Sete infernos conforme descrito na cosmologia jainista. Foto tirada da pintura em tecido de 1613 dC do templo Jain em Gujarat.

Não consigo dormir com o barulho dos indianos a reencarnar

Na Índia há milhões e milhões de pessoas. Certas enciclopédias dizem que são 900 milhões de pessoas. Alguns atlas referem mil e trezentos milhões. Vê-se bem que nem as enciclopédias nem os atlas foram alguma vez à Índia.

Na Índia há milhões e milhões e milhões e milhões e milhões de milhões de pessoas. Sei muito bem do que estou a falar: já fui muitas e muitas vezes à Índia. Talvez não um milhão de vezes, mas quase.

Uma vez fui à Índia e tentei contar os indianos. Sentei-me numa esquina que ficava entre os estados de Orissa e Uttar Pradesh, à beira da estrada que vem de Kanpur, passa por Varanasi, vira à direita depois de Bodhgaya e vai descendo até Bhubaneswar, e fui fazendo, num caderno, um risco por cada indiano que passava. Fiz milhões e milhões e milhões e milhões de milhões de riscos. Depois houve um indiano que regressou de Bhubaneswar e contei-o duas vezes. Agora, além de me faltar contar todos os riscos que fiz no caderno, tenho de apagar um dos riscos. O único problema é que, como não assinalei a hora e o minuto e o segundo de passagem de cada indiano, não sei qual dos riscos devo apagar. Vou ter de voltar à Índia e começar tudo de novo.

Isto, à primeira vista, pode parecer-vos complicado. E é. A Índia é um país complicado.

Se fosse obrigado a calcular por alto quantos indianos há na Índia, diria que pelo menos uns 230.402.457 – 1. É relativamente simples chegar a esta conclusão se conhecermos em profundidade o trabalho dos célebres matemáticos Curtis Cooper e Steven Boone. Eu não conheço sequer superficialmente o trabalho dos célebres matemáticos Curtis Cooper e Steven Boone, mas parece que tais senhores atingiram o maior número primo que um ser humano e uma máquina construída por um ser humano podem alguma vez contar ao usarem o tempo ocioso do processador de computadores pessoais procurando por números primos específicos, do tipo 2p – 1, chamados primos de Mersenne. Desta forma chegaram à douta certeza de que o primo de Mersenne de número 43 tem 9.152.052 dígitos e se afirma como o referido 230.402.457 – 1.

Por mim, está decidido: é este o número de indianos que existem na Índia e não se fala mais no assunto.

Mais difícil é calcular o número de indianos que estão espalhados pelo resto do mundo. Não dá muito jeito a gente sentar-se numa esquina qualquer da ilha de Madagáscar, da península do Iucatão, ou mesmo nas faldas das montanhas do Pamir à espera de que os indianos vão passando por lá para os contarmos. Não contem comigo para isso.

Os indianos, na sua maioria, não nascem – reencarnam. Outros, pura e simplesmente, surgem.

Podem nunca ter dado por isso, mas no Bairro Alto, em Lisboa, há milhões e milhões e milhões de indianos. Nunca os contei, mas também não preciso – conheço-os todos.

Por exemplo, por cima da minha velha casa, na Travessa da Queimada nº 11, 1º dtº, vivem algumas centenas largas de indianos. O prédio é muito fácil de reconhecer: é o único da Travessa da Queimada que tem bandeiras da Índia penduradas nas varandas.

No fundo, o Bairro Alto é um bairro da Índia.

Hoje em dia, a capital da Índia pode ser Nova Delhi, mas no Bairro Alto da Índia continua a ser Calcutá, como no tempo do Raj. Aliás, Calcutás. Calcutá da Rua do Norte, que é, neste caso, Calcutá de Leste, e Calcutá da Rua da Atalaia, Calcutá do Oeste.

Calcutá, capital do Bairro da Índia, portanto.

E a família Tambaclal governa os Calcutás.

O Suresh Tambaclal, por exemplo, fala com o Camões. Desce a Rua do Norte até ao Loreto e fica por ali, largos minutos, caminhando de um lado para o outro, sonhando com  Londres e Lourenço Marques, num diálogo animado com a estátua.

Parece que Camões era um tipo complicado e o velho Victor Bastos, que o transformou em estátua, resolveu igualmente complicá-la. Ofereceu-lhe a companhia de Fernão Lopes,  Fernão Lopes de Castanheda, Francisco Sá de Menezes, Gomes Eanes de Azurara, Jerónimo Corte-Real, João de Barros, Pedro Nunes e Vasco Mouzinho de Quevedo. Enfim, uma verdadeira tertúlia.

No fundo, o velho Victor Bastos acabou por fazer um favor a Suresh Tambaclal. Quando o Camões não está para grandes conversas, ensimesmado, compondo estrofes, dormindo ou limitando-se a estar morto e feito estátua, há sempre um dos outros com quem trocar umas palavras. Faz sentido.

Não se pode dizer que Suresh Tambaclal ande com más companhias.

Houve tempos, até, em que tinha a companhia dos pinheiros mansos. Aí podia conversar com o bulir das agulhas. Depois tiraram-lhe os pinheiros mansos.

Tiraram os pinheiros mansos ao Camões; tiraram os pinheiros mansos ao Suresh Tambaclal; tiraram os pinheiros mansos ao Pedro Nunes e ao Gomes Eanes de Azurara, e ao Sá de Menezes e ao Corte-Real e restante confraria. Tiram-nos os pinheiros mansos a todos.

Lá de baixo, do Chiado, o Fernando Pessoa assistiu a tudo, impávido, com turistas adolescentes sentadas ao colo e ingleses bêbados à mesma mesa.

Talvez não fosse Pessoa e fosse Caeiro. Afinal, os objectos são apenas sensações.

Não nos tiraram os pinheiros mansos; tiraram-nos sensações mansas. O que para mim é muito mais grave.

Roma gosta de colinas e de pinheiros mansos; Lisboa gosta de colinas e não gosta de pinheiros mansos.

Lá de baixo, do Chiado, o Fernando Pessoa, impávido, assistiu ao roubo dos pinheiros mansos, e o Alberto Caeiro pensou por ele: O Mundo fez-se para estarmos de acordo.

O Camões e o Suresh Tambaclal estão sempre de acordo: conversam, não discutem.

Depois, o Suresh Tambaclal senta-se na varanda do Calcutá da Rua do Norte e lê o «Mein Kampf». Eu sento-me ao lado dele e bebo cerveja.

O Suresh Tambaclal conversa comigo como se conversasse com o Camões. E eu estou de acordo.

Da varanda do Calcutá da Rua do Norte, o Calcutá de Leste, portanto, vê-se todo o Bairro Alto. E vê-se todo o Bairro Alto porque todo o Bairro Alto sobe ou desce a Rua do Norte.

Ou seja: da varanda do Calcutá da Rua do Norte vê-se também a Índia.

Eu sento-me e vejo. E bebo cerveja.

Vejo passar todo o Bairro Alto e toda a Índia. E não penso num nem noutro.

O Bairro Alto não se fez para pensarmos nele, mas para olharmos para ele e estarmos de acordo. Com a Índia é a mesma coisa.

Quando dos confins de Calcutá nos chega o odor das especiarias, é sinal de que alguém reencarnou na cozinha do Calcutá. Não sei se é verdade ou se não passa de um devaneio, mas estou convencido de que também é possível reencarnar em comida. Ou ter sido uma iguaria noutra encarnação.

Em tempos, conheci uma mulher que foi, seguramente, gulab jamun em outra vida. Só assim consigo explicar aquela impossível mistura de essência de rosas, açafrão, açúcar e cardamomo; aquela sensação de manteiga derretida por entre as pontas dos dedos; aquele corpo de iogurte e fermento misturado com as mãos (sem amassar); leite acrescentado aos poucos, muito pouco de cada vez, criando uma polpa suave (não muito mole); bolinhas pequenas fritando até dourarem; o fogo baixo, o fogo alto, ora muito quente, ora apenas morno; a calda escorrendo por entre nós dois num perfume de flores recém-abertas…

Pois, não tenho quaisquer dúvidas de que essa mulher tão enjoativamente doce foi gulab jamun em outra vida. À medida que vamos ficando a conhecer a Índia, há dúvidas que passam a certezas. Embora, na Índia, de um momento para o outro, as certezas se transformem em dúvidas.

O Hiren Tambaclal raramente chega à Rua do Norte antes das três da tarde. Ou seja, chega geralmente umas cinco cervejas ou três gin tónicos depois de mim, para utilizar a grave ciência que descobriu haver outra unidade de tempo para além das horas, minutos e segundos: o copo.

Fico distraído na varanda do Calcutá de Leste, e nem reparo se foi o Sonnu que reencarnou em xacuti de frango quando ele me chega à mesa mergulhado num molho escuro e espesso.

E peço mais uma cerveja, que vem em copo de alumínio comprado no mercado de Mapusa, às sextas-feiras, por pouco mais de cinco rupias.

Sexta-feira é dia comprido no Bairro da Índia e Calcutás.

Às sextas-feiras deixo-me ficar horas e horas e horas embalado pelo ritmo indiano do Bairro. Chego ainda de manhã e parto já madrugada alta.

Leio, converso, trabalho e preguiço.

Alguém ouve, nos labirintos do Calcutá de Leste, o Rakkama Kaiya Thattu, de S. P. Balasubramaniam. Música de filme. Do Thalapathy. Uma espécie de «O Padrinho» indiano. Nunca vi. Gostava de ver.

Às sextas-feiras gosto de jornais. Fico muito tempo a ler jornais. Em seguida, se a tarde estiver morna, livros. Às sextas-feiras gosto de ler livros que falem da Índia.

Sunil Khilnani: The Idea of India.

Mark Tully: No Full Stops in India.

Esta sexta-feira folheio uma pretensiosíssima compilação de pseudo-reportagens.

Alguém ma deu. Talvez por ironia; talvez por raiva. Ou, mais provavelmente, por simples escárnio.

Sul: diz na capa. O mamífero que assina o opúsculo exibe-se tolamente numa fotografia de obscena cabotinice, seguro de que o ridículo não mata.

Sul na Rua do Norte. Triste Sul.

Percorro o palanfrório que me interessa: sobre Goa. Um acervo de lugares-comuns; um aranzel de ideias feitas e pré-fabricadas.

É com agonia que chego ao fim da meia dúzia de páginas carregadas de insultos à sintaxe e à geografia. E o final é grandioso: num terraço de Goa, o auto-intitulado repórter, deleita-se na contemplação do Cruzeiro do Sul.

Também eu vejo estrelas às duas horas de uma tarde de Verão, na Rua do Norte, no Bairro da Índia, em Lisboa.

Viajei eu por toda a Índia, de Pathankot e Amritsar a Thiruvannathapuram e Kanyakumari, de Gangtok e Kalimpong a Jaisalmer e Bhuj, e nunca tive a felicidade extrema de poder estar num terraço no deleite da contemplação do Cruzeiro do Sul. Essa felicidade extrema que só a profunda ignorância nos pode dar.

Ah! O Cruzeiro do Sul nos céus de Goa…

Quem diria? O Mundo virado do avesso pela mão inábil de um beócio.

E um desperdício de estrelas perpassa pela Rua do Norte.

Lanço o monturo em páginas para o devido balde de imundícies. Será trucidado pela camioneta verde que atravessa o bairro assustadoramente pelo final da noite numa correria de gritos e numa nuvem de cheiro fétido que fica entranhada nas pedras das calçadas e nas fachadas das casas.

Também há gente reencarnada em lixo, pelos vistos.

Fico a ver pessoas passando.

Vão passando personagens. Autênticas e inventadas. Como no teatro de Gil Vicente.

Passa o Malfado Damião, fumando um cigarro. Senta-se à porta do nº 14 da Travessa da Espera, que é o local ideal para morar alguém que não tem futuro. Senta-se e espera. Às vezes tem de esperar muito. Dias inteiros. Houve um tempo em que morei na Espera, na travessa.

Esleide Fidalma, sua esposa amantíssima, tem uma lista de clientes fundamentalmente habituais: um funcionário da Caixa Geral de Depósitos da dependência do Calhariz; um escrivão do 5º Cartório Notarial; dois oficiais de diligências da 8ª vara criminal do Tribunal da Boa-Hora (que costumam chegar separados por um intervalo de uma boa hora…); um despachante reformado cego de um olho; um casal que trabalha na Inspecção-Geral do Trabalho; um delegado de propaganda médica; seis guardas-republicanos do quartel do Largo do Carmo que, por vezes, vêm em grupo e visivelmente alcoolizados… Enfim, tudo gente do maior respeito, higiene e urbanidade.

Malfado Damião, guarda-nocturno, fuma e espera.

Toda a gente no Bairro conhece a sua infinita paciência.

Paciência infinita de indiano… Paciência bovina…

Depois de recebido o último cliente, Esleide Fidalma mete dois dedos entalados sob a língua e, no cubículo do quarto de banho, solta um assobio estridente que foge pela frincha da janela a provocar uma revoada de pombos e a assanhar os gatos que preguiçam no telhado na vigilância dos pombos.

Provavelmente, na escala das reencarnações da Índia do Bairro, gatos e pombos ficam em degraus imediatos.

Há sempre um pombo doente em cada bando de três. O pombo doente cai do beiral e bate no passeio em baixo com um som seco de ossos na pedra e restolhar de asas. Agita-se um pouco até que fica completamente imóvel, só piscando os olhos mortiços. Não tardará muito a reencarnar. E os ratos roem-lhe a carne imprestável. Ou viaja para o monte do eterno sossego na camioneta verde que atravessa o bairro pelo final da noite numa correria de gritos e numa nuvem de cheiro fétido.

Malfado Damião apaga o cigarro e observa o pombo imóvel. Ambos piscam os olhos mortiços.

Depois sobe as escadas estreitas do nº 14 da Travessa da Espera até ao segundo andar onde o esperam os braços roliços de Esleide Fidalma cansada de sexo. É neste reencontro que ambos se distanciam.

Malfado Damião chega inquieto da longa noite e da espera e até talvez um pouco do ciúme que não deixou de se insinuar enquanto esperou. O ciúme é muito dado a utilizar as esperas como fonte de alimento. De alguma forma é como se reencarnasse num fungo.

A inquietação de Malfado Damião exige sexo imediato, um pouco bruto, se calhar.

Cansada de sexo, Esleide Fidalma quer carinho.

E é aí que o amor dos dois se torna incompatível.

O cravo dessa incompreensão ganha o agridoce do cravinho-da-índia. Toda a gente sabe que, em qualquer receita, por mais condimentada que seja, o exagero de um cheiro ou de um sabor sobrepondo-se aos outros deixa nas papilas e na pituitária uma sensação desagradável.

Há cravinho-da-índia e noz-moscada em demasia no reencontro de Esleide Fidalma e Malfado Damião. Há sempre cravinho-da-índia e noz-moscada a mais nos seus reencontros quotidianos. Com a repetição tornam-se incomestíveis…

É preciso dizer que Esleide Fidalma é natural de Dwarka, nos confins do Gujarat, não muito longe assim de Porbandar, onde nasceu o Nilesh e, por acaso, também o Gandhi.

E é preciso dizê-lo porque Dwarka é uma cidade muito, muito especial: é a cidade de Krishna. Uma das sete mais antigas cidades da Índia: uma sapta puri.

Krishna era conhecido pela sua divina compaixão; Esleide Fidalma nem por isso.

É preciso também dizer que, nesse final de tarde, Malfado Damião mergulhou nos braços roliços de Esleide Fidalma com uma desusada sofreguidão exagerada pelo consumo do tabaco, pelas quase sete horas de espera, e pelo riso escarninho dos seis guardas-republicanos, mais alterados do que seria conveniente em período laboral, e que, à saída, não se eximiram a tecer alguns comentários pouco cavalheirescos sobre a relutância de Esleide Fidalma em se desfazer de qualquer tipo de penugem corporal, ficasse ela situada em que zona da anatomia fosse. Nesse pormenor, Esleide Fidalma tinha alma de sikh.

Esleide Fidalma estava, por seu lado, ainda enternecida pelas juras de amor que, num excesso próprio dos clímaxes, lhe sussurrara ao ouvido esquerdo o despachante reformado cego de um olho e não aceitou de bom grado as duas ou três porcarias que Malfado Damião lhe rosnou ao ouvido direito.

Há dramas que se desenrolam enquanto se consome a cabeça de um fósforo. Grandes dramas!

Impreparado para a rejeição, Malfado Damião embruteceu-se.

Insensível à compaixão, Esleide Fidalma fincou-lhe os dentes aguçados no pescoço, perfurando-lhe a carótida externa.

Não foi bonito de ver.

Malfado Damião soltou um grito extenso. Pungente. De nada lhe serviu.

A vizinhança de há muito se habituara aos gritos que se desprendiam da empena do segundo andar do nº 14 da Travessa da Espera: gritos de dor; gritos de prazer; gritos de êxtase; gritos de horror… Guinchos; balidos; grunhidos; roncos; gemidos; relinchos; bramidos; gargarejos; latidos… Ruídos profissionais, enfim.

Nem os pombos fugiram em revoada. Mas um, doente, caiu do beiral.

Como todas as mulheres da família Fidalma de Dwarka, nos confins do Gujarat, Esleide Fidalma é uma cozinheira de eleição.

Com uma faca de fio afiado separou a carne magra de Malfado Damião dos ossos já ligeiramente alquebrados. Retirou-lhe o fígado inchado e o coração seco. Cortou tudo em cubos pequenos e colocou num tacho alto com um pouco de banha de porco. Depois, cantarolando um fado que apanhara de ouvido na Tasca do Chico, preparou, numa frigideira, uma mistura de gengibre, alho e cebola aos pedacinhos…


Que Deus me perdoe
Se é crime ou pecado
Mas eu sou assim
E fugindo ao fado,
Fugia de mim…

 

…e deixou alourar enquanto o estrugir da composição fervilhava feliz num aroma intenso. Sem parar de cantar, foi juntando masala com mão generosa…

 

Quando canto não penso
No que a vida é de má,
Nem sequer me pertenço,
Nem o mal se me dá…


Despejou sobre os pedaços de carne, coração e fígado do malogrado Malfado Damião uma quantidade considerável de vinagre com um toque bem medido de tamarindo.

Num tacho bem largo fez uma cama com o masala, o alho, o gengibre e a cebola e deitou-lhe por cima as carnes bem temperadas com chilis vermelhos.

Sorriu. Limpou as mãos a uma toalha de turco ensanguentada.

Debruçou-se no parapeito da janela estreita. O Bairro ganhava movimento.

Durante uma hora e meia, Malfado Damião cozeu em lume brando. Depois, Esleide Fidalma despejou para o tacho todo o sangue que ficou retido no oleado sobre o qual tão carinhosamente o esquartejara. Mais 15 minutos e estaria pronto. Isto é: reencarnado em sarapatel…

A lua cheia invadiu a Rua do Norte e a varanda do Calcutá de Leste.

O Cruzeiro do Sul estava longe, muito longe: a sul, onde é o seu lugar.

Esleide Fidalma mexeu com cuidado a mistura delicada de cheiros requintados na qual já não reconhecia Malfado Damião. E, estranhamente, nunca o amou tanto como nesse momento.

O Calcutá já não existe na Rua do Norte.

Agora chama-se Laranja Tigre e é um restaurante goês. Por minha causa, confesso. Talvez as pessoas venham a gostar dele com o tempo. Afinal, como dizia Henry Michaux: «Na Índia não há nada para ver, é tudo para interpretar». Sento-me e interpreto. E bebo uma cerveja e tudo está no seu lugar.

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