Benfica

O empadão de esparguete dos avós em Benfica

1. O avô morreu na passagem de ano de 2007-8. O meu pai passou a noite, mão na mão, com o seu pai. Apesar de já ter visto esta imagem milhares de vezes, não sei exatamente o que será consolar alguém nos momentos finais. Menos ainda sei o que é morrer. Quando os avós desaparecem dá-se a nossa primeira orfandade, dizem. Perde-se o vínculo aos últimos representantes próximos de universos e referências que demonstram a elasticidade temporal da memória e o amor para além dos tempos.

Nos últimos meses de vida, o avô divertia-se com coisas tontas como sintonizar o pacemaker nas frequências da rádio. Mas o que mais lhe acontecia era conviver com fantasmas. Conversava com a avó defunta, desfilando o mundo no comando, sagrado objeto preso por cordel ao braço do cadeirão em frente da televisão.

Dois cadeirões, plateia de horas sem forma, onde um casal envelhece junto.

Os fantasmas seriam o último filme a que o avô assistia. Era engraçado ouvi-lo relatar estes encontros fantasiosos com elementos biográficos: “um tipo da CGTP tentou roubar-me o relógio de pulso”; “os primos espanhóis trouxeram rosquilhas para o lanche”; “faltam só dois dias para inaugurar a Fábrica de Gelo em Plasencia”, “o colega do Ministério fez-me uma partida”; “estive com um camarada da tropa em Queluz, fomos pescar tainhas a tiro de Mauser”, “a oficina em Vila Franca de Xira faliu!”.

Quando duvidava das intenções dos fantasmas, dava-lhes bengaladas.

Foi numa dessas agitações com a bengala, achamos nós, que terá tombado da cama para a morte.

No primeiro dia do ano de 2008 acordei, ressacada, com a notícia: o avô partira. Corri à Praceta Alexandre Pinheiro Torres, em Benfica, e, subindo para o oitavo andar, o elevador encravou e ali fiquei presa com os homens da casa mortuária. Não sei exatamente quanto tempo. Era o primeiro dia do ano, a porteira fora à terra. Porém, há sempre quem trabalhe para a grande maioria poder desfrutar e descansar. E aqueles trabalhadores com quem me encontrava fechada num cubículo iam “tratar do corpo”.

No elevador, aninhei-me às memórias, esquecendo-me de que, lá em cima, o meu avô era já um defunto.

 

2. Quando a sua figura portentosa de olhos-verde-tímido assomava nas grades do colégio, uma luzinha acendia-se no meu coração pré-escolar. Minúscula criança com um avô enorme de mãos dadas, Estrada de Benfica afora. Pausa regular para um palmier ou um cone de chocolate com sabor farinhento (confecionado com restos de outros bolos espalmados, anos 80 no seu melhor) e pretexto para birras monumentais quando o bolo se quebrava, nas minhas mãos ou no chão. Tenho memória das birras, porque me contaram (e depois comprovei em fotografias de cara feia) ou porque ando a vivê-las, enquanto mãe de uma criança em fase de birras.

A casa dos avós era a minha calma. Apertados numa mesinha da marquise com Monsanto ao fundo, assistia ao avô a fabricar coisas. Apanhando-o distraído, esborrachava-lhe o SG Gigante que acabara de pousar no cinzeiro, até que um dia, vitória, declarou ter deixado de fumar por causa da chata da neta. Elaborava máquinas, arranjava qualquer utensílio estragado, fazia as suas próprias ferramentas. Construiu uma garagem para o meu irmão, uma casa de bonecas para mim, uma máquina de cortar fiambre para ele. Agora, como mãe, penso na sorte destes presentes em vez dos berrantes e impessoais toys’r’us. O seu impulso engenhocas vinha sempre acompanhado de ralhetes da avó, devido à sujeira, normal naquelas ocupações. Talvez tivesse ciúmes do tempo que eu passava com o avô a construir coisas que para ela não tinham importância. Aliás, torturava-me com a pergunta (a uma criança): “Gostas mais da avó ou do avô?”. O meu apaziguador “Dos dois” nunca lhe servia como resposta.

Eu apreciava era observar a metodologia de arrumação do avô, em mil caixinhas apenas por ele entendidas com o arsenal de mestre de trabalhos manuais, sua especialidade. Acessórios de bricolage, toda a gama de aparos de lapiseira, pontas de canetas, compassos, réguas, madeiras e cartões. Cadernos de capa dura que fazia e me oferecia para futuros diários onde desfiava palavras e sentimentos muito intensos de jovem classe média incompreendida.

Uma vez, o avô levou-me à 5 de Outubro para me mostrar o posto de trabalho, antigo Gabinete Técnico Pedagógico, no Ministério da Educação que, em tempos, orientou os projetos das escolas industriais em todo o país.

Andar de autocarro com ele foi das mais emocionantes viagens. Para ambos, uma vez que a reforma lhe retirara o destino diário, rasurando o número todos os dias verbalizado:

— Já passou o 45? 

 

3. Estas e outras memórias presas no elevador. O quarto amarelo-acastanhado que emoldurava o ambiente misterioso e empolgante das suas histórias. A voz serena e marota que eu escutava fixando os penduricalhos do candeeiro. O tique-taque do relógio de parede. O estremecer da caixa de elevador do prédio anunciando alguém que nunca chegava. Sons que passaram a ser para sempre associados à casa dos avós. Como o ferver do leite cuja nata a avó vinha suavemente levantar com uma colher, servindo-mo em chávena com pires “para acalmar”. Continuou a ferver o leite mesmo quando deixaram de o entregar à porta em garrafas transparentes.

 

4. Aos fins de semana, o avô retirava cauteloso a capa cinzenta do MG branco, tesouro desde 1967, aquecia o motor na praceta e arrancava, em grande estilo, com uma girl-avó arranjada com pele de marta e roupa de modista, leve pó de arroz, perfume suave e os majestosos cabelos brancos de reflexos azulados, apanhados em travessão de marfim. Ia levá-la à missa, mas, mais religioso do que aquela, era o almoço no David da Buraca a seguir à igreja. Por vezes eu acompanhava-os, ao David ou ao Edmundo, onde ficávamos a comer calados ou a falar espaçadamente sobre comida.

Nas visitas semanais, os avós descreviam-me com detalhe a banalidade da sua rotina e das suas refeições. Tenho ideia que me aborrecia, mas apaziguava-me saber que aquela substância narrativa era um lago parado do qual nunca saíam, onde nem uma palhinha boiava. Em ritmo de vida antagónico ao meu, feito de mil acontecimentos, emoções e mudanças, os dias deles eram tão pacatos que até o envelhecimento parecia estagnar. Os defeitos repisados, as mesmas histórias, os mesmos objetos, os mesmos programas de televisão, a mesma porteira casada com um polícia e a filha Zélia que me ensinou a tocar acordeão. Únicas pessoas com quem conviviam além do filho, nora e netos. Os mesmos gestos, as mesmas cortinas, a mesma máquina de costura de pedal, a mesma mesinha indiana esculpida em pormenor e porcelanas chinesas, a mesma juke box com o single “Era uma casa muito engraçada não tinha teto não tinha nada”, a mesma arca de enxoval que havia de ser para mim e nunca foi, o mesmo cheiro a lavado, até a rádio parecia dizer a mesma coisa. Apesar de nada mudar lá dentro, o país e as nossas vidas foram-se alterando e moldando aos tempos e, às tantas, eles moravam há mais de 40 anos naquela casa em Benfica… Era fazer as contas à quantidade de vezes que a mesma banheira fora esfregada, as orelhas da cama e o lustro dos móveis puxados, os longos suspiros colados às mesmas paredes acastanhadas.

O encontro dos avós deu-se no início dos anos 1940 quando, com os respetivos irmãos, fizeram a volta à Espanha para oficializar dois casamentos arranjados entre famílias de comércio transfronteiriço. Nos típicos arranjinhos familiares, provavelmente nunca se amaram verdadeiramente, mas lá devem ter aprendido aquele “amor-tem-de-ser” que vem do convívio duradouro.

Enfim, sorte a minha ter nascido numa época em que pude escolher os amores e as convivências.

 

5. A avó era ríspida, autoritária até, mesmo na lucidez pós-noventa anos de vida. Dedicava muitas horas do dia a perfeccionistas limpezas, casa sempre a brilhar, nem um pozinho para passar o dedo. Enquanto limpava ou fazia deliciosos rissóis ou rezava o terço, talvez sentisse saudades da sua aldeia espanhola. Não fixei nada do que terá contado sobre a sua mãe, o que alimenta a nebulosa das histórias dos bisavós. Mas decorei os nomes estapafúrdios dos seus irmãos: Eliodora, Julião (que combateu na guerra em Marrocos, ou Guerra do Rife, de espanhóis contra berberes), Bonifácio, Anastácio Aquilino e Júlio, o mais novo, emigrado no Brasil que nos trazia cristais lilás e tabuleiros com pica-paus cariocas. De como vieram para Portugal, em 1918, percurso de muitos espanhóis a caminho da Argentina. A chegada à Baixa lisboeta, com espanhóis a fixarem-se nas ruas das Canastras e dos Bacalhoeiros. Portugal salazarista quase aí. Uns anos adiante, no Arco Escuro, junto à fundação José Saramago e ao Campo das Cebolas, reabilitado após décadas de estacionamentos caóticos, nascia o meu pai. Celebrava-se o fim da 2ª Guerra Mundial precisamente nesse dia, e quase foi batizado de Vitório à conta de gritarem “Vitória!” pelas ruas com os ais da minha avó que dava à luz o meu progenitor.

Na casa de Benfica, gostava de a ouvir contar os poucos momentos emocionantes com que a vida a brindara. Gostava de a ouvir cantarolar em espanhol clássico, nostálgica sabe-se lá do quê, enquanto bordava elaborados tapetes de arraiolos. Chegou a ensinar-me, talvez pacientemente, um tão distintivo skill, ao qual não voltei a dar uso. Mas é como andar de bicicleta, e um dia, na precariedade da vida de trabalhadora independente (e da cultura), reavivo o valor de uso dos arraiolos.

Dentro de casa quem manda são elas e, como tantas mulheres, recebia a mesada do patriarca e geria rigorosamente as despesas do lar e os vícios do marido. Nos pequenos poderes domésticos a sua voz tinha maior expressão e, volta e meia, o seu grito inconfundível, lá do fundo do apartamento, “Fernandooooo!”. O avô, criança repreendida, interrompia, com ar amuado, as suas invenções para alcançar qualquer coisa no alto do armário.

Um cancro na mama há muitos anos obrigara-a a arrancar um peito. O meu pai, adolescente, chorou quando ela foi operada. Desconhecendo a doença, eu estranhava a assimetria do seu corpo nos abraços, quando uma parte ia mais para dentro, afundando-se no vazio como uma esponja. Até que a flagrei a encher o soutien com meias para fazer o volume da mama. Foi um certo choque porque até então eu não sabia que podíamos prescindir de nacos de carne sem morrer. Já muito idosa, mas impecável, o cancro regressou no mesmo lugar, no buraco onde lhe tiraram peito. Cinquenta anos depois. Por tão rara longevidade, no IPO quiseram estudá-la, o que a avó, veemente, recusou. Fui de acompanhante a essa consulta e admirei a sua firmeza contra as opiniões dos médicos, os que levam avante as suas vontades pois “têm a nossa vida nas suas mãos”.

 

6. Às terças-feiras era dia de almoçar nos avós. O programa semanal com a neta dava-lhes umas horinhas a subtrair à morte. A juventude deve distribuir alegria aos que precisam e eu, com prazer, partilhava a minha juventude e conquistas na escola, não contando nem um décimo do turbilhão da minha existência para não os baralhar. Na realidade, não era motivo de interesse para lá da cordial pergunta sobre a saúde e as notas, suficientemente perturbador o mundo atual e o jorro informativo que chegava pela televisão, contaminando de velocidade a pacatez dos seus gestos caseiros. Eu sim, estava interessada em aprender sobre tempos distantes e vagarosos. O avô mostrava-me livros do século XIX e início do XX do seu pai Armando, caixeiro-viajante, representante em Lisboa de fábricas de lanifícios da Covilhã. Ao contrário do avô, homem de rabiscos, mecânica e manualidades, o bisavó Armando, de valores republicanos, imponente no trato e alma de poeta, lia muito e enviava poemas para jogos florais dos jornais. Um deles é um manifesto contra as mulheres modernas que se maquilhavam, especificamente uma espanhola.

De manhã cedo, o avô ia às compras, criterioso e atento às promoções. Desde que se reformara, o prazer supremo concentrava-se no universo dos supermercados, sobretudo o fenómeno Pingo Doce que o Fonte Nova acolhia. Lá rumava todos os dias ao centro comercial regressando com a mesma indignação pela subida dos preços. O menu calórico daquele repasto semanal muito contribuiu para a minha obesidade adolescente. Nunca falhava: empadão de esparguete com carne ou, hipótese B uma vez por mês, frango assado com arroz e rodelas de chouriço, sumo de laranja natural, morangos com chantilly caseiro e bolo de chocolate a rematar. Ficavam ofendidos se eu não repetisse pelo menos três vezes, numa chantagem emocional “Não gostaste nada da comida”, já eu desabotoara as calças e enfardara como se fosse para a guerra. É um traço da minha família de ambos os lados (ou geracional?): impingir comida, quase implorar para que se coma mais.

Mas atentem no empadão. Tornou-se até famoso, um tabuleiro de empadão da avó chegou a viajar ao Faial quando fomos para lá viver. Unta-se o tabuleiro de pirex com manteiga, onde assenta uma camada grossa de esparguete, seguida de camada de carne picada refogada, de novo camada bem grossa de esparguete e ainda mais grossa camada de bechamel. A gratinar a gosto. A colher de pau a girar devagarinho juntando a maizena até engrossar bem ficou-me para sempre, como os sons que já contei. Nunca reencontrei aquele sabor em mais nenhum bechamel, e mesmo que correndo todos os rissóis de camarão do país, nenhum chega aos calcanhares dos rissóis da minha avó.

Quando me ia embora, os avós ofereciam-me a nota de um conto já à porta, que passou a ser gasta em cigarros. Eu agradecia como se fosse surpresa. Carregava no botão do elevador dando beijinhos de adeus e ali ficávamos juntos, à espera de que o elevador chegasse lá acima, naquele semi-incómodo que fica após as despedidas. Já na rua, voltava-me para o alto do prédio de Benfica acenando às pequenas cabeças brancas, muito juntas, um pontinho no céu cinzento.

Depois de a avó morrer e de 70 anos de “amor-convívio”, o avô continuou a fazer tudo exatamente igual, mas agora sozinho com os seus fantasmas.

Como muitos viúvos, não durou muito mais.  

 

7. Desencravam o elevador, libertando também as minhas memórias. Entro em casa e vejo o corpo do meu avô, imenso, com os pés de fora da cama. Como um fiambre do Pingo Doce.

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