Robert Frank’s “Coffee Shop, Railway station, 1955-56

Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada

 I´m out with lanterns, looking for myself.

Emily Dickinson

 

Tic-tac. Tic -tac.

Ou É tarde!  É tarde!

Como diria o coelho de Alice, de relógio na mão, com o medo de perder a cabeça.

Falhar deadlines: a última invenção para conseguirmos responder a prazos.

Ficar tão prenhe de uma ideia, de um mundo que não há mais palavras: chegar ao fim de um ensaio com a boca muda, porque engravidamos de palavras de outros.

Fizemos um apeadeiro nesta viagem por dois meses.

O que faço quando não escrevo?

Múltiplas coisas, mas a mais regular, a que me anima os dias, que os estende até à vertigem da loucura: enceno. Encenar é provavelmente, a profissão mais bela do mundo.

E das mais árduas. Brincar de pequeno deus omnipotente, como quem inventa um planeta, uma casa, um lugar, uma palavra. Céline, consta escreveu que morria por não saber o significado de uma palavra. Meia sílaba perdida na boca de um actor é uma ameaça de enfarte (falo claramente no singular, no meu teatro e não no dos outros, essa abstracção).

 

A violência do amor.

Haverá amor que sobreviva ao desamor?

Não desagua tudo no fim num combate?

Amor, então,

também, acaba?

Não, que eu saiba.

O que eu sei

é que se transforma

numa matéria-prima

que a vida se encarrega

de transformar em raiva.

Ou em rima.

 

Paulo Leminski

 

Orquestrar, rasurar, cortar com extremo cuidado (se necessário). Decorar ou saber par coeur centenas de páginas, de vocábulos. Estudar a distância entre o espaço. Desequilibrar o tempo. E egoisticamente, deixar de ler jornais, ignorar cafés, obliterar die Welt.

Fechar-se em caves escuras a esculpir corpos, sílabas, vozes.

Ouvir, aceitar, recusar, propostas.

Ouver diria Novarina de olhos fechados.

Mudar de ideia, uma e outra vez.

Regressar ao início.

Encenar é também aceitar o risco, a vertigem, uma e outra vez: pede tanto de solidão como de conjunto. Imagina-se, primeiro a sós e depois a dois, a quatro, a seis, a múltiplas vozes.

De vez em quando, uma falta, uma falha. Mas -por vezes – é uma travessia feliz de criatividade, rasgo, construção, sonho.

Os gregos nos enterros funerários perguntavam: tinha paixão?

É preciso uma, maior do que a tão costumeira aprisionada em sentidos, para atravessar a vida. Para esquecê-la ao mesmo tempo que vivemos.

Para aguentar as injustiças, a fome, a excentricidade a provocar mortes, a miséria.

A miséria é tudo, diz Eff em Mãos Mortas, de Howard Barker, quando sucumbe ao desejo por Sopron.

Escreve-se sempre, mesmo que mentalmente, dizia-me um querido amigo.

É verdade, mas a página – oh, a página em branco, fantasma absoluto do vazio, do mau, do inenarrável – e os seus outros fantasmas: os caracteres, a ditadura gramatical, a sintaxe, a oralidade banida ou assumida, o lugar da pontuação ou a recusa de.

Tanta coisa entre o início de um romance, um conto, um poema.

Tanta coisa a favor: a tinta, a memória, a grega paixão.

Aceitamos viajar desde a primeira, já um tanto – longínqua – crónica.

O mundo sobressalta-se todos os dias em convulsões políticas, dramas caseiros, arritmias.

Sonhamos com novas ordens enquanto um anúncio promete um rendimento absurdo no Youtube. Money makes the world go round?

Será uma droga necessária, a que nos acomodamos?

A contra-resposta, o contra-ataque está na grega paixão ou na vontade revolucionária.

Por isso, nesta viagem, caro leitor, saí, visitei territórios novos, perdi-te de vista, e volto agora aqui a esta carruagem-folha.

Tomamos um café?

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Texto dedicado à Público Reservado, aos que a fundaram e aos que a inflamam.

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