Fotografia de Raquel Raclette para Unsplash

O conflito israelo-palestiniano e os moderados

No dia 8 de Outubro de 2023, na ressaca do massacre hediondo dos terroristas do Hamas a sobretudo civis israelitas, Israel atingiu um pico de legitimidade moral a que provavelmente já não chegava há décadas, mas que perderia em poucos dias, tal a dimensão da sua “poderosa vingança” (a expressão de Netanyahu) sobre alguns terroristas e muitos civis da faixa de Gaza. A 30 de Outubro de 2023, às vítimas israelitas (1300 mortos, incluindo cerca de 30 crianças, 40 desaparecidos e 238 reféns ainda nas mãos do Hamas) correspondem as seguintes vítimas palestinianas: 8005 mortos (3342 crianças), pelo menos 1600 desaparecidos e mais de 600 mil deslocados (dentro de Gaza). Os números são impressionantes mas não surpreendem, sobretudo se tivermos presente que a desproporção de mortos entre 2008 e Setembro de 2023, período que quase coincide com a “co-existência violenta” de Netanyahu & Hamas, é de 20 palestinianos para 1 israelita (e de 21:1 se considerarmos apenas os civis). Como são dados da ONU, uma organização tida por muitos como parcial neste conflito, faça-se uma correcção deste rácio e aceite-se que o valor real é de 10 para 1. Assumindo que os reféns serão todos salvos, esquecendo a evolução do estado de saúde dos feridos de ambos os lados e admitindo que entre os desaparecidos de ambos os lados só 10% estarão vivos, 10 para 1 ainda – digamos – permite a Israel matar mais 16 617 palestinianos para se cumprir a adulterada lei de Talião da rigorosa proporcionalidade, há décadas transformada naquela região na versão “olho por olhos”. Este macabro e maléfico exercício serve apenas para refrear a vontade de frisar a falta de equivalência moral entre os terroristas palestinianos e o exército israelita, aqui impecavelmente demonstrada por Sam Harris. Sendo inegável em teoria (visto que, como se aprende nos escritos dos terroristas e se viu a 7 de Outubro, o Hamas só não mata mais civis porque não consegue e usa os seus como escudos civis, enquanto Israel mata muito aquém da sua capacidade técnica e não se esconde atrás dos cidadãos israelitas), à desigualdade moral nas intenções, métodos e no orgulho com que a matança é noticiada corresponde uma desigualdade invertida nas consequências. Assim, o Governo de Israel, com menos sede de morte do que o Hamas e mais civilizado na táctica e propaganda, acaba por matar muito mais. Só um kantiano não verá um problema neste paradoxo. 

O conflito israelo-palestiniano sempre foi singular no espaço público. Mobiliza homens e mulheres igualmente, não perde intensidade com o aumento da distância geográfica e o afastamento cultural, e, ao contrário de quase todos os outros temas quentes e recorrentes, não passou a ser condicionado pelo “lugar de fala”. Porque toda a gente se pronuncia sobre o conflito, por vezes com uma intensidade que nos levaria a pensar que – passo o centralismo lisboeta – os terroristas do Hamas fizeram um raide na Almirante Reis ou que as forças israelitas estão a bombardear a Avenida de Roma. Esta bizarria acontece porque há muito tempo que deixou de interessar apenas discutir o conflito como se fôssemos entidades anónimas e objectivas, desprovidas de sentimentos e sem lastro ideológico, e passámos a fazer a discussão sobre a discussão. O paiol de décadas de opiniões já garante largamente a massa crítica para as explosões recorrentes de retórica em que os intervenientes passam a ser o objecto da discussão, o que tende a terminar em desavenças, sobretudo entre esquerdistas. Das polémicas em torno do sionismo aquando da fundação do Estado de Israel aos dias de hoje, tem sido sempre à esquerda que Israel provoca mais fracturas. Pareceu-me feliz a expressão “Israel é o teste de Rorschach da esquerda”, no sentido em que o esquerdista vê o que quer ver. E como seria de esperar, o 7 de Outubro já provocou uma cisão, pois os israelitas progressistas que ainda recentemente se mobilizavam contra Netanyahu e os seus parceiros da extrema-direita sentem-se agora abandonados por uma esquerda internacional incapaz de sequer fazer o luto pelos que morreram a 7 de Outubro nos kibbutzim israelitas, curiosamente algumas das poucas comunidades no mundo com resquícios da utopia socialista. Assinado por intelectuais e activistas israelitas, incluindo alguns bem conhecidos entre nós, como os escritores David Grossman e Yuval Noah Harari, este manifesto é um hino ao bom senso e à empatia. Frisa a necessidade de se quebrar o ciclo de violência e destruição, lembrando que não existe contradição entre rejeitar com firmeza a subjugação a que Israel sujeita os palestinianos e condenar sem hesitações a violência brutal contra civis inocentes, sendo a obrigação de qualquer progressista defender estas duas posições. É também o que se espera de um moderado: resistir ao apelo da trip de indignação desenfreada que vem com a doutrinação extremista da ideia única e aguentar na cabeça duas ou mais ideias que se interpelam e causam desconforto. Eis o fardo da moderação. Mas haverá moderação possível neste conflito?

O moderado diz-se em regra pela solução dos dois Estado; desconfia da solução do Estado único democrático porque os árabes seriam mais numerosos e ainda pensa segundo os acordos de Oslo, desvalorizando o que sucedeu nas últimas décadas e talvez tenha tornado a solução do Estado único como a menos impossível (e.g., 1, 2). Frisa a necessidade de proteger a democracia israelita, que critica en passant (as ocupações, o desprezo pelas resoluções da ONU, a discriminação dos 2,1 milhões de cidadãos israelitas árabes e a aproximação à teocracia), mas elege como o pior dos sistemas à excepção de todos os outros no Médio Oriente. Reconhece o sofrimento dos palestinianos e a brutal assimetria de forças e privilégio entre estes e os israelitas, mas não faz equivalências morais entre as acções das forças israelitas e os actos de terrorismo do Hamas, nem justifica os meios com os fins, e é pela contenção e proporcionalidade na resposta do mais forte a agressões. O moderado repete estas lapalissadas há décadas, mas para nada, porque o conflito só se tem radicalizado. Os extremistas do Hamas controlam Gaza, Netanyahu e a extrema-direita israelita estão no poder e a evolução da ocupação do território, por muito que os israelitas lembrem a “cedência” de Gaza em 2005, vai no sentido da completa exclusão dos palestinianos. Por outras palavras, o discurso sensato da moderação não é neutral. Na prática, é um discurso de apoio a Israel, em que apenas se procura refrear a pulsão vingativa do mais forte depois de um ataque dos palestinianos, porque já não se faz ouvir fora dos momentos de escalada da tensão, quando a vida decorre como habitualmente, isto é, com palestinianos em condições de vida degradantes, os cidadãos árabes israelitas com direitos cada vez mais limitados e os colonos israelitas a proliferar na Cisjordânia.

Como reagir com moderação e calma, se, para quem se lembra de ter acompanhado pela televisão a primeira intifada (1987) e hoje reconhece que essas imagens contribuíram para a formação de uma consciência política, ver, ler e ouvir as notícias e reflexões nas últimas duas semanas sobre o conflito israelo-palestiniano tem sido um festival de argumentos repisados, conformismo e desesperança? Dos intervenientes directos aos que apenas comentam, parece que não aprendemos nada. Reagimos pavlovianamente e fez-se o Q.E.D. de que o argumentário e a retórica habituais não servirão mesmo para encontrar a ponta de um novelo que a memória vai emaranhando cada vez mais. 

Sem sair da nossa terra e até do mesmo jornal, penso no texto que Carmo Afonso publicou ainda os cadáveres israelitas estariam mornos, que me incomodou pela falta de timing, ou neste artigo de Alexandra Lucas Coelho de apoio aos palestinianos, que só não subscrevo por causa da passagem sobre a aparente empatia entre um refém e o seu raptor, como se a síndrome de Estocolmo pudesse ser redentora. Do outro lado, penso no texto de Maria João Marques expondo o recorrente argumento do anti-semitismo, que aumentou por todo o lado, é verdade, mas que a autora discute no típico registo da guerrilha cultural que sempre se instala nestas alturas e alimenta o status quo. Penso ainda na prosa de Esther Mucznik, que revela uma vincada parcialidade, em parte compreensível pela sua condição de judia, quando transfere o ónus da culpa para o Hamas no que diz respeito a mortes de civis palestinianos usados como escudos humanos, porque a decisão de disparar, sabendo quem pode estar a matar, é sempre de Israel. Não vale a pena colher mais exemplos deste déjà vu.

Discutiu-se sobretudo se o ataque terrorista admite adversativas, isto é, se há uma contextualização possível, o que criou alguns momentos de comicidade involuntária, como quando Slavoj Žižek começou por dizer que não havia lugar a um “mas”, para depois acrescentar um “dito isto”. José Pacheco Pereira já havia reposto algum bom senso ao reclamar o direito às adversativas; não as poder usar na exposição do pensamento lembra os exercícios de auto-restrição do grupo OuLiPo, como escrever um romance em francês sem usar a letra “e”, que eventualmente terão mérito literário mas limitam o raciocínio e fazem pouco pela clareza. O problema nem sequer está na adversativa, está na ordem dos factores (“o terrorismo é inaceitável, mas Israel tudo fez para o fomentar” tem um significado diametralmente oposto de “Israel tudo fez para o fomentar, mas o terrorismo é inaceitável”). Aliás, na intervenção mais criticada por Israel até agora, o discurso de Guterres (Secretário-Geral da ONU) de 24 de Outubro de 2023, não existe sequer uma adversativa explícita, sendo a articulação entre os factores feita por um “also”, certamente pensado para aliviar da contextualização a ideia de justificação para os actos terroristas. Como se viu, tratou-se de um cuidado ineficaz porque contextualizar lembrando os crimes de Israel só pode mesmo ser interpretado como uma atenuante, por muito que Guterres tivesse depois frisado que condenara de modo contundente o Hamas. Mas a adversativa explícita, implícita ou até contraditória (que surge depois de a negarmos) é essencial, caso contrário estaríamos a transformar o 7 de Outubro num momento fundador e a dar carta branca a Netanyahu, que já se refere ao ataque a Gaza em curso como a “segunda guerra da independência”.

Este dever de lembrar o passado coloca um problema, porque todos os casos de reconciliação após uma guerra prolongada, décadas de terrorismo ou uma guerra civil pressupõem o esquecimento. Por vezes, é mesmo impossível perdoar e só o esquecimento nos pode salvar. Haverá, assim, um esquecimento vicioso, que liberta do fio do tempo o último ataque e assim potencia a retaliação, animando perpetuamente o ciclo de violência e de destruição, e um esquecimento virtuoso, imprescindível para o processo de paz. Ninguém está ainda pronto para esquecer, há demasiados cadáveres e um perigo de agravamento do conflito, mas a tolerância internacional em relação a Israel só aumentará se o bombardeamento de Gaza continuar e a invasão, a acontecer, provocar mais uns milhares de mortos; em algum momento, forçados ou saciados, o Governo de Israel porá termo ao massacre imposto aos civis de Gaza.

As pressões comerciais moldam a esfera pública, favorecendo a propagação das opiniões extremas, sobretudo na era em que as redes sociais se tornaram hegemónicas, os media ainda não saíram da sua crise existencial e uma democracia que admiramos elegeu uma criatura como Trump. Este estado de coisas criou também um género a que este texto pertence: o do apelo à moderação. De resto, este género atingiu máximos nos últimos dias e, se dúvidas houver, basta recorrer aos exemplos que tenho mais à mão, os textos de Pedro Norton e Eduardo Marçal Grilo, ambos de hoje, no Público, como composições sobre um mesmo tema. Sem pôr em causa as intenções dos autores, que são moderados genuínos, duvido do apelo à moderação genérico e abstracto. Primeiro, sobra a hipótese plausível de que o aumento da intolerância e das visões extremadas é apenas reflexo de haver hoje mais vozes e não apenas as vozes das elites; a moderação é, de certo modo, um luxo a que muitos não tiveram e não terão acesso. Segundo, há que fazer a crítica da figura do moderado. Não por se tratar de um presumível cobarde incapaz de expressar uma opinião forte ou original, descrição que já li, mas de um putativo preguiçoso que investe pouco nos assuntos que discute. O moderado será, até prova em contrário, tão suspeito como aquela pessoa talvez ainda predominante em Portugal que se autodescreve como “católico não praticante” sem se desmanchar a rir com o oximoro. Porque a exibição de falsa moderação, que se consegue pela simples enunciação em tom crítico das posições extremas, evita uma série de aborrecimentos e é por isso muito tentadora. Terceiro, talvez seja útil concretizar o que se imagina como exemplo de moderação, sem alusões a um passado que tendemos a idealizar e investindo em conselhos práticos. Qual seria então a cartilha do moderado? Creio que deve assentar em sete regras muito simples: 1) não falar do que não se sabe, escutar apenas (exemplo: Tiago Mayan, que demonstrou na CNN nunca ter lido ou sequer pensado sobre o assunto até 7 de Outubro, não merece sequer uma crítica); 2) ouvir sobretudo quem sabe mais do que nós (alguns dos links que usei têm bons exemplos); 3) escolher bem as fontes e não ficar aprisionado numa echo chamber (dispensa exemplos); 4) frisar o que une quando os extremistas insistem nas diferenças e vice-versa (ver abaixo); 5) não propagar informação dúbia que serve a nossa causa (os “40 bebés decapitados” e o “ataque de Israel a um hospital”); 6) não partilhar nas redes visões extremistas, por muito boas que sejam como entretenimento (assumo a contradição ao dar como exemplo este discurso incendiário de Douglas Murray); 7) não ser aborrecido nem conformado, dois problemas dos moderados que os extremistas não têm (mas Slavoj Žižek, o teórico da violência, não é nada aborrecido e tem soado surpreendentemente moderado desde 7 de Outubro).

Ao moderado cabe hoje lembrar as pontes que sobram. Que ainda há vozes singulares informadas e sensatas, como Noah Harari (judeu israelita) e Yousef Munayyer (um israelita palestiniano e norte-americano), e vozes que se unem para expressar uma visão civilizada, como os israelitas do manifesto acima referido e de um outro manifesto também recente e anterior a 7 Outubro ou um grupo homólogo de académicos, escritores, artistas e activistas palestinianos que se manifestaram poucos dias antes de 7 de Outubro de 2023 contra as afirmações anti-semitas de Mahmoud Abbas (o líder da Autoridade Palestiniana) sobre o Holocausto. Que tanto palestinianos como judeus têm laços históricos à terra que disputam. Que estes dois povos semitas partilham uma história de diáspora e discriminação. Que se o ataque de 7 de Outubro terá visado abortar as negociações entre Israel e a Arábia Saudita para um acordo histórico, em algum momento deverá ser possível retomá-las. Que a orquestra West-Eastern Divan, com base em Sevilha e composta por músicos do Egipto, Irão, Israel, Jordânia, Líbano, Palestina, Síria (e da Espanha), fundada por Daniel Barenboim e Edward Said em 1999, ainda existe e tem a agenda de concertos preenchida. A este lirismo é fácil contrapor a visão cínica e derrotista de que os extremistas sairão vencedores, pois o medo tende a reforçar o poder dos governos de extrema-direita belicistas, há demasiadas peças neste puzzle (Israel e a sua política interna, o Hamas, a Autoridade Palestiniana, a liga Árabe, o Irão, os EUA, os judeus dos EUA, etc.) e o fim do Hamas não só parece militarmente difícil de alcançar como também um processo contraproducente que gerará ainda mais terroristas. Mas basta um pessimista, não precisamos de uma legião de vencidos do Médio Oriente. E pode ser que a violência das últimas semanas, sem precedentes recentes, seja a gota de água…

Quando se ensaia um remate esperançoso, o terrorismo recente na Espanha (1968–2010) e no Reino Unido (1968–1998) e o apartheid na África do Sul (1960–1994) são por vezes apresentados como longos conflitos com um final feliz que poucos julgavam poder vir a testemunhar. Sucede que a ETA fez 853 mortos e dos confrontos na Irlanda do Norte e África do Sul resultaram 3466 e 8500 vítimas, respectivamente. A escala do conflito israelo-árabe é diferente, pois mesmo a soma destes três números ficará provavelmente bem abaixo dos mortos israelitas e palestinianos provocados pelo massacre de 7 de Outubro de 2023 e a resposta de Israel (quando acabar), e entre 1860 e 2021 este conflito terá feito mais de 100 000 vítimas. Talvez só o genocídio por milícias Hutu de 500 mil a 800 mil cidadãos de etnia Tutsi e a violação de 250 mil mulheres no Ruanda, em 1994, sirvam de exemplo, pela improbabilidade com que, em duas décadas, o país se regenerou (abolição da pena de morte, nova Constituição, etc.) e as etnias de algum modo se reconciliaram. Que esta lembrança guie quem precisará de muito esquecer.  

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