Friendship, acrílico sobre tela, 100x60 cm (da série #OnPina), 2018, de Lia Ferreira

 Meia-de-Leite Escura Em Chávena Escaldada

Um ninho de mafagafos

Tinha sete mafagafinhos

Quem desmafagafar o ninho de mafagafos

Bom desmafagafador será

 

Brown noise, white noise.

Estudar categorias, doenças, falhas.

Ler o mundo como quem lê um furúnculo.

Gostar do gesto da escrita e querer apagar tudo que se escreve.

Medir os dias como quem mede linhas como quem costura botões.

Suspeitar da pontuação.

Escrever à mão, escrever no pc. 

Perder cadernos ilegíveis, perder contos sobre a amante de Van Gogh a cozer batatas e não ser capaz de o reescrever.

Chorar a memória dos textos não conseguidos, abortados, falhos.

Querer interrogar tudo e saber que é um cliché da escrita.

Resumo: incapacidade.

 

Redacções  na escola, dissertações, retroversões de latim.

O suficiente para ler azulejos de igreja.

Cronistas: discretos, exuberantes, obsessivos, com deadlines apertadas.

Sem o tempo do romance ou da prosa.

Mergulhadores, os cronistas. 

Escafandristas.

Encher a caixa de ar, encher o ar, descer, escrever, esgotar a botija.

Confiar na paciência do revisor.

 

Pensar: vou ler um dicionário em breve.

Listas e a vertigem.

Listas e bibliotecas.

Listas e cartas.

Ter muitas saudades do séc. XX ,  mesmo com todos os excessos (saudade da desmesura?). 

 

A pergunta a intrometer-se no texto, na crónica, ainda tão incipiente, caro leitor.

 

Uma nuvem atravessa o mundo indiferente ao sangue que nele escorre de cabeças decapitadas ou bombas em hospitais, indiferente ao primeiro beijo entre futuros amantes.

O mundo sofre de convulsões perpétuas. Algumas visíveis, impossíveis de ignorar, outras hediondas, em segredo. 

 

A mania da informação.

Aos dezasseis, comprar dez jornais por semana.

Ler oito livros por semana, aos vinte e cinco.

Ler bastante menos, depois dos trinta e cinco, com empregos duplos.

Ler melhor. 

Escolher melhor.

 

A Almanaque.

Há um ano, quase exacto, nascia o primeiro número da Almanaque e com ela este convite inesperado para escrever na mesma.

Um daqueles desejos de adolescência guardados em segredo: aceitei.

E quantas vezes pensei: que estou a fazer, que vou dizer. 

Quantas vezes adiei e pensei: não consegues. 

Quantas vezes, pensei  também: gosto disto

No momento em que escrevo, não sabemos se o fim se aproxima (o metal, sempre ele, essa ficção maior do mundo que nos compra sossego e casas a intrometer-se).

 

Escrever na mesma mesa, na mesma posição.

Escrever no quarto.

Escrever no café, como Duras (não com o barulho dos dias de hoje, impossível).

Ler os jornais de trás para a frente, como os velhos, mas sem a saliva nos dedos.

 

Ter saudades do DN Jovem. Da K. Da  Obscena.

Gostaria de ler – um dia – a Almanaque em papel, com cheiro.

Assinaturas, mecenas, stories.

A popularidade, toujours.

Citizen Kane na cabeça.

Saudades do jornalismo mais engagé.

Saudades de francófonos.

A nostalgia da segunda idade.

 

(…)

 

Coyness is nice and coyness can stop you

From saying all the things in life you’d like to

So if there’s something you’d like to try

If there’s something you’d like to try

Ask me, I won’t say no, how could I?



Spending warm summer days indoors

Writing frightening verse to a buck-toothed girl in Luxembourg

Ask me, ask me, ask me

Ask me, ask me, ask me

Because if it’s not love

Then it’s the bomb, the bomb

The bomb, the bomb, the bomb, the bomb, the bomb

That will bring us together

Nature is a language, can’t you read?

Nature is a language, can’t you read?

 

Ler os outros colegas. 

Admirar alguns.

Querer escrever como outros.

Vozes dissonantes e plurais.

 

Um ninho de magafamos

Um saco de gatos

Tudo ao molhe e fé em Deus

 

Estudar provérbios e canções.

Copiar como os copistas.

Ler e esquecer. 

Escrever e apagar.

Ler e esquecer – repetir todos os dias, como as orações.

 

Num mundo onde as redes sociais perpetuaram as vozes ad infinitum, qual a importância de uma crónica?

Nenhuma, caro leitor.

E toda.

O mundo inteiro cabe numa folha num gomo de laranja. 

E numa bomba.

 

Talvez haja um apeadeiro nesta viagem, caro leitor. Talvez não.

Seja como for: continuemos de olhos abertos, a ver pela janela, tudo que o mundo nos traz. 

 

(carta de eventual despedida para quem nos acompanhou discretamente neste ano)


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Imagem: Friendship, acrílico sobre tela, 100×60 cm (série #OnPina), 2018, Lia Ferreira

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