Meia-De-Leite Escura Em Chávena Escaldada

The most beautiful location in the world doesn’t mean shit next to Steve McQueen’s face.

William Friedkin

 

Caro leitor anónimo

Descia as ruas do Porto na zona oriental da cidade e deparei-me com duas máscaras pousadas (uma veneziana, uma dos Anonymous), esquecidas, dentro de um carro.

Duas máscaras: que estórias escondem estes adereços? 

Que viram?

Uma noite diferente, fantasias?

Um assalto? 

Uma surpresa a um amigo desaparecido?

 

Trazer o mesmo rosto todos os dias face a um mundo em permanente convulsão pode ser cansativo. E perigoso. O mesmo rosto que hoje te beija, amanhã finge não te reconhecer.

O vizinho que não te vê há dez anos ainda te reconhece (ou julga reconhecer, quando apenas guarda imagens do que foste e de como trazias o semblante).

 

Recordo-me durante a pandemia e o confinamento pensar várias vezes que gostaria de ir ao supermercado em cosplay.

Preferencialmente com uma máscara de personagem de filme de terror, género que me entusiasma como espectadora. E um dia, ao atravessar o Heroísmo, vi um ciclista com a máscara completa do Michael Myers. Nunca mais esqueci aquela liberdade.

 

A máscara, a fantasia, o disfarce: recursos para a alteridade.

Para a evasão e para o lúdico.

Como Alice, uma visita a um mundo diferente: quantos eus são “reais”? Quanta irrealidade carregamos no semblante?

Em crianças bastava-nos  a enunciação da regra: eu sou (médico, empregado de café, etc.) ou tu és. Com ou sem adereços a vontade de deslocação, de ser outra coisa, de pensar-se noutro e em outros.

Hoje, assistimos ao movimento inverso: por outro lado a pulsão da construção de uma identidade definida, enclausurada em regras gramaticais e que vive em nichos.

 

A máscara e o escuro.

 

Este ano, caro leitor, estou a cumprir  uma promessa de ano novo, daquelas das doze passas que tendem a morrer como as uvas que mastigamos a cada badalada: troquei os espectáculos de teatro por concertos. Uma decisão que se prende com muitas variáveis

(emocionais e analíticas), mas sobretudo com a vontade de habitar um mundo construído de sons, palavras, gritos, urros. Num desses concertos, o de Bob Dylan, a luz era difusa e quase invisível. Esperei décadas para poder ouvir/ver o Bob Dylan e felizmente vi fragmentos, relances, fantasmagorias.

Se Bob Dylan tivesse uma máscara de Michael Myers e a mesma voz, seria ainda o mesmo?

 

Carpenter ainda é vivo, mas Friedkin morreu.

 

O escuro e o disfarce. As máscaras pousadas a amarelecer na mala do carro. O despudor da manhã. Numa carta de Fernando Sabino a Clarice Lispector, pode ler-se : 

 

Tenho feito des­cobertas importantes, por exemplo: o pecado é simplesmente tudo o que Cristo não fez. Tenho conhecido sujeitos famosos, por exemplo: Duke Ellington. Tenho tido muito pouco dinheiro. Tenho tido muitas oportunidades de ficar calado. Tenho tido muita decepção com os Correios. Tenho tido can­saço, saudade e calma. Tenho bebido muito, muito, muito. Tenho lido os suplementos dominicais. Tenho tido vontade de voltar. Tenho escrito muitas cartas para você. Tenho dor­mido muito pouco. Tenho xingado muito o Getúlio. Tenho tido muito medo de morrer. Tenho faltado muita missa aos domingos. Tenho tido muita pena de Helena ter se casado comigo. Tenho tido dor de dente. Tenho certeza que não vol­to mais. Tenho contado muito nos dedos. Tenho franzido muito o sobrolho. Tenho falado muito com os meus botões. Tenho tido muita vontade de brincar.

 (o cronista interrompe a crónica, são quase três da tarde; pensa em todas as refeições que saltou, em pequenas e ridículas  minudências e a crónica parece fugir dos dedos às duas e cinquenta e sete da tarde de Setembro, um Setembro demasiado quente para as canções de Nick Cave que acompanham a escrita. Decide cozinhar  uma refeição rápida, quase ordinária.) 

Olhamos pela janela: o sismo em Marrocos, a tragédia em grande escala vs.  o lixo espalhado nos arredores do Porto. O macro e o micro. Em comum as casas, as refeições ordinárias, a espera. E as máscaras de carne vs. as máscaras esquecidas no carro.A guerra prossegue e entrou na normalidade das notícias cotidianas.  De vez em quando, uma surpresa: um jacto abatido que transporta Prigozhin. 

As máscaras que escolhemos: faces do mal, ideias do bem .As máscaras à espera de novos significados, novas possibilidades.

(o cronista pensa que nem sempre a melhor altura para se alimentar é a prevista; equaciona os intervalos de três, oito, dez horas ou vinte minutos. Come. Pousa o garfo. Pensa que tem de comprar facas de jeito. E que não pode fazer isto numa loja barata a apoiar a exploração infantil. Mas o faqueiro é ainda caro, pensa. E aquelas facas lindas para queijo? Talvez faça um enxoval para um casamento solitário, pensa).

 

Associação automática: a carne de Prigozhin cremada como hambúrguer a expirar o prazo do cronista. A que cheira a morte? 

A morte – acidental, imprevista, aguardada – tem cheiro? 

Talvez cheire a orquídeas e cogumelos esturrados, pensa o cronista que salva um resto de comida.

 

Amanhã compramos uma máscara.

 

(texto escrito em desacordo ortográfico).

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