Apatia, Estudo 13, de Lia Ferreira

Nada, nicles, pevide.

Apathy of apathies, all is apathy



Nada melhor do que não fazer nada”, murmurava a Rita Lee, defendendo fazer amor por telepatia. Mas se há coisa que ela não era era apática.


Na chamada era da mediania, em que o normcore é a estética, a distinção é subversiva

 

Dizia Vivienne Westwood, citada nesse primeiro artigo, que “toda a gente parece igual e as únicas pessoas que chamam a atenção são da minha idade. Eu não reparo em ninguém a não ser que seja fantástica, o que de vez em quando acontece e essas pessoas têm geralmente à volta de 70 anos. Andamos todos a enfardar tralha, todos fomos treinados para ser consumidores e consumimos demasiado.”

Se a criadora se referia apenas aos trapos, não sei, mas podemos extrapolar estas afirmações para um contexto mais lato.

Seja o normcore o rejeitar da diferenciação ou a indiferença uma afirmação contra o F.O.M.O. induzido pelas redes sociais, não é certo que o primeiro resulte enquanto posicionamento comunitarista ou que a segunda traga paz.

 

Neste mundo de todos os excessos, de informação e contra-informação, de conflito, imagens, som e velocidade, a que se deve esta passividade? É uma reacção? Ao cansaço, à saturação? Ao burnout, a não acreditar que se possa mudar alguma coisa? É uma anestesia do desespero?

O excesso de tudo é tal que aquilo que se pretende afirmar como diferente é apenas mais uma corrente do normal. Todas as iniciativas ficam mortas à partida; nada é inovador. Se o excesso de conhecimento paralisa, a ignorância é atrevida, já se sabe, e pode mesmo ser o bálsamo para a existência. 


Numa escola de artes bem implantada que conheço, a preocupação com o alinhamento com uma contemporaneidade que se pretende definir (e não deixar que se revele espontânea e retrospectivamente no futuro), leva à paralisação de uns (aqueles que mais conhecem do passado e que temem imitá-lo no presente) e à amalgamação de outros, que se imitam e repetem e reconhecem, numa disputa clânica pelo aval da intelligentsia. Mas se essa parecença reforça o grupo e a pertença, e funciona em termos de subsistência, não abona muito a favor da diferenciação que parecia ser o objectivo último e que será atingida por algo ou alguém que hoje ainda não reconhecemos.

Se as próprias marcas alinham no chamado blanding (bland vs brand), ou seja, na indiferenciação, para não correr riscos e ir com a maré algorítmica, passar entre os pingos da chuva num mundo de calamidade e conflito, também o mindfulness, a título individual, resulta como estratégia de sobrevivência: salvar-se a si próprio no meio do caos, em que nada resta senão a passividade. Mas, ao contrário das situações de despressurização nos aviões, em que nos aconselham a colocar a nossa própria máscara antes de a colocar nas crianças que acompanhamos, talvez precisemos de salvar o todo para resgatar o indivíduo, ou acabamos todos engolidos por dois ou três tubarões que não hesitam em recolher-se aos seus bunkers pré-construídos, em caso de implosão.

Assim como há sempre os oprimidos que tomam o lado do opressor pensando salvar-se, ou os gananciosos que decidem explorar o já apocalítico mundo capitalista, o mindfulness, para além de um alívio imediato, nada fará pela comunidade e, por conseguinte, pelo indivíduo, que apenas se entreterá em manobras respiratórias para melhor resistir ao colapso e à barbárie, sem levantar os braços para se defender.



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Vídeo de Lia Ferreira com estudos para a capa da Almanaque Nº9, da mesma autora, sob o signo da apatia.

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