É uma voz, ao princípio – a voz de Melanie Pereira, na primeira pessoa. Agarra-nos com a variação de uma lenda, depois actualizada e desfiada em cinco histórias de jovens mulheres que reflectem sobre a sua circunstância. Está marcada por terem nascido num país que, se aceita registá-las como suas, as marginaliza. Nele são sempre Melusinas, tomadas como corpos estranhos. As suas experiências são de não pertença, com a ansiedade resultante de estar sempre sob escrutínio sem nunca satisfazer.
As Melusinas à Margem do Rio abre desvelando uma história de mulher lenda. Melusina é um espírito das águas doces em rios e fontes sagradas. Da cintura para baixo, é serpente ou tem rabo de peixe, como as sereias. Na Europa, há muitas variações da sua história (um bisavô meu – migrante pobre, vindo de Espanha – contava uma, à volta do Ardila, fio de rio, afluente do Guadiana, em torno do qual cresceram povoações na raia alentejana).
Na diversidade das suas histórias, por amor, as Melusinas tiveram filhos – estão inevitavelmente ligadas à fertilidade – e puderam viver parte do tempo entre humanos, mas não sempre. Devido à sua natureza dúplice, vivem num necessário movimento de retorno à sua forma original, na água. Identidade fragmentada, pois. Tal não muda nunca a sua entrega à vida entre humanos, mas põe sempre à prova a confiança destes.
Entre as variações, há uma lenda ligada ao papel fundador e protector de Melusina na história do Luxemburgo. Melanie Pereira toma-a como inspiradora, recitando-a, num movimento em busca de si, de onde emerge inteira. Ao fazer dela cinema, reactiva simbolicamente a lenda em toda a potência desta, e, num gesto de apropriação, integra referências pessoais, humanizadoras, questionadoras. Fá-la, de novo, acontecer para actualizar e enquadrar as suas vivências e as de quatro amigas de diversas origens, Melusinas à margem de um rio que é o Luxemburgo, onde – à excepção de uma delas – todas nasceram, mas onde (não) são integradas. Nem luxemburguesas nem emigrantes, perdidas na (in)compreensão numa Babel de línguas – a de origem dos pais, a do jardim de infância, as impostas pela escola e que têm de dominar perfeitamente. Francês, inglês, luxemburguês, alemão… Postas à margem, também pelo aspecto (a cor da pele, a textura do cabelo…). Impelidas pela família para a assimilação, rejeitadas pelos luxemburgueses que se tomam como cidadãos-bitola da sociedade do bem-estar – um bem-estar que não é transversal, a que não acedem todos.
O movimento de busca de Melanie Pereira – através de imagens em movimento – é rememorativo e simbólico. Com ele, cria uma constelação de lembranças, de imagens de família em que surgem estas Melusinas contemporâneas, de conversas que põem as mulheres no centro e questionam uma sociedade de nações em que o sonho de bem-estar económico quebra pessoas. Nele, Melanie Pereira afirma-se, também, como realizadora, capaz de calibrar a sua linguagem íntima (verbal, física, afectiva) e a das Melusinas com a linguagem do cinema, fazendo do documentário algo muito pessoal e, no entanto, essencial e intrinsecamente político. Fá-lo também em diálogo com outras sensibilidades – como não encontrar a comunhão com o silêncio poético e o espírito perscrutador de Manuela Serra?
As Melusinas à Margem do Rio é um belíssimo atlas rememorativo, que aproxima imagens e palavras na primeira pessoa, que se faz constelação de colagens e fragmentos, indo mais longe, porém. É estilhaçante, questionador, e, ainda assim, afirma a possibilidade de renascimento – perturbante sequência em que a realizadora rasga as suas fotos de menina. Melanie Pereira usa a linguagem do cinema, também de modo poético, como cura, mas vai longe, muito mais longe, e usa o documentário deixando mais perguntas do que respostas. São sobre identidade, sim, a articulação entre o individual e o particular, o que é uma sociedade em que o sonho de uns cria o pesadelo distópico dos supostos “vencidos”. Deixa-nos com esta interrogação, também, sobre um Portugal ainda com “medo de existir”, que tantas vezes maltrata os melhores de nós, aqueles que foram empurrados pela falta de esperança e que, mal ou bem, geraram mulheres-lenda.