Primos, Fotografia de Álvaro Domingues

Meditação sobre animais fantásticos, biologias sintéticas e poses fotográficas para futuro relacionamento

No Livro das Maravilhas, que Marco Polo escreveu ou mandou escrever por volta do ano de 1298, afirma-se que o unicórnio é:

(…) mais pequeno do que um elefante, com o pelo parecido com o do búfalo, as patas como as de um elefante e tem a cabeça como a de um javali, sempre inclinada para o chão. Tem um grande corno negro no focinho, mas não faz com ele qualquer dano nem aos homens nem às bestas, embora ataque com os joelhos e com a língua que está coberta de espinhos muito longos e afiados. Quando quer destruir uma criatura, derruba-a com os joelhos e depois fere-a com a língua. Gosta de chafurdar no lodo e na lama dos lagos e florestas. É uma besta feia e desagradável à vista; não tem absolutamente nada que ver com o modo como o descrevemos, nem é verdade que se deixe capturar por uma virgem (…).                                          

Estava o enigma resolvido. Na Europa de então, a cristandade só sabia dos unicórnios pelo que deles havia notícia e representação nos bestiários onde a zoologia real e fantástica se misturavam para pregar a moral e louvar a criação. Nesses livros de belas iluminuras, os unicórnios eram seres esbeltos, um pouco mais pequenos do que cavalos e luminosamente brancos. Furtivos e extremamente raros, não havia quem lhes pusesse a vista em cima, excepto se por algum acaso o animal desse de testa com uma donzela virgem, pois então se amansaria, enrolando-se pacificamente no seu regaço. Se algum cavaleiro por ali passasse, surpreenderia o unicórnio indefeso, matando-o e levando consigo o precioso troféu. Disso sabia Marco Polo e quando, nos confins do sudeste Asiático, lhe mostraram um rinoceronte, não hesitou: embora besta feia e nada elegante, era um quadrúpede com um chifre na testa e isso lhe bastou para aí vislumbrar um unicórnio. O inexistente tornava-se real como nas fake news.

Conta Umberto Eco uma outra história ao contrário: a de um animal que realmente existia, mas que não parecia nada evidente para a ciência culta do final do séc. XVIII que considerava o animal um embuste e por isso ficou mais de 80 anos com uma identidade flutuante embrulhada em polémicas e ignorâncias – era um ornitorrinco vindo da terra australis incógnita onde abundavam seres exóticos nunca antes sonhados. Do cimo da sua autoridade já arrumada por Lineu na árvore taxonómica do Systema NaturaeDeus criou, Lineu organizou –, a elite científica olhou para o animal (o que dele restava, depois de uma longa viagem desde a Austrália) e concluiu da sua impossibilidade existencial: o ornitorrinco é um animal esquisito que parece concebido para desafiar qualquer classificação; mede cerca de cinquenta centímetros, pesa dois quilos; o corpo é achatado e coberto por uma pelagem castanho-escura; não tem pescoço, mas exibe uma cauda de castor, um bico de pato de cor azulada por cima e rosa ou matizada por baixo; é desprovido de pavilhões auditivos; as quatro patas terminando com cinco dedos espalmados com garras e unidos por uma membrana natatória; o macho possui também esporas venenosas nos tornozelos; consegue permanecer tempo suficiente debaixo d’água (e ali alimentar-se) para ser considerado um peixe ou um anfíbio; a fêmea põe ovos, mas amamenta os próprios filhotes, apesar de não possuir mamas (além disso, os testículos do macho não se vêm porque são internos e o pénis é bifurcado), etc.

Em 2008, a divulgação do genoma do ornitorrinco revelou traços reptilianos, mamíferos, de aves, peixes e anfíbios – uma espécie de arquétipo de onde poderia ter saído toda essa variedade de bichezas.

Entretanto, anda muita gente em sobressalto por causa de uma cabra transgénica cujo leite contém a proteína que confere as características únicas de leveza, flexibilidade e resistência da seda produzida pelas aranhas para construírem suas teias – chamam-lhe bio-aço e pode adivinhar-se o potencial de negócio de tão prodigioso fio. Apenas umas décadas depois do clássico de ficção científica The Fly, a biologia sintética e a biotecnologia juntaram engenho e arte para combinar o genoma de um mamífero com o de um insecto, tornando possível um animal que Noé não conheceu nem antes nem depois do dilúvio. 

Depois de vos contar isto tudo, já não me sinto tão estranha nesta pose de verdadeira unicórnia que me tem proporcionado um longo episódio epistolar com um boi tricórnio que também andava complexado com tão estranha armação. 

Tornamo-nos possíveis porque existimos fotograficamente, o que não é coisa menor nos tempos que correm, tudo sem truques de edição de imagem ou de fantasias de algoritmos que inventam imagens a partir de descrições atolambadas como as do Marco Polo ou dos cientistas que estudam ornitorrincos. Eu sou galega e ele é barrosão.

O que é impossível é o estado a que a nossa conversa chegou. Ele diz que eu sou um desastre ecológico com este meu corno de chaminé de refinaria de combustíveis fósseis. Eu digo-lhe que o activismo ambiental terá as suas limitações estéticas, e que ventoinhas giratórias à mistura com aquela elegância de cornadura é coisa de péssimo gosto e desmedido exibicionismo. Mandei-lhe esta moldura dourada a envolver a nossa desigual condição, mas ele não se conforma.

O que vos digo é que o mundo já não é nada do que o Marco Polo conheceu. Disseram-me que os unicórnios afinal eram empresas, start-ups tecnológicas, ou lá o que é, que valem mais de mil milhões. Quando esse boi souber, nem vai acreditar nesta preciosidade em que me tornei, sem ter tido necessidade de me meter em biotecnologias estranhas, cruzamentos com teias de aranha e longas viagens pela Ásia à procura de maravilhas e rinocerontes que não gostam de virgens nem de bestiários. É tal qual.

Meditação sobre animais fantásticos, biologias sintéticas e poses fotográficas para futuro relacionamento
Primos, Fotografia de Álvaro Domingues

Relacionados

Simpatia Inacabada #10
Filosofia e História
Alda Rodrigues

Simpatia Inacabada #10

APANHAR AMORAS #2   Tudo existe para se transformar em palavras? Nós próprios podemos ser só respiração que deseja transformar-se noutra coisa. Em vez de falarmos em voz alta, murmuramos, como a água a correr, os ramos das árvores ao vento, as abelhas e outros insectos. Música do sentido? No

Ler »
 Meia-de-Leite Escura Em Chávena Escaldada
Literatura
Renata Portas

 Meia-de-Leite Escura Em Chávena Escaldada

Um ninho de mafagafos Tinha sete mafagafinhos Quem desmafagafar o ninho de mafagafos Bom desmafagafador será   Brown noise, white noise. Estudar categorias, doenças, falhas. Ler o mundo como quem lê um furúnculo. Gostar do gesto da escrita e querer apagar tudo que se escreve. Medir os dias como quem

Ler »
Continuo sem notícias do Pico Ramelau
Literatura
Afonso de Melo

Continuo sem notícias do Pico Ramelau

De cada vez que o Telejornal fala de Timor, seja lá pelo que for, fico à espera que me falem também sobre o Pico Ramelau, há que tempos que não tenho notícias do Pico Ramelau, às tantas já toda a gente se esqueceu da importância que tinha o Pico Ramelau,

Ler »