Tudo me é difícil dizer. Não sou um Deus.
Homero
Convidam-te para escrever.
Uma crónica.
Sobre o que quiseres.
O terrível exercício da liberdade : poderia escrever sobre o que faço, sobre o sic transit gloria mundi, ou ingloriamente tentar ser uma espécie de Nuno Rogeiro, comentador que sobrevive a todas as hecatombes, comentando-as como quem despedaça um pedaço de carne fresca.
Escrever.
Escrever – que não é a coisa cimeira em minha vida, mas foi a primeira das vontades, é a liberdade derradeira. Não há nada que a página em branco não permita: território amoral por excelência acolhe os libertinos e os puritanos na mesma cama.
Tomarei esta primeira crónica como uma carta que envio aos leitores, que lerão isto entre um café e uma pausa, ou retidos em casa, como agora, esta que vos escreve.
O que são crónicas ?
Pedaços de vida, de opinião, mais ou menos (f)útil concentrados numa espécie de sopro. Bocados de conversas inacabadas.
Num mundo que tenta continuamente reinventar-se,quase sempre com a imagem como totem absoluto ao fundo, em vídeos de vinte e cinco segundos, o que resta dizer?
Tudo.
Escrever é uma forma de estar no mundo – e fora deste.
Fora das traduções simultâneas, do speak english, da música manhosa do Uber que já não tem rebuçados, do blablabla da última série, do último videoclip, dos vlogers, dessa torrente de imagens.
Um dia acabaremos afogados, submersos de tanta imagem, como prenuncia Blade Runner. Aparência será essência e tudo será permitido.
Os livros de filosofia repousarão esquecidos em caves cobertos de pó, até que um dia um droid curioso os redescubra.
Quando era uma miúda, indecisa entre o teatro e o jornalismo, devorava as crónicas do MEC[1] e de Vasco Pulido Valente (e o meu comunismo teve sempre que se render às crónicas de conservadores provocadores, como estes dois).
Esta página— escusai, leitor— até agora parece ser noves fora nada, mas os primeiros encontros são assustadores: trocamos as calças do dia-a-dia pelo nosso melhor vestido e o nervosismo transparece apesar do sorriso. Caro leitor, esta página é sobre isto mesmo.
Sobre escrever e a necessidade de o fazer, sobre a inutilidade dos dias, sobre amores perdidos que nem sequer mereciam esse epíteto, sobre a arte perdida da conversação.
Contaram-me uma boa estória há pouco tempo: Mark E. Smith, vocalista dos The Fall, despedia constantemente os membros da banda e costumava dizer: Mesmo que fosse eu e a minha avó em palco seríamos os The Fall.
Under the weight of a broken nose
It’s not that simple, but he won’t seem to notice
There must be more to this
So leave those sink estates and
Let’s book a holiday
We’re painting all the counties in blue
‘Cause we’re already boring
And we’re already hoarding
What else have we got left to accrue?
And the ramblers will say
“It’s got a marvelous view”
But they don’t know how many lives it took, no
They’ll never know what you knew
And we’re so calm but we’re (fucking scared, fucking scared)
And we’re so calm but we’re (fucking scared, fucking scared)
And we’re so calm but we’re (fucking scared, fucking scared)
And we’re so calm but we’re fucking scared of people like you
Under the weight of some Sertraline
A couple Prozacs, and now I’m pumping dopamine
There must be more to this
We’ve got a country house now
Old dog has been put down now
It’s nice to be your around trees
Custom license plate
On our Audi R8
How many grocers does one county need?
(excerto de LoveJoy, de The Fall)
O que é isto de transitarmos entre tantas vidas, tão poucas ficarem?
Caro leitor, não ligues à mancha que trago na camisa, que é como quem diz, esta falta de verve, esta timidez ainda, precisaria de mais vinho ou de saber mais de ti,na próxima vez será melhor; sim, sim é o que todos dizem, mas e se, em vez de andarmos sempre a pularmos de vagão, fizermos a viagem toda juntos?
Abri a janela do comboio, ficamos em silêncio após este convite, caro leitor, e ouvimos apenas o vento ensurdecedor bater-nos nas caras enquanto pensamos no beep beep dos passageiros ao lado, na imediatez do contacto, no barulho que o vazio faz.
Aceitamos tacitamente, em silêncio, regressar.
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[1] Acrónimo do nome do escritor Miguel Esteves Cardoso.