Quando Denis Diderot escreveu em 1772, o seu ensaio Sur les femmes, assumiu o seu ponto de vista: «ao escrever sobre mulheres, devemos mergulhar as nossas canetas no arco-íris e secar a tinta com o pó das asas das borboletas». Mas avisou: «o símbolo da mulher em geral é o do Apocalipse, na testa do qual está escrito: Mistério». Depois, atirou-se ao problema, sabendo que as leis civis e a natureza se combinaram de forma cruel. Nas palavras de Diderot, as mulheres foram tratadas como crianças imbecis. Culpou os homens por abusarem sistematicamente das mulheres. Não por serem os únicos responsáveis da tragédia, mas por se terem aproveitado da situação. Sabemos como a necessidade de aumentar a população sem cair na armadilha malthusiana (em que o crescimento económico, gerando prosperidade, gerava mais população, causando fome e fazendo regressar a quantidade da população ao estádio inicial) levou os filósofos do século XVIII a novas ideias sobre o progresso. Cada casamento teria de reduzir o número de filhos, de forma a permitir maior investimento nas crianças (antes de mais, em educação). Mas isto obrigava maior número de mulheres a casar. Contudo, a necessidade de um menor número de filhos por mulher seria fundamental para a sua emancipação.
Com efeito, a tese deste ensaio reside na centralidade do século XVIII como momento de alteração das ideias sobre os géneros, o que explica a desintegração do que a sociologia e a antropologia viriam a chamar o Patriarcado. Isso explica também a velocidade com que as mulheres se puderam emancipar, ao longo do século XX, a partir do momento em que a principal barreira biológica da sua exploração, digamos assim – a relação entre desejo sexual e maternidade – foi superada, sobretudo através da pílula, reforçando-se a libertação social com a invenção dos eletrodomésticos e o movimento sufragista e feminista. A forma como cada cultura viveu esse momento inicial setecentista, com a respetiva genealogia do romance, teve efeitos duradouros nos discursos das elites intelectuais de cada país, na velocidade com que adotaram os novos instrumentos da emancipação. Quanto às relações do discurso romanesco com a cultura popular representam outro problema de profundíssimo alcance. Sobretudo a partir da emergência dos meios de comunicação de massas (primeiro a imprensa, depois o cinema, a rádio e a televisão) e tendo em conta a própria força com que os mercados de informação e cultura combateram ou reforçaram determinados modelos de género. Por isso se torna absurdo associar no século XX português um tópico aristocrata à manutenção de modelos de género, assunto onde, por exemplo, a Igreja ou a Universidade foram bem mais responsáveis por arcaísmos do que o pobre marquês de Marialva.
Que as mulheres pudessem conduzir o desejo, desfrutar do seu corpo, correndo o risco de lançar a confusão sobre os herdeiros legítimos (fosse a herança um latifúndio, uma vara de porcos ou uma cabaça para beber o vinho), por meio da relação sexual livre, foi coisa que sempre preocupou o investimento masculino, na hora de tentar possuir – e note-se a duplicidade do verbo – uma mulher. Toda a brutalidade do código de honra, implacável e assassino para a mulher casada que ousasse ter relações com outros homens, radica não apenas na insegurança masculina, mas na proteção da propriedade. Pensemos que os próprios monarcas, sendo a cabeça dos sistemas antigos, fundados no Direito Divino, não se livravam de monumentais sarilhos ao recorrer ao mecanismo da bastardia (uma solução em caso de mortalidade dos herdeiros legítimos). Apesar de tudo poderem, eram muitas vezes vítimas das lutas entre descendentes. Embora muitas vezes se negue essa complexidade, este foi um jogo com muitos jogadores e jogadoras. Pensemos na importância de algumas mulheres na criação de modelos repressivos de outras mulheres, sobretudo aquelas que pudessem colocar em risco o investimento das «mulheres respeitáveis» nos seus próprios filhos. Da mesma forma, durante o século XIX, a repressão e o terror imposto às mulheres (talvez por se considerar o homem uma criatura inteiramente relapsa no tema do controlo do desejo) assentava, em grande medida, no medo da gravidez indesejada. E esse não era um receio exclusivamente masculino, nem decorria apenas da vontade de controlar o corpo feminino. Era um receio também da própria mulher, por exemplo, no caso de uma filha ceder aos avanços de uma paixão, mesmo (ou sobretudo) quando esse avanço era consentido. Não é por acaso que o século XIX (com a sua moral vitoriana) parece registar um estranho recuo na emancipação da mulher e um aumento da sua repressão, pois foi o momento traumático em que o romantismo – e a explosão sentimental do amor feminino – se uniu a lei matrimoniais particularmente desadequadas. Também não é por acaso que hoje o conservadorismo toca a reunir em torno da interrupção da gravidez. Sendo um assunto complexo, não restam dúvidas do papel decisivo da despenalização do aborto na libertação feminina, pois esse foi também um instrumento decisivo para a emancipação e a liberdade da mulher.
Na verdade, sabemos que a literatura oitocentista lidou muito mal com a liberdade do desejo feminino. Madame Bovary representa o terror do homem de letras quando percebe como a mulher (especialista implacável na conversação sobre o desejo) se prepara para tomar o poder de consagração dos escritores, sendo as mulheres atualmente, sem grande discussão, as grandes consumidoras do romance. Anna Karenina é um romance artisticamente menos espalhafatoso, mas filosoficamente mais profundo. Apesar de pressentirmos a censura do moralista em cada parágrafo, Tolstoi era demasiado artista para reprimir a beleza de quem se entrega à destruição por amor, para dar curso a um impulso da sua natureza. Porém, o preço a pagar por Anna Karenina seria nada mais nada menos (spoiler alert) do que a morte. A mensagem era clara para a mulher que pretendesse repetir a gracinha. Não estariam Tolstoi e Flaubert a escrever também (e cada vez mais) para um público feminino interessado (tal como muitos homens) na repressão de um determinado tipo de mulher?
Um sociólogo hoje muito criticado, como Gilberto Freye, chegava mesmo a atribuir formas alegadamente morfológicas – as ancas largas e o arredondado das formas – aos «interesses do sexo dominante e da sociedade organizada sobre o domínio exclusivo de uma classe, de uma raça e de um sexo». Isto talvez surpreenda os mais distraídos, mas Sobrados e mucambos: decadência do patriarchado rural no Brasil (1936) descreve de forma magistral muitos dos problemas na construção dos modelos de género ao longo do século XIX. O seu livro foi pioneiro na época e continua a ser reeditado, por algumas das mais progressistas Universidades dos EUA . Gilberto Freyre apresentou diversos exemplos de comunidades ameríndias, onde as mulheres desempenhavam atividades criadoras, cabendo aos homens a vida da casa. Nestas sociedades as distinções físicas entre mulher e homem eram menos visíveis. Freyre estava já perfeitamente convencido de certa fluidez dos géneros, ao menos nas suas funções sociais. Até o problema da competência guerreira da mulher foi abordado de forma desassombrada. A Amazona aparece num fundo antropológico, intensificado pela literatura: os exploradores do século XVI, saturados de cultura clássica, quiseram nomear a experiência limite de se verem alvejados por tribos de mulheres guerreiras disparando dardos e zarabatanas, das margens dos rios tropicais. Fossem aquelas mulheres realmente indígenas guerreiras ou o resultado da confusão entre mulheres e homens (cabelos compridos e corpos indistintos ao longe) na espantada visão dos europeus ao chegarem ao mundo Tropical, hoje parece seguro que as amazonas originais, cujas histórias circulavam no tempo do aparecimento da Ilíada nas cidades da Grécia, seriam mulheres especializadas na guerra, vindas da Eurásia. Para essas tribos nómadas, a combinação do arco com a arte de cavalgar tornava as mulheres tão letais quanto os homens. Do mesmo modo, em muitas sociedades africanas, as mulheres pareciam estatisticamente mais fortes do que os homens, sendo isto um resultado da divisão do trabalho, cabendo às mulheres a agricultura, o mais eficaz campo de treino dos seus músculos.
Muitos antropólogos viram então nas sociedades europeias apenas um modelo entre outros, onde a história do Patriarcado não podia ser dissociada do modo de produção e da divisão do trabalho. A arte e a literatura seriam o espelho dessa tendência. As palavras de Gilberto Freyre são surpreendentes:
«O culto pela mulher, que se reflete nessa etiqueta e nessa literatura, e também numa arte igualmente erótica – uma musica açucarada, uma pintura romântica, cor-de-rosa, uma escultura sem outra coragem que a do gracioso, a não ser a do nu (mas não o puro, e sim o obsceno) – esse culto pela mulher, bem apurado, é, talvez, um culto narcisista do homem patriarcal, do sexo dominante, que se serve do oprimido – dos pés, das mãos, das tranças, do pescoço, das coxas, dos seios, das ancas da mulher, como de alguma coisa de quente e de doce que lhe amacie, lhe excite e lhe aumente a voluptuosidade e o gozo. O homem patriarcal se roça pela mulher macia, frágil, fingindo adorá-la, mas na verdade para sentir-se mais sexo forte, mais sexo nobre, mais sexo dominador».
É inegável que as sugestões de beleza dos poetas e romancistas ajudaram a cristalizar modelos e a uma especialização humilhante do tipo físico (palavras de Gilberto Freyre): «alimentadas a caldinhos de pintainho, água de arroz, confeitos, banhos mornos», de forma a manter a linha e produzir «meninas românticas de olhos arregalados de quatorze e quinze anos, que os bacharéis namoravam passando de cartola e bengala pela calçada dos sobrados, os olhos para a varanda como para um altar». É assustador pensar que o reinado das dietas começou muito antes do império das influencers.
Porém, não existia (nem existe) uma relação direta entre capitalismo e a construção dos géneros. É verdade que todos os cronistas da primeira modernidade – grande fonte da antropologia sobre a chegada dos europeus aos trópicos – relacionam a ornamentação das mulheres com a propriedade dos seus maridos ricos. Também nesse domínio, os estudos de Franz Boas tinham sido pioneiros. Mas esta ideia, sobre a influência linear do modelo económico na divisão dos géneros, não era um assunto simples. As antropólogas da escola de Franz Boas estudaram profundamente o problema. Caso do clássico de Margaret Mead, Sex and Temperament in Three Primitive Societies (1935). Se os papéis sexuais não tinham uma base biológica direta, a observação de sociedades antigas mostraria maior diferenças entre tipos dentro do mesmo género do que entre homens e mulheres. Outra mulher, Mathilde Vaerting, descreveu os mecanismos da diferença no clássico Psychology of Man and Woman (1921). Vaerting avançou a temerária declaração: o lazer pretendia um estímulo do erotismo feminino. Logo, talvez a redução da mulher ao espaço doméstico respondesse a uma necessidade de potenciar o sexo e a reprodução, garantindo novos humanos atirados à batalha da sobrevivência, em épocas de elevada mortalidade infantil. Apesar da chuva de críticas posteriores ao trabalho de Vaerting, a sua intenção seria provar a determinação cultural das diferenças de género. Por outro lado, a ornamentação do homem e a sua especialização no espaço doméstico em outras culturas obrigava a repensar os mecanismos da funcionalidade. No Brasil colonial, o homem da Casa Grande chegou a envergar anéis em todos os dedos, brincos, chapéus de sol, perfume no cabelo, corte de cabelo e barba ornamentados. Do mesmo modo, conhecem-se casos de «mulheres amazonas» nos sertões do Brasil, fossem grandes proprietárias de pessoas escravizadas, senhoras de engenho ou grandes agrárias. Mulheres discutindo as propriedades da família, matronas pernambucanas empenhadas na guerra holandesa (1645-1654) ou grandes fazendeiras cercadas de capangas e coroadas de ouro. Posto isto, será a atribuição de papéis sexuais e géneros uma combinatória passível de ser descrita? Ou é simplesmente uma mecânica infernal e aleatória ao longo dos séculos?
As tentativas de relacionar as formas morfológicas com a especialização do corpo da mulher encontram muitas dificuldades, quando se recolhem com rigor grandes quantidades de material antropológico. Hoje nenhum antropólogo sério confia numa relação determinista entre a divisão dos géneros e o progresso do capitalismo (pois é na fase mais avançada do capitalismo que essa diferença parece estar em crise), embora por vezes apliquem receitas superficiais na diferenciação económica dos géneros e até dos grupos humanos. O caso mais evidente é a recuperação do conceito de raça – desenhado em termos genealógicos e teológicos pelos juristas ibéricos dos séculos XVI e XVII e aprofundado por muita da (grosseira) antropologia académica de inícios do século XIX e XX. Esta recuperação, levada a cabo sobretudo por académicos norte-americanos, para efeitos de justiça política, parece contrariar a intuição de Franz Boas, que via na proteção do indivíduo contra o Estado (e o grupo) a única forma de garantir o desenvolvimento das capacidades humanas e a eliminação do racismo. Se Franz Boas refutou para sempre – de um ponto de vista lógico e científico – a interpretação antropológica da superioridade de raça (e o próprio conceito de raça tem sido refutado do ponto de vista biológico e genético) – foi por ter demonstrado a influência dos critérios histórico-culturais na produção de tipos humanos, para o bem e o mal. Mas isto não significa negar as diferenças entre sexos (do ponto de vista da regularidade estatística) mesmo que hoje, por razões funcionais da nossa própria sociedade, estejamos dispostos, com justiça, a considerar a expressão do género no seu lado individual e até subjetivo.
9.
O problema da justificação histórica da construção dos géneros, desligada da Biologia Evolutiva, é perder-se por vezes na paixão intelectual dos investigadores, num assunto tão difícil de abordar. Nos últimos anos, emergiu uma revisão da literatura científica, refutando a complacência de muitos dos estudos sobre a determinação biológica das diferenças de género. Num excelente livro, Brain Storm: The Flaws in the Science of Sex Differences (2010), Rebecca M. Jordan-Young demonstrou como grande parte da Literatura especializada neste domínio não cumpria padrões de exigência científica. Mas o assunto é de tal forma complexo que a própria autora acaba por sucumbir a essas mesmas dificuldades. Isso é claro quando apresenta o suposto facto de no Renascimento (p.110) a mulher ser alegadamente vista como insaciável sexualmente, por oposição a uma maior racionalidade masculina. A fonte é o autor do igualmente espantoso livro, Making Sex, Body and Gender from the Greeks to Freud (1992) escrito por Thomas Laqueur. Contudo, nenhum dos dois autores é especialista no Renascimento, apesar da literatura abundante, caso contrário teriam ressalvado um aspeto elementar. No Renascimento, a visão sobre a sexualidade feminina é muito vasta e contraditória. Pensemos na convicção da medicina italiana da época, sobre o prazer feminino – expresso nos fluídos vaginais – como elemento essencial para a procriação. Por certo, a ideia da «voracidade sexual da mulher» não se prendia com o maior apetite ou a maior frequência estatística do desejo, mas com a noção da instabilidade feminina (uma crença da época, ainda hoje defendida por muitos psicólogos) aliada à sua tremenda capacidade de suscitar o desejo masculino. Daí toda a literatura teológica acerca da maior exposição do masculino à tentação sexual, sendo notável a surpresa com que os inquisidores começaram a contactar com as histórias de desejo sexual feminino (incluindo sexo com desconhecidos, relações de grupo, etc.) contadas pelas vítimas ao longo do século XVI. Não sendo de excluir a manipulação dos relatos. Uma parte desses relatos correspondia mais aos desejos reprimidos dos interrogadores do que a opiniões verdadeiras expressas pelas mulheres interrogadas. Ora, isto demonstra a confusão, muito frequente, entre os modelos ideológicos de género numa dada época e a mais do que provável existência de comportamentos estatisticamente associados ao tipo de sexo, que podem configurar traços comuns de um género. Como o comportamento sexual é por norma difícil de observar, existe uma extrema dificuldade em publicar estudos rigorosos sobre as relações entre sexo biológico, desejo sexual e modelos de género, seja na nossa época, seja sobretudo quando falamos em períodos históricos como o Renascimento. A título de exemplo, imaginemos um cientista do ano 2522 dedicado a estudar a nossa cultura. Por certo, ao confrontar-se com os milhões de horas de pornografia ficaria com uma certa ideia do desejo feminino. Mas sabemos bem como a pornografia não reflete o discurso dominante sobre o desejo das mulheres, e muito menos o comportamento sexual feminino (evitemos aqui a piada evidente).
Na verdade, o masculino foi desde longe, ao menos na cultura europeia, associado a uma maior intensidade do desejo sexual, fosse esse desejo relativo a homens ou mulheres. Essa associação parece corresponder a uma tendência biológica muito regular ao longo das várias épocas. Isto não significa reduzir o problema a mecânica genital, como é evidente. No caso do desejo heterossexual pelo corpo feminino, os estudos apontam para cálculos de investimento guiados por traços morfológicos (os seios ou as ancas e até as características dos olhos, a forma da íris), cujos critérios foram definidos pela seleção natural. O que tende a uma valorização das características reprodutoras (qualidades gerais, pois gerar e cuidar de uma criança exigia as máximas qualidades físicas e intelectuais), e pode apontar para o papel estrutural do modelo binário no mecanismo de seleção sexual ao longo do tempo. Do mesmo modo, o desejo homossexual masculino parece corresponder também a uma elevada frequência, embora dirigido a formas masculinas. Marcel Proust (1871-1922) foi dos poucos a enfrentar com a frieza do cientista e o fulgor criativo do artista os múltiplos aspetos da questão. No seu monumental Em Busca do Tempo Perdido parece apontar para uma maior frequência do desejo sexual associada ao género masculino, independentemente da orientação sexual.
Posto isto, será o desejo manipulado pela cultura e sujeito a uma dispersão muito variável consoante os indivíduos? Ou existirá um fundo biológico, associado ao sexo e à seleção natural, capaz de determinar o comportamento, o que levou as sociedades a evoluírem de forma desequilibrada, subordinando um género ao outro, para maior facilidade de reprodução? O facto de existirem motivos éticos óbvios para não se conduzirem múltiplas experiências sobre desejo sexual, impossibilita uma verdadeira ciência dos géneros. A Biologia Evolutiva fornece pistas sobre a pressão natural (por exemplo, acerca da relação entre traços físicos das mulheres e saúde reprodutiva e fertilidade, ou sobre o ciclo da fertilidade e a intensidade do desejo feminino), mas diz-nos muito pouco sobre a forma como essa natureza é mediada pelos valores políticos e morais de cada época. Nesta matéria os estudos científicos caminharão sempre num terreno muito instável, devido à enorme dificuldade em mapear as práticas sexuais com rigor, bem como à impossibilidade de medir o desejo no seu potencial imaginado. Temo bem que a ciência não nos possa ajudar muito no estudo objetivo da questão, e estejamos, por muitos séculos (e se calhar desejavelmente) por nossa conta nesta matéria.
De resto, esse tem sido o grande programa do romance, consolidado a partir do século XVIII. Por isso mesmo, talvez a Literatura continue a ser a expressão mais habilitada para esse impossível desígnio: articular ciência e subjetividade.
10.
Os filósofos das Luzes, até por serem na maioria homens, sabiam bem o que a casa gasta. Razão pela qual ressuscitaram modelos de educação dos rapazes assentes tanto na cultura da tolerância e disciplina do corpo como no trabalho filosófico. Por isso, Voltaire ou Diderot deram mais importância à «natureza» do que os próprios marxistas algum dia viriam a dar, para não falar dos pós-modernos. Por outro lado, os iluministas, munidos da sabedoria milenar dos estoicos, destacaram a necessidade de aprender a dominar as paixões. Disciplina onde Rousseau (1721-1778) se quis tornar um especialista, sacrificando a sua consciência no altar da devassa pública com As Confissões. Este tópico clássico e cristão, sobre o qual os setecentistas quiseram refundar a virtude cívica e um trabalho esforçado de filosofia, decorria da convicção de que a natureza existe, para nossa grande glória e tragédia. Com efeito, o romance, de Voltaire a Italo Calvino, procura desde o século XVIII, e muitas vezes versando sobre o século XVIII, educar o masculino para não ser instrumento dos seus instintos mais boçais e primitivos. Mas o mantra da procura da identidade «natural» a todo o custo introduz aqui um novo problema: a desculpabilização dos instintos. Tendemos a esquecer como numa sociedade Patriarcal (a cavaleiresca, por exemplo), cabia ao pai, antes de mais, ensinar os filhos a não serem homens parvos, agressivos e brutos, sobretudo na relação com as mulheres.
Lamentavelmente, muitos dos problemas morais antigos persistem: o narcisismo, a falta de educação cívica e moral; necessidade de cultivar no género masculino a arte da conversação e da elegância; o absoluto desprezo pelo insucesso; o esquecimento de que é preciso treinar a rejeição; mas sobretudo a necessidade de reprimir policialmente o homem com tendência para ser violento. No fundo, ao construir a sociedade da bondade natural de todos os indivíduos, ao diabolizar todas as instituições ditas disciplinadoras (menos a Universidade, claro, sempre a salvo da crítica social) os leitores de Foucault incorreram numa incapacidade de educar – ou seja, conduzir o crescimento da personalidade dentro de limites. Neste caso, talvez tenhamos perdido (ou ainda não tenhamos criado) a arte de reconhecer as formas ideais do género. Deixámos de estar vigilantes contra os mais graves defeitos de carácter, aquilo a que os teólogos cristãos, escandalosamente, chamaram pecados e os filósofos das Luzes chamariam defeitos da natureza.
Creio ser essa a razão para o aparecimento, em finais do século XX, desta esfíngica questão colocada por Cardoso Pires: Marialva ou Libertino? Lamento, mas nem uma coisa, nem outra. No fundo, Cardoso Pires confessava uma ansiedade. O que fazer perante a ascensão das mulheres? As mulheres estavam agora muito menos aprisionadas no casamento e menos dependentes de uma secular dependência económica. Excelentes notícias. Em suma, o género feminino voltava talvez à sua «natureza». Sem que isso tenha necessariamente de ser destino, não nos esqueçamos como em grande parte das espécies a escolha dos parceiros sexuais pertence à fêmea. Essa transformação impunha (impõe) uma nova educação moral e filosófica dos géneros, iniciada no século XVIII, mas não inteiramente concluída. Um romancista, Italo Calvino, tinha já respondido a esse problema, com um livro polémico, em 1957: O Barão Trepador.
Curiosamente, o facto de alguns dos mais famosos romancistas do século XX terem escrito sobre o século XVIII, revela (em simultâneo) uma recusa da sensibilidade burguesa oitocentista, mas também uma vontade de contornar o dilema da revolução sexual e da sua relação com o espetacular triunfo do capitalismo, quando a sedução se tornou um jogo livre, jogado por todos e muitas vezes, fazendo crescer o espantoso número de objetos consumidos nessa dança do amor. Seria o problema do desejo a chave para compreender a força do capitalismo? E sendo o capitalismo um processo histórico, estaria no passado a origem dos grandes dilemas da sociedade contemporânea? A culminar o problema, surge a grande pergunta, ainda mais esfíngica: não será o triunfo da identidade sexual individual – e o estilhaçar dos géneros – a primeira e principal conquista do capitalismo comercial moderno?
Admitamos: o «problema» é colossal. Vou por isso dividir a complexidade. Na segunda parte deste ensaio veremos como à luz dos estudos historiográficos e antropológicos o século XVIII representou um ponto de viragem na história dos géneros. Na terceira e última parte tentaremos responder à pergunta que motivou todo o ensaio: será que os grandes romancistas – como José Saramago, Ítalo Calvino ou Gabriel Garcia Márquez, por estarem menos condicionados pelo jargão e o obscurantismo das ciências sociais – trataram com maior competência esse fascinante episódio setecentista da história social do desejo, retirando melhores lições para os desafios do século XXI? E será que a filosofia moral expressa nas respetivas obras – O Barão Trepador, Memorial do Convento e Do Amor e Outros Demónios – não representa, em relação às ciências sociais, um maior rigor histórico e utilidade nas respostas para problemas tão difíceis?
__
Segunda parte deste ensaio: A ascensão da Mulher na Europa esclarecida.
Imagem de destaque: «Estudo de nu masculino», Desenho académico, grafite com toques brancos (entre 1750 e 1799), Biblioteca Nacional Digital.