Thomas Struth - Audience 7, Florence 2004 - Chromogenic print, 179,5 x 288,3 cm, © Thomas Struth

O banal global – o normcore na fotografia de Thomas Struth

O banal global – o <i>normcore</i> na fotografia de Thomas Struth
Thomas Struth
Audience 7, Florence 2004
Chromogenic print, 179,5 x 288,3 cm
© Thomas Struth

À excepção de um grupo essencialmente composto por chatos, sabichões e pedantes, ir a museus chegou a ser popularmente considerado o pai de todos os fretes. Entre crianças delirantes de tédio e adultos puídos arrastando os pés de artefacto em artefacto, a experiência era vivida por todos sob uma convenção tácita de reverência para com os preciosos objectos de significado insondável.

Hoje, os principais museus e património histórico são geridos à semelhança de grandes empresas e com uma preocupação idêntica em captar financiamento e gerar receitas. Para isso, dirigem-se a ‘novos públicos’, a quem prometem ‘experiências’, apostando em desmistificar o contacto com obras de arte junto de um target não-especialista, numa lógica em tudo semelhante aos blockbusters – expressão de origem militar apropriada pela indústria do entretenimento e que serve agora para designar exposições antológicas, caríssimas de produzir e geradoras de avultadas receitas. Em comum têm sofisticadas estratégias de comunicação multimeios e abundante apoio teórico para facilitar a apreensão de ideias de grande complexidade – tudo isto embrulhado na promessa de fazer do visitante uma pessoa melhor. Só precisam de aguardar pacientemente na fila e sair pela loja do museu, podendo depois prolongar a experiência em casa, fritando bifes de avental Pós-Impressionista.  

A estratégia funciona, impulsionada por ventos de feição: as classes médias emergentes, o desejo de vingança pós-pandémica, as companhias de aviação low-cost, o alojamento local, os cruzeiros e – de forma particularmente impactante – as redes sociais, responsáveis por trazer espectáculo e dinâmicas de validação para a experiência cultural. Só assim se explica que hoje em dia nos vejamos separados de um Vermeer por um mar de nucas, e nem uma guerra às portas da Europa, nem o clima instável e progressivamente inóspito, nem as vitrines partidas e os carros a arder no centro de Paris parecem demover as massas de turistas ávidas de escape. Desde os jovens nobres setecentistas de partida para as Grand Tours em busca do melhor das artes, do pensamento, da cultura e da História europeus até às férias contemporâneas vendidas pelo algoritmo do motor de busca, somos cada vez mais os que viajamos por curiosidade, gosto e puro medo de ficar de fora do acontecimento.

A verdade é que são poucas as experiências que, como o turismo, nos levam a cruzar o tempo e o espaço, permitindo-nos relativizar a dimensão do lugar que ocupamos no mundo. O fotógrafo alemão Thomas Struth (n. 1954) trata este tema de forma particularmente habilidosa e tocante numa série de obras a que chamou Museum Photographs, a mais conhecida de um corpo de trabalho singularmente rico e diverso que faz dele um dos artistas mais celebrados da contemporaneidade. Realizadas entre o final dos anos 80 e o final da primeira década de 2000, este conjunto de fotografias de grande formato tem em comum a representação de grupos de turistas visitando alguns dos principais museus, igrejas e edifícios históricos europeus e americanos, como o British Museum, o Museu do Prado, o Art Institute of Chicago e a Galeria da Academia de Belas-Artes de Florença. 

Discípulo de importantes artistas como o duo e casal de fotógrafos Bernd e Hilla Becher e do pintor Gerard Richter na Kunstakademie Düsseldorf, Struth chama à sua obra diferentes sensibilidades provenientes da fotografia e da pintura, destacando-se a sua objectividade cristalina e o modo impressionista, espontâneo e imediato, com que documenta acções da vida moderna, como um gerúndio interrompido e mantido em suspenso. Por ser tão rica formal e conceptualmente, a fotografia de Thomas Struth revela-nos diferentes camadas de significado à medida que a percorremos com o olhar, à semelhança do processo da fotografia em si ao conjurar espectros no papel de forma progressiva. Primeiro, a composição; sem ocultar os monumentais edifícios e galerias para que lhe conheçamos o contexto, o artista conduz-nos o olhar para o principal foco do seu interesse: as pessoas em plena contemplação do espaço. De súbito, os luxuosos mármores e as obras de arte de valor inestimável para onde olham os turistas tornam-se periféricos. São eles – visitantes de frente para a câmara, de lado ou de costas, conscientes da presença do fotógrafo ou alheados pela beleza do lugar onde se encontram – o veículo através do qual Struth comunica connosco ao longo de toda esta série.

Como todos os artistas, Struth sabe que, de uma forma ou de outra, todos procuramos um reflexo de nós próprios nas obras de arte, esperando encontrar nelas o eco de vivências nossas e, como tal, uma garantia de não estarmos sós no mundo. É durante esta busca que o nosso olhar abandona o colectivo de visitantes para se fixar individualmente em cada um deles. Tratando-se de fotografias do tamanho de outdoors de beira de estrada, a estatura do turista assemelha-se à nossa, activando de imediato uma intimidade inusitada entre duas dimensões paralelas – nós, turistas num museu ou galeria, contemplando os turistas em museus captados por Thomas Struth – interceptadas apenas pelo acto comum da contemplação.

O banal global – o <i>normcore</i> na fotografia de Thomas Struth
Thomas Struth
Audience 11, Florence 2004
Chromogenic print
179,5 x 291,5 cm
© Thomas Struth

São também impressionantes de tão límpidas, e detalhadas como minuciosas descrições queirosianas, convidando a animados jogos de dedução: aquele casal – serão espanhóis? O homem alto de calções e sandálias será engenheiro ou dentista? E o miúdo ao centro, será filho de quem?

Rapidamente percebemos que falta ali algo perfeitamente ubíquo: o telemóvel. A falta desta ferramenta omnipresente de autodocumentário é talvez a mais sonante denúncia do tempo desta fotografia, mais até do que a indumentária dos turistas. Sem telemóvel, deixa de ser preciso travar uma esgrima de cotovelos para obter uma selfie junto da icónica escultura de David, obra-prima de Michelangelo que atravessou séculos para agora ser objectificada como uma celebridade, comoditizada e convertível em cachet social.

 

‘VIVEMOS EM TEMPOS MASS INDIE’ 

Já que Thomas Struth nos pôs a olhar para estes turistas, e uma vez que o estilo tem substância, proponho que nos fixemos agora no seu modo de vestir. A roupa de turista é de tal forma comprometida com a funcionalidade que não deixa margem para a afirmação de uma identidade, de um ponto de vista ou de uma marca individual. É por esta razão que o que vestimos enquanto turistas é o mais próximo que existe de um uniforme do anonimato.

Embora inadvertidamente, as Museum Photographs contêm a génese de um fenómeno do universo da moda que celebra o ordinário em aberta rejeição do extraordinário: o Normcore

O termo, resultante da fusão entre ‘normal’ e ‘hardcore’, surge em 2013 pela mão da K-Hole, uma agência nova-iorquina de previsão de tendências fundada por cinco criativos recém-formados, num acutilantemente lúcido relatório em pdf (formato de eleição da K-Hole) intitulado ‘Youth Mode: A Report On Freedom’. Nele, propõem que a internet e a globalização esgotaram a possibilidade de nos afirmarmos pela diferença, conceito que consideram finito. A consequência desta escassez é a imitação simplificadora da diferença com a finalidade da sua democratização –  é aqui, nesta antítese, que a K-Hole identifica o presente como a era do ‘mass indie’, ou a domesticação e massificação da vanguarda para grande consumo. A  existência de um gigantesco mercado global onde competem cada vez mais marcas de fast fashion confirma esta teoria, e basta entrar numa Zara qualquer, seja em Regent St. ou em Rio Tinto, para perceber que o público-alvo das cadeias de fast fashion somos todos nós e ninguém em particular. Quer sejamos mães de família, chungas, mitras, metaleiros, góticos, modelos do Only Fans, betos, agrobetos, bétnicos, shanti-shantis, alternos ou coastal grannies, nunca foi tão fácil nem tão barato fazer uma constante curadoria da nossa individualidade. O normcore veio desarmar esta armadilha; ao reclamar a monotonia e a banalidade do subúrbio, tornando-as deliberadas para as elevar à condição de estética, o normcore sinaliza um desejo de partilha e de pertença.

E porque ‘a moda é o eterno retorno do novo’, segundo Walter Benjamin, o normcore foi inspirar-se no actor e comediante Jerry Seinfeld que, nos anos 90, personificava o estereótipo do tipo normal. Ao bom espírito americano, baralhou as regras misturando peças do universo do desporto, como os ténis brancos insuflados e boné de baseball, com casacos de penas ou corta-vento pensados para os amantes da natureza, com camisa branca enfiada por dentro de calças de ganga, o binómio mais essencial do guarda-roupa masculino. Este novo modo de vestir, trazido para a Europa através do entretenimento (a maior força disseminadora de referências e valores culturais do mundo industrializado pré-internet), deu-nos excelentes ícones de estilo portugueses em futebolistas como João Pinto e Rui Costa, a carismática Guiomar da Rua Sésamo ou, de forma mais ampla, os velhotes de mãos engatadas atrás das costas a ver as obras, e todos os nossos pais ao fim-de-semana. Ao apropriar o vestuário casual dos anos 90 e 2000, o normcore adoptou um vocabulário estético que assenta numa ligeira desadequação: feito na época que deu início à verdadeira massificação dos bens de consumo, este vestuário tende a ser mais largo do que o necessário e as bainhas das calças são ou demasiado curtas ou demasiado compridas, acumulando-se sobre os sapatos. Não assentam bem a ninguém, mas servem a toda a gente. 

Poderíamos descartar o normcore como (mais uma) piada irónica de millennials circunscrita a gente das ciências sociais, se não fosse um fenómeno tão insidioso. Reparem no que têm vestido ao ler este texto. Aos que têm calçados ténis volumosos, chinelos Birkenstock, sandálias com tiras de velcro; aos que usam corta-ventos na cidade, bolsas de cintura, polares da Patagonia e casacos de penas, convictos do seu pragmatismo e conforto: saibam que o fazem porque o normcore foi há muito chamado ao centro. Quem o chamou foi a moda, espécie de batedeira invisível a misturar elementos numa força centrípeta implacável, trazendo ideias das margens para as misturar ao centro até à homogeneidade. Que outro fenómeno explicaria o recente indulto social concedido às meias brancas?

Surgiram recentemente, e com enorme sucesso comercial, marcas de moda cujo universo conceptual é assumidamente normcore, como a nova-iorquina Aimé Leon Dore que, mais do que clientes, agrega uma vasta comunidade de fãs e tem até um valioso mercado secundário. Num segmento mais elevado, também as maisons de luxo apropriaram este código, adaptando-os aos seus mercados: a Balenciaga de Demna Gvasalia, primeiros a re-significar os ténis grossos suburbanos, ou a marca das gémeas Olsen, a The Row, num registo mais sóbrio e inconspícuo a que chamaram quiet luxury. São ambas iterações do normcore para ricos que, quer por snobeira invertida, ou por desejo de desaparecer em plena vista, vêem no básico algo verdadeiramente subversivo. 

O que significará esta normalização do não-aspiracional? Talvez num mundo em policrise e perigosamente polarizado, procuremos algo que não nos divida e isole: algo comum, no sentido ambivalente de comunhão e de banalidade. Mas se o normcore é omnipresente e propositadamente vulgar, como podemos distinguir a aparência de um turista da de um normie? Pode não ser possível, porque a diferença é ténue e fugaz: a intenção. Um olho mais treinado poderá detectar sinais de estilização por parte de um normie mais sofisticado, contudo, o importante é que se trata de uma atitude enraizada no real e que aponta a massa humana, colectiva e anónima, como verdadeira amostra do ar dos tempos. 

Durante milénios, a história da arte viu-se condicionada a reconstituir o passado através do ponto de vista das elites. Sendo encomendadas por mecenas e líderes políticos, os temas das obras de arte (cenas bíblicas, naturezas-mortas e retratos) traduziam os extraordinários medos e aspirações do 1%, representando apenas de forma periférica, implícita ou involuntária um vislumbre da vida da restante população. Nas Museum Photographs, Struth inverteu esta pesada tradição, colocando os 99% ao centro com igual grandeza e dignidade. Depois de realizar várias dezenas destas obras (cujas reproduções digitais aqui publicadas não fazem de forma alguma justiça, devendo ser vistas presencialmente), Thomas Struth deu por terminada a série de fotografias em museus. Diz o artista que soube que era altura de seguir noutra direcção quando cada vez mais pessoas se abeiravam dele para perguntar: “é o Thomas Struth?”.

O banal global – o <i>normcore</i> na fotografia de Thomas Struth
Thomas Struth
Audience 4, Florence 2004
Chromogenic print
179,5 x 335,8 cm
© Thomas Struth

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