Um ninho de mafagafos
Tinha sete mafagafinhos
Quem desmafagafar o ninho de mafagafos
Bom desmafagafador será
Brown noise, white noise.
Estudar categorias, doenças, falhas.
Ler o mundo como quem lê um furúnculo.
Gostar do gesto da escrita e querer apagar tudo que se escreve.
Medir os dias como quem mede linhas como quem costura botões.
Suspeitar da pontuação.
Escrever à mão, escrever no pc.
Perder cadernos ilegíveis, perder contos sobre a amante de Van Gogh a cozer batatas e não ser capaz de o reescrever.
Chorar a memória dos textos não conseguidos, abortados, falhos.
Querer interrogar tudo e saber que é um cliché da escrita.
Resumo: incapacidade.
Redacções na escola, dissertações, retroversões de latim.
O suficiente para ler azulejos de igreja.
Cronistas: discretos, exuberantes, obsessivos, com deadlines apertadas.
Sem o tempo do romance ou da prosa.
Mergulhadores, os cronistas.
Escafandristas.
Encher a caixa de ar, encher o ar, descer, escrever, esgotar a botija.
Confiar na paciência do revisor.
Pensar: vou ler um dicionário em breve.
Listas e a vertigem.
Listas e bibliotecas.
Listas e cartas.
Ter muitas saudades do séc. XX , mesmo com todos os excessos (saudade da desmesura?).
A pergunta a intrometer-se no texto, na crónica, ainda tão incipiente, caro leitor.
Uma nuvem atravessa o mundo indiferente ao sangue que nele escorre de cabeças decapitadas ou bombas em hospitais, indiferente ao primeiro beijo entre futuros amantes.
O mundo sofre de convulsões perpétuas. Algumas visíveis, impossíveis de ignorar, outras hediondas, em segredo.
A mania da informação.
Aos dezasseis, comprar dez jornais por semana.
Ler oito livros por semana, aos vinte e cinco.
Ler bastante menos, depois dos trinta e cinco, com empregos duplos.
Ler melhor.
Escolher melhor.
A Almanaque.
Há um ano, quase exacto, nascia o primeiro número da Almanaque e com ela este convite inesperado para escrever na mesma.
Um daqueles desejos de adolescência guardados em segredo: aceitei.
E quantas vezes pensei: que estou a fazer, que vou dizer.
Quantas vezes adiei e pensei: não consegues.
Quantas vezes, pensei também: gosto disto.
No momento em que escrevo, não sabemos se o fim se aproxima (o metal, sempre ele, essa ficção maior do mundo que nos compra sossego e casas a intrometer-se).
Escrever na mesma mesa, na mesma posição.
Escrever no quarto.
Escrever no café, como Duras (não com o barulho dos dias de hoje, impossível).
Ler os jornais de trás para a frente, como os velhos, mas sem a saliva nos dedos.
Ter saudades do DN Jovem. Da K. Da Obscena.
Gostaria de ler – um dia – a Almanaque em papel, com cheiro.
Assinaturas, mecenas, stories.
A popularidade, toujours.
Citizen Kane na cabeça.
Saudades do jornalismo mais engagé.
Saudades de francófonos.
A nostalgia da segunda idade.
(…)
Coyness is nice and coyness can stop you
From saying all the things in life you’d like to
So if there’s something you’d like to try
If there’s something you’d like to try
Ask me, I won’t say no, how could I?
Spending warm summer days indoors
Writing frightening verse to a buck-toothed girl in Luxembourg
Ask me, ask me, ask me
Ask me, ask me, ask me
Because if it’s not love
Then it’s the bomb, the bomb
The bomb, the bomb, the bomb, the bomb, the bomb
That will bring us together
Nature is a language, can’t you read?
Nature is a language, can’t you read?
Ler os outros colegas.
Admirar alguns.
Querer escrever como outros.
Vozes dissonantes e plurais.
Um ninho de magafamos
Um saco de gatos
Tudo ao molhe e fé em Deus
Estudar provérbios e canções.
Copiar como os copistas.
Ler e esquecer.
Escrever e apagar.
Ler e esquecer – repetir todos os dias, como as orações.
Num mundo onde as redes sociais perpetuaram as vozes ad infinitum, qual a importância de uma crónica?
Nenhuma, caro leitor.
E toda.
O mundo inteiro cabe numa folha num gomo de laranja.
E numa bomba.
Talvez haja um apeadeiro nesta viagem, caro leitor. Talvez não.
Seja como for: continuemos de olhos abertos, a ver pela janela, tudo que o mundo nos traz.
(carta de eventual despedida para quem nos acompanhou discretamente neste ano)
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Imagem: Friendship, acrílico sobre tela, 100×60 cm (série #OnPina), 2018, Lia Ferreira